A agenda prioritária para 2024
O Globo
Atenção deve estar no corte de gastos,
conclusão da reforma tributária, reforma administrativa e pauta ambiental
O ano de 2024 será desafiador para o Brasil.
A conjunção de uma economia em desaceleração e eleições municipais exigirá do
governo e do Congresso disciplina para não sucumbir ao populismo ou à
complacência. Para o país garantir mais crescimento, mais trabalho, mais renda
e mais equidade, Executivo e Legislativo terão de trabalhar duro.
A agenda prioritária deveria contemplar cinco
itens: 1) controle dos gastos públicos para evitar uma crise fiscal; 2) votação
de leis complementares à reforma tributária para garantir o mínimo de exceções
e a simplificação do novo sistema de impostos; 3) aprovação da reforma
administrativa para elevar a eficiência do Estado; 4) atenção à agenda
ambiental, em especial ao mercado de carbono e ao combate ao desmatamento; 5)
legislação para coibir manipulação por inteligência artificial na campanha
eleitoral.
Que ninguém duvide. O maior desafio está na economia. A dívida pública brasileira estará perto de 75% do PIB quando saírem os números oficiais de 2023, percentual alto para um país emergente. Pelos cálculos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ao final de 2024 deverá estar perto de 80% do PIB nos governos federal, estaduais e municipais. Dívida alta significa mais gasto com juros, menos dinheiro para investimentos e menor capacidade de crescer.
Diante desse quadro, é urgente equilibrar as
contas públicas. A estratégia do governo, demonstrada mais uma vez pelas
medidas anunciadas na semana passada pelo Ministério da Fazenda, consiste em
aumentar a arrecadação. Isso com certeza não bastará para cumprir a meta de
zerar o déficit em 2024. O governo contempla duas opções, ambas ruins. A
primeira é simplesmente mudar a meta para acomodar gastos maiores. A segunda é
criar exceções para excluir os gastos da meta. Tanto uma como outra abalariam a
credibilidade do novo arcabouço fiscal. Nas projeções da OCDE, ainda que as
novas regras fiscais sejam seguidas, a dívida crescerá até 90% do PIB em 2047.
Num cenário em que o arcabouço seja implementado de forma relapsa, atingirá
100% já em 2037. Cortar despesas, portanto, não é uma opção. É um dever. O
governo precisa apresentar um plano consistente de cortes e aumento na
eficiência dos gastos.
A aprovação da reforma tributária foi, sem
dúvida, histórica, mas ainda há trabalho por fazer. Em 2024, o Congresso votará
as leis complementares para regulamentá-la. Pelo que já foi aprovado, diversos
setores serão beneficiados com alíquotas menores. Em consequência será maior a
de todos os demais. O tamanho da “bondade” para alguns determinará o da
“maldade” para a maioria. O Ministério da Fazenda estima a alíquota dos dois
novos impostos criados pela reforma em torno de 27,5%, entre as mais altas do mundo.
Há estimativas mais pessimistas. Outro ponto à espera de definição é a operação
do novo sistema. A meta deve ser facilitar a vida do contribuinte, não do
Fisco.
Os congressistas também precisam dedicar
energia a outra reforma fundamental: a administrativa. É crônica a insatisfação
dos brasileiros com o serviço público. As despesas com o funcionalismo consomem
13% do PIB, mais que em Portugal ou
na França.
O governo evita o assunto, mas modernizar a gestão pública é uma necessidade
urgente. Há funcionários sobrando, a avaliação por desempenho é uma ficção, e
uma elite recebe fortunas, enquanto a maioria ganha remuneração sofrível. Há
propostas no Congresso facilitando a demissão de funcionários públicos por
desempenho insuficiente, coibindo os supersalários e modernizando os concursos
públicos. Seria apenas o início de uma mudança fundamental para o país. O
projeto para reduzir o número de carreiras (na esfera federal há mais de 300
tabelas) foi postergado. Se o Executivo não apresentar sua agenda para a
máquina pública, cara e ineficiente, o Congresso mais uma vez precisará tomar a
dianteira.
No campo ambiental, 2023 ficará marcado como
o ano de recuperação no combate ao desmatamento na Amazônia.
Garimpeiros, madeireiros e pecuaristas ilegais voltaram a ser identificados e
punidos. Em 2024, será preciso reverter a tendência preocupante na devastação
do Cerrado. O governo já tem um plano de ação, mas, para transformá-lo em
realidade, será fundamental contar com a cooperação de governadores e
prefeitos, responsáveis pela emissão de permissões para o desmate legal.
