O Estado de S. Paulo
Estamos dispostos a que a prioridade absoluta do poder público sejam as pessoas mais vulneráveis?
Gostamos de pensar que o interesse público é
desatendido em razão da perversidade ou da estreiteza de visão dos políticos.
Eles seriam a causa dos nossos problemas. Mas isso não condiz com os fatos. Os
políticos são reativos ao comportamento da sociedade.
As promessas de campanha eleitoral falam
muito sobre cada candidato, sobre sua visão de mundo e de Estado. Mas elas
falam também sobre nós. São termômetro das nossas aspirações. O que realmente
gostaríamos que mudasse em nossa cidade? Onde gostaríamos que o dinheiro
público fosse investido prioritariamente?
Muito se discute hoje em dia sobre Judiciário, democracia, liberdade de expressão. A princípio, isso parece soar muito positivo, reflexo da maturidade de um povo atento aos direitos fundamentais. No entanto, todos esses debates, que consomem muitas energias, representam cuidado com quem mais precisa, com os reais gargalos do desenvolvimento social e econômico do País? Ou é sobretudo uma preocupação com nossa pauta ideológica, com os interesses e as circunstâncias do nosso grupo político?
Política democrática é alteridade. De outra
forma, por mais que haja eleições e mandatos a prazo fixo, tudo se resume a
mais do mesmo: privilégios e benesses a quem está próximo do poder.
Quando olhamos a cidade, quais problemas
vemos? Os que dificultam o meu dia a dia ou os que atrapalham a vida dos
outros? Fala-se muito em cidadania, mas, diante dos nossos olhos, há pessoas
sem nenhum direito, sem nenhum horizonte existencial mínimo. Como reagimos a
esse fato brutal?
No ano que vem haverá eleições municipais.
Será que algum candidato irá propor, por exemplo, um programa audacioso para
conhecer, entender e enfrentar as necessidades das pessoas em situação de rua,
bem como as causas que geram esse drama? E, mais, um programa assim seria visto
como um diferencial pelo eleitorado?
Oficialmente, todos são iguais perante a lei.
Mas nem todos têm os mesmos direitos. Nem todos recebem a mesma atenção do
poder público. Refiro-me aqui às pessoas em situação de miséria, aos que têm
fome, aos que não têm teto. Quando eles serão cidadãos? Quando serão vistos
como pessoas, merecedoras do cuidado e do investimento do poder público?
No início de uma noite de janeiro deste ano,
sofri um furto, o mesmo que muitas pessoas já sofreram: um garoto de bicicleta
tomou o celular da minha mão. Estava perto de casa, corri e logo bloqueei o
aparelho e as contas bancárias. Achei que estava protegido. Ledo engano. Em
minutos, a gangue conseguiu dominar meus e-mails, meu perfil na Apple etc.
Foram longas horas de ataques, das mais diversas modalidades, numa batalha em
que eles sempre pareciam estar um passo à frente. Refiro-me a “eles” porque, pela
quantidade de movimentos simultâneos, certamente havia várias pessoas atuando
coordenadamente. Conseguiram apagar remotamente meus dois computadores e o
tablet. Perdi todas as minhas fotos. Num determinado momento, pareceu que os
ataques nunca teriam fim – e senti uma angústia muito forte.
Para piorar, um dos bancos, por equívoco, fez
apenas o bloqueio temporário do cartão de crédito. Com isso, horas depois, na
madrugada do dia seguinte, os assaltantes tentaram realizar algumas compras:
dois uísques caros, uma corrente de ouro e três cafés da manhã pelo iFood, para
serem entregues num endereço no centro da cidade. Essa última compra foi
efetivada e, no dia 12 de janeiro, três pessoas tomaram um café da manhã à
minha custa, valor este que depois foi estornado.
Conto tudo isso por uma razão. Esse café da
manhã dos assaltantes despertou-me para a realidade. Ali, dei-me conta de que
essas pessoas nunca tinham tomado um café da manhã similar ao que eu estava
tomando na minha casa, sentado, lendo o jornal, comendo exatamente o que gosto
de comer de manhã. A revolta com o que eu estava sofrendo passou. Os
assaltantes tinham arriscado a liberdade e a vida e, ao fim, tinham conseguido
um parco café da manhã, muito pior do que o que tomo tranquilamente todos os
dias.
Não quero relativizar a gravidade desses
crimes, especialmente contra idosos. Eles causam graves danos. Mas não sejamos
ingênuos. O que essas pessoas – muitas vezes, essas crianças – receberam, ao
longo da vida, da sociedade e do Estado? Quantos cafés da manhã decentes elas
tiveram a oportunidade de tomar?
Certamente, todos nós queremos mudar essa
realidade. Mas estamos dispostos a que a prioridade absoluta do poder público
sejam as pessoas mais vulneráveis? Queremos que se invista pesado nelas: cifras
altas, generosas, audazes? Não é só uma questão de dinheiro, mas, como diz o
ditado popular – ligeiramente diferente da versão bíblica –, onde está o
dinheiro, aí está o nosso coração.
Estamos dispostos a apoiar políticas públicas
que vêm resolver não os nossos problemas, mas os dos outros? Ou, para
conquistar nosso voto, basta que se faça o recapeamento da nossa rua? Pelo
visto, a prática continua dando muito voto.
Um bom Natal a todos. Que a contemplação do
presépio nos ajude a sermos um pouco menos obtusos.
*Advogado
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