O Globo
Ficar em cima do muro, esperar sentado,
fechar o bico, morder a língua, saber-se inoportuno ou inferior é uma virtude
nacional
Meu velho mentor, o brasilianista Richard
Moneygrand, está no Brasil (ele adora nosso Natal carnavalesco) e assistiu à
sabatina dos ilustres Flávio Dino e Paulo Gonet.
Quando nos vimos, o famoso brasilianista foi
logo dizendo como a sabatina era um ritual fora do lugar no Brasil —
especialmente entre integrantes da elite política. Perguntei: “por quê?”. E o
professor foi claro:
— Ora— observou sério, sorvendo meu uísque —,
vocês são adestrados para jamais discordar ou dizer não. Exceto, claro, para os
inferiores... Aliás, foi você mesmo quem me informou sobre o assunto quando
contou que um de seus mais penosos aprendizados foi não revelar suas opiniões
franca e abertamente, correndo o risco de desagradar ao superior, promovendo o
dissídio, a crítica ou a negação de uma ordem social estrutural e
inconscientemente escravocrata.
Nela, concordar combina com harmonizar, com entender, com “estar junto” e com obedecer, que é sua dimensão oculta mais importante. Conciliação, como você bem sabe, é um elemento básico na história social do Brasil. Evitar extremos porque, afinal, a virtude está no meio, conforme dizia Sérgio Buarque de Holanda, citando o poeta quinhentista português Francisco Sá de Miranda.
Ficar em cima do muro, esperar sentado,
fechar o bico, morder a língua, saber-se inoportuno ou inferior é uma virtude
nacional prezada e admirada. Com ela, ganham-se prestígio e poder porque,
afinal de contas, a conciliação adia questões cruciais, deixando o problema
para outra administração.
— Num mundo tão complicado — concluiu
Moneygrand —, acho conciliar razoável. Afinal, é melhor harmonizar do que
terrorismo e guerra...
Durante as dez horas de sabatina, meu antigo
mentor e eu víamos poucos confrontos sobre temas básicos — como as convicções
éticas, respondidas, aliás, com brilho por Flávio Dino, levando meu mestre a
comentar que o ministro, afinal, havia entendido bem que somos responsáveis
pelos papéis que desempenhamos, mas somos igualmente devedores morais dos
encargos devidos a nossos cargos. Não entender isso é destruir a ordem, gerando
o caos, como ocorreu no governo Bolsonaro.
No mais, ouvi o estrangeiro amigo chamar
minha atenção para nossa dificuldade cultural de isolar a mesa e os
sabatinados, muitas vezes interrompidos seja pelos serviçais que, como humildes
papagaios de pirata, circulavam à volta deles, seja por colegas que,
brasileiramente, falavam com o presidente do ritual, revelando que as normas
variam de acordo com o nível de conhecimento e amizade.
Moneygrand repetia: veja como você tem razão.
No Brasil, há enorme dificuldade de isolar pessoas como exige o ritual. Vossa
índole relacional e hierárquica tende a impedir a separação, mesmo num ritual
tão importante quanto essa sabatina que certamente — completou — dará a Lula da
Silva um tribunal superior domesticado.
Discordei inutilmente porque não podia deixar
de enxergar nossa dificuldade cultural de discordar e confrontar.
Imediatamente, pensei no imenso problema de resolver legalmente as várias
situações decorrentes da escravidão, ainda cravadas em nossas veias e corações.
Ao término da sabatina, estávamos sabatinados
de cordialidade formal. Tínhamos testemunhado mais uma batalha entre “inimigos
íntimos” — de uma elite de irmãos siameses. Poderosa e dura de roer como
afirmou Moneygrand, terminando meu estoque de uísque...
Hoje, vivemos o alívio do pós-confronto de
“donos do poder”, que, afinal de contas e graças ao bom Deus, concordam em
discordar e domesticam as feras da mudança que, sabemos bem, jamais serão
capazes de triunfar sobre o mau gosto de discordar.
P.S.: Muito triste ver a partida de Carlinhos
Lyra, autor de um saudoso hino ao nosso permanente subdesenvolvimentismo.
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