No Congresso, é urgente a aprovação de um
mercado formal para negociação de créditos de carbono. O texto aprovado em
outubro no Senado não era perfeito, mas piorou na Câmara. É papel do Executivo
e do Legislativo acelerar a aprovação para garantir segurança jurídica às
iniciativas de descarbonização. Na exploração de petróleo, não deve haver
dúvidas sobre a licença para pesquisar a Margem Equatorial, faixa do litoral
que vai do Amapá ao Rio Grande do Norte. O Brasil deve saber o que existe na
área, não pode se contentar com o desconhecimento. Depois, se decidir
explorá-la, não deve abrir mão do compromisso ambiental, com rigor nas medidas
de prevenção de acidentes.
Para as eleições municipais, o maior desafio
está na campanha eleitoral. O Brasil carece de legislação explícita contra
vídeos e áudios fraudulentos feitos com ferramentas de inteligência artificial.
A recente eleição na Argentina demonstra os perigos da nova tecnologia. Assim
como nos pleitos anteriores, os celulares serão o foco das campanhas. Por isso
é urgente estender ao meio digital as proibições, já vigentes na propaganda por
rádio e TV, a montagens, trucagens, efeitos especiais ou computação gráfica.
Sem uma lei rigorosa, o equilíbrio democrático ficará em xeque.
Em 2024, o governo terá um ano decisivo para
consolidar sua credibilidade. Os discursos em favor da responsabilidade fiscal,
do protagonismo ambiental e do vigor democrático precisam estar ancorados em
atos concretos. A queda dos juros e da inflação nos
países ricos descortina um cenário de melhora global. Com as políticas
adequadas, o Brasil poderá se beneficiar. Em jogo está não apenas o ano de
2024, mas também os próximos.
Ano de alívio
Folha de S. Paulo
Com agro forte, exterior benigno e PT
contido, economia supera expectativas
Encerra-se este 2023 com uma sensação de
alívio quanto à evolução do bem-estar material e social da população brasileira
—a não se confundir com a crença de que estão superados os riscos que pairam
sobre a economia do país.
Medida da renda nacional, o Produto Interno
Bruto repetiu o crescimento na casa de 3%, com ajuda
relevante do agronegócio, acima do esperado e sustentando a criação
de empregos. A inflação se manteve em queda depois do repique global que se
seguiu à pandemia. A aprovação da reforma tributária criou uma
oportunidade preciosa.
Exportações vigorosas garantiram o ingresso
de divisas, e as cotações internas do dólar recuaram, contribuindo para o
controle dos preços. Juros em tendência de queda aqui e lá fora animaram as
Bolsas nos últimos meses.
Não são resultados espetaculares, mas vê-se
um ambiente bem menos anuviado que o do início do ano, quando Luiz Inácio Lula
da Silva (PT) semeava insegurança —e juros mais elevados— com ataques ao
equilíbrio orçamentário, à autonomia do Banco Central e às metas de inflação.
O governo começou com a bandeira da gastança,
promovida antes mesmo da posse por meio de uma emenda constitucional que elevou
despesas permanentes a um patamar muito acima do necessário para acomodar a
correta ampliação do Bolsa Família.
Felizmente, entretanto, o pragmatismo prevaleceu
sobre outras das piores ideias do presidente da República e de seu partido.
De todo modo, parcela expressiva das boas
surpresas do ano esteve desvinculada dos impactos diretos da política econômica
doméstica. Exemplo mais evidente é o da safra recorde de grãos, que provocou um
salto de 12,5% no PIB agropecuário no primeiro trimestre.
Esse impulso se espalhou pelas ramificações
industriais e de serviços do competitivo agronegócio brasileiro, que responde
por cerca de 25% da renda do país e independe de proteção estatal.
No exterior, dissiparam-se
temores de onda recessiva resultante das medidas contra a alta
inflacionária global. Preços de matérias-primas caíram, mas o volume de compras
manteve o bom desempenho das exportações brasileiras. O Fed, banco central
americano, anunciou recentemente a perspectiva de queda mais rápida de suas
taxas.
Por aqui, o avanço institucional do BC
autônomo evitou o descontrole de expectativas e facilitou o controle da
inflação em meio às tensões da troca de governo. A Selic, ainda muito elevada,
iniciou trajetória de queda em agosto.
