Folha de S. Paulo
As formas expressivas e concisas são parte da
língua franca da era digital
Memes são
parte fundamental da vida digital. Logo, da vida. Mesmo os que professam
estranhas sentenças como "não tenho redes sociais", durante conversa
em alguma mídia social, reconhecem que vivemos em ambientes sociais digitais.
No final dos anos 1990, os primitivos que por
lá viviam ainda separavam os mundos em "real" e "virtual"
enquanto diziam coisas hoje incompreensíveis como "entrar na internet".
Sucessivas ondas de transformação digital, porém, unificaram a nossa
experiência social. Já não há um "fora" da conexão digital; você, no
máximo, modula o quanto ainda quer de vida desconectada e reza para dar certo.
Ora, se ambientes digitais oferecem hoje os recursos fundamentais para a interação, a integração e a informação, funções sociais decisivas, era de se esperar que novas linguagens surgissem e se consolidassem. Os memes, formas expressivas concisas, condensadas e que se fixam na memória coletiva, são parte da língua franca da era digital.
Assim como as sonoras lapidares eram um
recurso precioso na era da televisão, as frases de efeito, os chistes e as
tiradas espirituosas eram admirados na esfera pública aristocrática ou da alta
burguesia.
Meme é um pouco disso tudo. Afinal, qualquer
coisa pode ser um meme desde que seja capaz de se fixar na camada mais
acessível da memória coletiva, de ser reconhecida e de comunicar de maneira
rápida um conteúdo. Como uma sonora, o meme precisa ser facilmente replicável e
reconhecido; como uma tirada, é bom que seja surpreendente e bem-humorado; como
um chiste, convém ser irreverente, crítico.
Curiosamente, nesta semana, duas figuras
públicas falaram de memes em campanhas políticas: um marqueteiro e um
comentarista de política. A acreditar-se no título das reportagens, há uma
singularidade. O marqueteiro, Sidônio Palmeira, é contra os memes. O
comentarista, Merval Pereira, a favor.
Na verdade, a diferença entre Pereira e
Palmeira é um pouco mais complicada. Merval, em O Globo, repercute uma
entrevista de Pablo Nobel, o marqueteiro do argentino Milei, que diz dos memes
que são a ponta de lança da comunicação eleitoral, vez que capturam a atenção
dos jovens, dos menos politizados e menos engajados. Aliás, a mesma coisa que
se dizia sobre usar redes sociais em campanhas desde os anos 2000. O elogio ao
meme é novo, o discurso é velho.
Surpreende um pouco mais a posição de
Sidônio, que revela considerável desconforto com o uso de memes em entrevista
dada a Samuel Lima no Estadão. Os memes de arminha de Bolsonaro, da motosserra
de Milei e da peruca de Nikolas Ferreira foram explicitamente mencionados, o
"faz o L" de Lula não o foi, mas poderia ter sido. A questão para ele
é que se usam memes "em vez de". Em vez de uma discussão política
substantiva sobre temas.
Memes são uma forma de ganhar repercussão,
cliques, acredita. "Isso termina simplificando, deixando muito raso o
debate político". A contraposição entre a política com substância de
antanho com a política de simulacro e aparências de hoje é um clássico nos
estudos de comunicação eleitoral. Já se culpou por essa decadência a televisão,
a sociedade do espetáculo e a internet. Parece que o meme sintetiza os culpados
da vez.
O que parece incomodar Sidônio Palmeira é
visto com um problema por todo mundo: as campanhas não têm ajudado as pessoas a
discutir com profundidade as questões políticas. O diagnóstico de que isso tem
a ver com o uso de memes e, ele acrescenta numa conjunção injustificada, fake news, é
que se pode discutir. Sim, fake news não são um recurso legítimo, mas o que
memes têm a ver com isso? E por que o mero recurso a memes tornaria os debates
rasos? As campanhas precisam se esgotar neles?
Quando existiu essa campanha socrática em que
oradores não precisavam de slogans, jingles, humor e outros recursos visuais,
sonoros e conceituais para fixar uma identidade e uma ideia-chave na memória do
eleitor? Por que na era dos palanques e na era da televisão nada disso era
incompatível com uma campanha baseada em questões e na era digital passou a
ser?
As campanhas não conseguem mais vender ideias
e discutir seriamente problemas e soluções? Concordo.
O frenesi dos parlamentares para manter-se
vistos e lembrados, sobretudo daqueles que usaram a sua presença digital para
conseguir mandatos, é um problema que afeta seriamente as casas legislativas
hoje em dia? Concedo. O uso de memes provoca algum desses efeitos? Certamente
não. As causas devem estar em outro lugar.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
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