Folha de S. Paulo
Caso chileno mostra que empenho dos
principais atores políticos em jogar pelas regras da democracia importa mais
que conteúdo de Cartas
Constituições são um negócio intrigante. Elas
podem não passar de um pedaço de papel sem maior significação, como era o caso
da Constituição soviética,
linda na forma, mas vazia nos conteúdos, como também podem ser efetivas mesmo
sem existir como um documento escrito, que é o que ocorre no Reino Unido.
Os chilenos tentaram e fracassaram
em seu esforço de adotar uma nova Carta política, mas isso está
longe de ser uma tragédia. O impulso de
substituir a Constituição vigente, herança da ditadura de Augusto
Pinochet, fazia sentido.
Símbolos importam, e a origem autoritária do atual documento é um incômodo.
Essa foi uma das razões por que quase 80% dos chilenos, quando consultados em 2020, votaram a favor da instalação de uma assembleia constituinte exclusiva. E acabou aqui o consenso possível.
A assembleia eleita veio com um forte sabor
de esquerda, e os constituintes produziram um documento de acordo. A Carta
sugerida mencionava a palavra "gênero" 39 vezes, entre outros
exageros. O texto foi submetido à população em 2022, que o
rejeitou pelo eloquente placar de 62%.
Os chilenos partiram então para uma segunda
tentativa. Desta vez, a comissão encarregada de redigir a Carta saiu com fortes
inclinações à direita, que transpareceram no documento proposto. Submetido aos
eleitores, o projeto foi agora rejeitado por 56%.
Os chilenos entenderam o recado e não farão
uma terceira tentativa. Vão
ficar com a Constituição pinochetista, mas que já foi emendada (em
governos de esquerda) para livrá-la dos piores vícios. A má origem da Carta não
impediu o Chile de
tornar-se uma democracia estável e de crescer mais do que os outros países da
região.
Constituições importam, mas o fator realmente
decisivo é o empenho dos principais atores em jogar pelas regras da democracia.
Se ele existe, Cartas ruins não são um empecilho. Se não, nem os melhores
documentos evitam a autocratização.
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