Da parte do governo, a principal inovação foi
o advento de uma nova regra fiscal em substituição ao já desfigurado teto de
gastos, o que ao menos estabeleceu limites formais para a expansão das
despesas.
A situação orçamentária, no entanto, está
longe de confortável —e aqui começam as ameaças à saúde econômica e social do
país.
O ano termina com grave deterioração das
contas do Tesouro, e é evidente para todos que o novo regramento é insuficiente
para sustar a escalada da dívida pública. Foi esse o sentido de um alerta
recente da OCDE, que irritou Lula.
Espera-se desaceleração da economia em 2024,
já notada no PIB do terceiro trimestre. Se confirmada a expectativa, tendem a
acirrar-se, em ano de eleições municipais, as pressões do PT e da ala política
do governo contra a já
desacreditada meta de déficit zero.
O ministro Fernando Haddad, da Fazenda, segue
como defensor solitário da racionalidade no partido. Ainda que tenha colhido
vitórias importantes contra subsídios tributários iníquos, a insistência em
basear todo o ajuste na arrecadação, sem revisão aprofundada dos gastos, está
fadada a frustrações.
A alta da despesa pública produz não mais que
espasmos declinantes na atividade econômica. O crescimento duradouro depende de
investimento —que só fez cair no ano— e da produtividade.
O governo atua contra a eficiência
empresarial ao recusar privatizações e insistir no aparelhamento das estatais.
Ao menos não prosperaram, até aqui, ensaios de aumento do crédito subsidiado,
reestatizações e retrocesso nas reformas trabalhista e previdenciária.
Daqui em diante, há que resistir à tentação de ganhos políticos de curto prazo. A regulamentação do sistema tributário exigirá trabalho persistente contra a ação de lobbies por privilégios. O Bolsa Família e a política social devem ser aperfeiçoados por maior eficácia no combate à pobreza. O país tem uma década perdida a deixar para trás.
A porta estreita para um mundo melhor
O Estado de S. Paulo
OCDE mostra que os custos da urgente
transição energética recairão três vezes mais sobre países pobres do que sobre
ricos; só reformas e novas tecnologias podem mudar essa equação
Em quatro anos o mundo foi surpreendido por
uma pandemia, por duas guerras de impacto global e por uma irrupção disruptiva
da Inteligência Artificial. Se é difícil prever como será o mundo em quatro
anos, imagine em 40 anos? No entanto, há duas megatendências inexoráveis: o
planeta está esquentando e os humanos vivem mais e têm menos filhos. A
consequência é uma humanidade envelhecida, que luta para substituir sua energia
fóssil por energias verdes.
O impacto destas transformações foi sopesado
na mais recente projeção de cenários de longo prazo da Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um fórum das democracias ricas.
O cenário-base projeta a continuação da rota
atual, sem maiores mudanças políticas e institucionais: mais do mesmo. Neste
caso, para as nações da OCDE e do Grupo dos 20 (G-20) combinadas (ou 83% do PIB
global), o declínio no crescimento da força de trabalho e da produtividade
desacelerará o crescimento econômico, dos atuais 3% ao ano para 1,7% em 2060.
Na maior parte das economias emergentes do G-20, o crescimento do PIB per
capita será mais lento. Há exceções, como Brasil, Argentina e África do Sul, só
porque seu desempenho atual é tão medíocre que é difícil piorar. Mas os padrões
de vida destes países se aproximarão pouco do padrão de vida dos países
desenvolvidos, menos que os da China, da Índia ou da Indonésia.
Até 2060, a pressão fiscal deve crescer no
mundo cerca de 6 pontos porcentuais do PIB. Essa seria a quantia que um país
médio precisaria aumentar em impostos para conter a escalada do endividamento
público.
Se o envelhecimento populacional já é
deprimente, as más notícias não param aí. O cenário-base não contabiliza a
transição energética. Pela primeira vez, a OCDE estimou os custos dessa
transição. Nesse cenário, todos os países acelerariam a descarbonização,
eliminando o carvão e reduzindo o petróleo e o gás a 15% da matriz energética
em 2050. A boa notícia é que isso alcançaria a meta do Acordo de Paris de
limitar o aquecimento global a 1,5°C. A má notícia são os estragos sociais:
mais fome, mortes e, consequentemente, violência.
De acordo com a OCDE, os custos cumulativos
da mitigação consumiriam 8% do PIB global até 2050. Porém as perdas são
desiguais. Os países ricos ficarão 3,7% menos ricos e os países pobres ficarão
11% mais pobres. O mundo já será mais velho; a transição energética o tornará
mais pobre e desigual.
Não são tendências imutáveis. Projeções não
são futurologia nem precisam ser um destino, se tomadas como uma advertência e
um convite à ação política e à criatividade.
Inovações tecnológicas, seja na
biotecnologia, seja na Inteligência Artificial ou na automação industrial,
podem impulsionar a produtividade. Reformas que melhorem a eficiência dos
sistemas de saúde e de previdência podem aliviar pressões fiscais. Para as
economias emergentes do Brics, a OCDE projeta que melhorias na governança, no
desempenho educacional e na abertura comercial têm o potencial de elevar seu
padrão de vida de 30% a 50% em relação ao cenário-base.
A taxação do carbono pode gerar receitas
adicionais, que podem ser empregadas para aliviar a carga tributária sobre o
trabalho. Parte dessas receitas deveria ser investida em pesquisa e
desenvolvimento de energias tão baratas e eficientes quanto as fósseis.
Por ora, é preciso lidar com a realidade como
ela é. Com as tecnologias atuais, a aceleração da descarbonização impõe um peso
ao bem-estar social e, inversamente, a elevação do bem-estar social impõe um
freio à descarbonização.
O mundo precisa se empenhar em cálculos de
custo-benefício para fazer escolhas racionais entre a preservação ambiental e o
progresso social. E os países pobres precisam negociar com os países ricos
transferências de recursos e/ou prazos dilatados para uma transição energética
socialmente sustentável.
O custo da credibilidade
O Estado de S. Paulo
A Inteligência Artificial só será confiável
se se basear em dados confiáveis. Mas a apuração desses dados custa muito suor
e dinheiro a humanos que não estão sendo recompensados por isso
Se tudo o que amamos na civilização é um
produto da inteligência, a criação de uma inteligência artificial (IA) capaz de
realizar as operações mais complexas da inteligência humana em milésimos de
segundo pode ser a maior invenção da história mundial. A euforia com as novas
tecnologias de IA generativa são justificadas. Mas também o pavor: os humanos
poderiam se tornar simplesmente obsoletos. Mas poderiam realmente?
A capacidade das novas máquinas de computar
dados e sintetizá-los já supera em muito as capacidades humanas. Ainda assim,
resta a questão: quem gera esses dados?
Um modo mais humilhante, mas realista, de descrever máquinas de IA é, na expressão da linguista Emily M. Bender, “papagaios estocásticos”. “Os amplos modelos de linguagem são impressionantes em sua habilidade de gerar uma linguagem realista, mas no fim das contas eles não entendem verdadeiramente o sentido da linguagem que estão processando”, diz Bender. Assim, as previsões realizadas por uma máquina que aprende sozinha estão essencialmente repetindo conteúdos dos dados. Em outras palavras, se uma máquina eficiente é alimentada com dados confiáveis, os resultados serão provavelmente confiáveis, mas, se os dados não são confiáveis, os resultados serão o inverso.
Os próprios programadores reconhecem isso.
Uma pesquisa da News Media Alliance, que representa mais de 2 mil publicações,
averiguou que as empresas de tecnologia utilizam “desproporcionalmente” as
notícias online e conteúdos de revistas e jornais digitais para treinar seus
softwares de IA. Uma análise do Washington Post revelou que as 10 principais
fontes utilizadas para treinar os “modelos de linguagem grande” são veículos de
mídia profissional. “Nossa própria presença (online) está dando credibilidade
para essas plataformas que de outra forma seriam preenchidas por nonsense
caça-cliques e informação desregulada”, resumiu Katie French, editora da
Newsquest.
As empresas de tecnologia têm resistido a
remunerar as fontes dessas informações com base na jurisprudência americana do
“uso justo” (fair use), segundo a qual “o uso por inovadores de modos
transformadores de materiais protegidos por direitos autorais não infringe
esses direitos”. Pode-se questionar até que ponto isso se aplica à aprendizagem
da máquina. Humanos utilizam obras protegidas por direitos autorais para
aprender. Mas quando os robôs utilizam esses materiais para gerar conteúdo
disponibilizado ao público e explorado comercialmente, parece inequívoco o
dever de remuneração.
A prova de que as empresas de IA reconhecem
isso é o acordo fechado com o grupo alemão Axel Springer pela OpenAI, que
remunerará pelo uso de mídias como Bild, Politico e Business Insider.
Após meses de negociações frustradas para se
fechar um acordo similar, o New York Times (NYT) se tornou a primeira grande
empresa de mídia norteamericana a processar a OpenAI e a Microsoft sobre seus
robôs, “por lucrar com a infração massiva de direitos autorais, a exploração
comercial e a apropriação indevida da propriedade intelectual do Times”. O
jornal alega que as empresas têm buscado “surfar livremente sobre o
investimento massivo do Times em seu jornalismo, utilizando-o para construir
produtos substitutivos sem permissão ou remuneração”. Até há pouco tempo, um
internauta que quisesse, por exemplo, reproduzir a receita de macarrão com
queijo do NYT teria de bancar o pagamento de uma assinatura. Hoje ele pode
simplesmente pedi-la a um chatbot.
Uma opção para as mídias jornalísticas seria
bloquear o acesso dos robôs aos seus websites. Isso evitará as perdas, mas não
trará ganhos a ninguém. Máquinas treinadas com informação ruim, gerando
conteúdos com informação ruim, só produzirão resultados ruins: mais
desinformação e ameaças ao debate democrático.
Se os robôs das empresas de tecnologia geram
conteúdos utilizando dados apurados por jornalistas profissionais e lucram com
isso, nada mais razoável que parte desses lucros seja repassada a quem gerou
esses dados. Isso, sim, será um uso justo e benéfico a todos.
A língua da Justiça
O Estado de S. Paulo
É bem-vindo o pacto do Judiciário para
simplificar sua linguagem, hoje francamente excludente
Merece aplausos o ministro Luis Roberto
Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), ao lançar no início deste mês o Pacto Nacional do Judiciário
pela Linguagem Simples. Seu desafio, porém,
será converter uma boa ideia (adotar linguagem compreensível a qualquer pessoa)
e um ato simbólico (construir um “pacto nacional”) em prática efetiva. A
tradição do Judiciário desabona prognósticos muito otimistas, o que exigirá
mais do que um protocolo de intenções.
O pacto proposto aponta bons caminhos
práticos. Primeiro, reforça a recente recomendação do CNJ para a implementação
de linguagem simples, clara e acessível, incluindo o uso, “sempre que
possível”, de elementos visuais que facilitem a compreensão de suas decisões.
Segundo, defende a criação de manuais para orientar a população sobre
expressões técnicas dos textos jurídicos, o investimento na formação de
magistrados e servidores para elaboração de textos mais concisos e claros e a
criação do “Selo Linguagem Simples”, destinado a reconhecer e estimular boas
iniciativas.
O problema vai além do incentivo a aproximar
a Justiça da população ou da previsão de Libras e audiodescrição para ampliar
sua acessibilidade. É uma questão de tradição e cultura que contaminam as
esferas de poder desde que o Brasil é Brasil – essa tradição informa que
linguagem hermética e inacessível é sinônimo de gente culta e bem formada,
enquanto mensagens simples e breves nada mais são do que efeito da
superficialidade e baixo nível de conhecimento. Desse mal não padecem apenas
juízes: é marca universal entre operadores do direito, assim como na academia e
na burocracia. Tanto que uma legislação de 2017 define que é direito de
qualquer cidadão ser atendido em linguagem simples e compreensível, e não
consta que tivemos grandes avanços desde então.
O cultismo é a norma. A coloquialidade, a
exceção. Seja pela tradição ou pelo elitismo puro e simples, o fato é que
vigora a obsessão pelo rebuscamento da forma e pela linguagem erudita. Em bom
português: o gosto pelas palavras difíceis. Como afirmou o ministro Barroso,
trata-se de um eficiente instrumento de poder e exclusão. Decisões
excessivamente formais e extensas, cacoetes linguísticos e estrangeirismos
desnecessários acabam separando o mundo em dois níveis – aqueles que
compreendem e aqueles que não compreendem.
A história ensina a eficácia dessa lógica. No
passado, líderes religiosos tradicionais impuseram controle do acesso a
determinadas obras, confundindo o sagrado com o secreto para que suas
determinações se mostrassem incontestáveis. Regimes autoritários se prolongam,
entre outras coisas, pela restrição ao saber e à democratização do
conhecimento. Ainda hoje intelectuais modulam sua reputação com base na
capacidade de falar para poucos, deslegitimando acadêmicos com grande poder de
comunicação.
Como lembrou Barroso, quase tudo o que o Judiciário decide pode ser explicado de forma acessível. No que convém acrescentar: que o pacto pela linguagem simples seja também compromisso com a lei, sem criatividades tortuosas que tanto dificultam sua compreensão.
Esperança renovada
Correio Braziliense
A população brasileira, sobretudo a mais
carente, necessita que as divergências sejam colocadas de lado e um amplo
projeto de reconstrução nacional saia do discurso para a prática
A esperança sempre foi a marca do brasileiro.
Num país tão desigual, o sonho de uma vida melhor está presente na maior parte
da população. A chegada de um novo ano sempre reforça esse desejo. A sensação
de que um futuro promissor está próximo se torna mais forte. Pois que governo e
sociedade se unam para a construção de um Brasil que, efetivamente, seja rico
em oportunidades e não discrimine pessoas por questão de gênero, por opção
sexual, pela cor e mesmo pelo viés político, desde que respeitadas as regras
democráticas. É a pluralidade a maior riqueza de uma nação, por ser inclusiva e
tolerante.
Nos últimos anos, o país mergulhou no escuro,
em que o ódio e o desrespeito se tornaram marcas. O Brasil caloroso, simpático,
cordial deu lugar à divisão, com famílias e amigos rompendo relações movidos
pela ideologia. Não é esse o caminho para uma nação que tanto anseia pela
prosperidade. Os desafios colocados tanto do ponto de vista econômico quanto do
social são tão grandes, que não há espaço para a desunião. Muito pelo
contrário. A população brasileira, sobretudo a mais carente, necessita que as
divergências sejam colocadas de lado e um amplo projeto de reconstrução
nacional saia do discurso para a prática.
O Brasil, como mostram todas as estatísticas,
está envelhecendo rapidamente. As demandas da sociedade daqui por diante serão
enormes na área da saúde. Não se pode permitir que gerações que contribuíram
para o país que se tem hoje sejam empurradas para a vulnerabilidade, sem o
mínimo de dignidade. Infelizmente, o Brasil perdeu o chamado bônus demográfico,
período em que a maior parte da população está em idade ativa, com capacidade
para gerar e acumular riqueza para o futuro. Cabe, portanto, a todos encontrar
os caminhos alternativos e seguros que garantirão o tão propalado estado do
bem-estar social.
Sabe-se que todo o percurso passa por uma
educação de qualidade. O país precisa proporcionar às novas gerações um estudo
transformador, em especial às meninas que, quando afastadas das escolas,
acabam, muitas vezes, perpetuando a pobreza. A realidade está escancarada em
relação a esse quadro dramático. A maior parte das crianças que nascerão nos
próximos anos virá de famílias menos abastadas. Por isso, quanto melhor for a
qualidade do ensino nos colégios públicos, maiores serão as chances de esses
meninos e meninas ultrapassarem as barreiras impostas pelas desigualdades.
Há exemplos de sobra no mundo de que é
possível se construir um país mais justo. Mas isso requer vontade política e,
principalmente, uma sociedade que tenha a consciência de seus direitos e
deveres. Os brasileiros não podem se contentar com o mínimo e normalizar as
péssimas condições de vida, a falta de oportunidades, a violência que atinge,
em especial, pretos e pobres. Ainda é possível virar as páginas do atraso, às
quais os privilegiados se apegam, para que o fosso das diferenças sociais
diminua. O impacto da melhor distribuição de renda sobre a economia é
impressionante, pois beneficia consumidores, empresas e governo. É esse o
Brasil do futuro.
O novo ano está batendo à porta de todos. E não se trata apenas da virada de página do calendário. É um momento de reflexão sobre tudo o que foi feito e sobre o que está por vir. Os erros devem servir de lição e não se repetirem. Os acertos são a base da estrutura que prevalecerá de um país em que todos tenham vozes e sejam ouvidos. O Brasil tem tudo para mostrar ao mundo que pode mudar a história para melhor. Basta seguir o bom-senso, com fortalecimento da democracia, preservação ambiental, melhor gestão dos recursos públicos, política econômica consistente e, claro, valorização de um povo esperançoso, criativo e com uma cultura riquíssima. Que 2024 seja um marco para o país. Feliz ano-novo!
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