domingo, 31 de dezembro de 2023

Elio Gaspari - O golpe sonhava com o caos e uma GLO

O Globo

Não lembrar o 8 de janeiro é mais que uma injustiça

O 8 de janeiro de 2023 buscava o caos para obter um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), colocando tropas nas ruas, sob o comando de algum militar. Uma semana depois da posse de Lula, a insurreição precisava da desordem, situação com a qual Jair Bolsonaro sonhou várias vezes durante seus quatro anos de governo.

Nas mensagens trocadas nos dias que antecederam os ataques, falava-se em bloqueios de estradas, paralisação de refinarias e, finalmente, a “Festa da Selma”, com a invasão do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). O golpe dependia da decretação da GLO.

O ex-vice-presidente, general e senador eleito Hamilton Mourão disse, às 17h10m: “Repito que o governo do Distrito Federal é responsável, e caso não tenha condições, peça ao governo federal um decreto de GLO.”

O texto do decreto havia sido preparado no Ministério da Defesa, e a proposta foi levada a Lula. Ele recusou-a e, às 17h50m, de Araraquara (SP), decretou a intervenção federal na Secretaria de Segurança de Brasília.

Ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo em Brasília. Passado um ano, sabe-se que às 17h50m daquele domingo, tropas de choque da PM, policiais do Supremo Tribunal, da PF e do Congresso, com a participação tardia de efetivos do Exército, já haviam desocupado o STF e começavam a expulsar os invasores do Planalto e do Congresso.

As solenes lembranças do aniversário não deveriam esquecer os agentes da Polícia Legislativa do Congresso, da segurança do Supremo, e a parte da PM de Brasília que não estava metida na aventura. (A tropa de choque da PM, que chegou ao Congresso às 17h, retomou o Salão Verde da Câmara em apenas três minutos.)

A ‘Festa da Selma’ estava nas redes

O 8 de janeiro foi vasculhado pelo Judiciário e investigado pelo Congresso. Destruiu-se a teoria de que houve um “apagão da segurança” em Brasília. O ministro do STF Alexandre de Moraes encarcerou centenas de pessoas que fizeram o que não deviam. São poucos, contudo, aqueles que foram responsabilizados por não terem feito o que deviam.

Às 17h53m da véspera, um sábado, organizava-se em redes sociais a “Festa da Selma”, com um aviso:

“O QG de Brasília é apenas para hospedagem e concentração de convidados que estão chegando. (Referência ao acampamento de três mil pessoas montado em frente ao Quartel General do Exército.) É lá que vai ser combinado o horário e a data para a Festa da Selma. A festa não é no QG.”

Uma hora depois, o diretor da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, alertou o ministro da Justiça, Flávio Dino, para a afluência de caravanas de ônibus trazendo manifestantes capazes de “promover ações hostis e danos contra os prédios dos ministérios, do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal.”

Dino alertou o governador de Brasília, Ibaneis Rocha. Nada. Ibaneis liberou a Esplanada dos Ministérios para manifestações.

Às 21h38m, ao saber que Flávio Dino podia autorizar o uso da Força Nacional para garantir a segurança de Brasília, o major da PM Flávio Silvestre de Alencar, encarregado da segurança da Esplanada, disse que não acataria ordens da Força Nacional. (O major foi preso, depois.)

Uma manhã de avisos

Às 8h56m, do dia 8, o diretor da Abin, Saulo Moura da Cunha, comunicou ao general Gonçalves Dias, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que haviam chegado à cidade 105 ônibus: “Acho que vamos ter problemas.”

A essa altura circulavam nas redes centenas de mensagens programando a Festa da Selma: “É faxina geral, nos três Poderes.”

Às 8h50m a Abin informou que “após discussão acalorada entre acampados, ficou decidido que os manifestantes partirão em marcha para a Esplanada às 13h.”

Às 9h30m uma mensagem avisava: “Não vão invadir nada a não ser na hora certa de comer bolo da Festa da Selma.”

Meia hora depois: “Foco, galera. Tomar a Praça dos Três Poderes. (...) Tomar o STF, o Planalto e o Congresso.”

Fora de Brasília, às 10h, já haviam ocorrido duas tentativas de bloqueio aos acessos da Refinaria Henrique Lage, em São José dos Campos (SP). Uma centena de manifestantes estava diante do portão da Refinaria Alberto Pasqualini, em Canoas (RS).

O general Gonçalves Dias, chefe do GSI, disse à CPMI do Congresso que na manhã do dia 8 não recebeu qualquer relatório da Abin. Por isso, sendo domingo, ficou em casa. Às 12h30m, o Planalto estava guarnecido por 133 militares.

Como estava anunciado, às 13h a marcha saiu do acampamento em frente ao QG do Exército.

Pouco depois, caiu a ficha na Abin, e seu diretor temeu que acontecesse algo “igual à turma do Trump.”

13h23m: a marcha-maravilha

Às 13h23m, o secretário de Segurança de Brasília informou ao governador que estava “tudo tranquilo (...), bem ameno (...), suave (...), nenhum informe de agressividade.” Seis minutos depois, Ibaneis respondeu: “Maravilha.”

A essa altura o chefe da Segurança do Supremo, que estava no serviço, pediu à ministra Rosa Weber que ligasse de sua casa para Ibaneis. Ela não tinha o número, mas ligou para Flávio Dino, que prometeu providências.

Numa operação sincronizada, a marcha “pacífica e ordeira” dividiu-se. Entre as 14h45m e as 15h40m, rompeu as barreiras do Congresso, do Planalto e do Supremo Tribunal.

Graças à ação da Polícia Legislativa, os invasores não entraram no plenário da Câmara. Graças a uma tropa leniente da PM a invasão chegou ao Salão Verde às 15h15m.

O festim durou cerca de duas horas

Quando o Planalto foi invadido, estavam no prédio três generais e pelo menos três coronéis. (Gonçalves Dias havia chegado depois das 14h50 h.) O sargento encarregado da segurança das instalações disse à CPMI que recebeu ordem “de retrair para preservar a integridade física dos agentes.”

A CPMI resumiu o episódio do Palácio: “Não se tratou de ‘falhas vergonhosas’ ou ‘erros de avaliação’ cometidos por membros do GSI (....) mas sim omissão premeditada dos referidos agentes.”

O festim durou cerca de duas horas. No Congresso, chegaram ao Salão Verde. No Supremo, barbarizaram o plenário. No Planalto destruíram móveis. O relógio francês de D. João VI foi derrubado às 15h33m, recolocado no lugar às 15h43m e derrubado de novo às 16h12m.

Só às 16h40m a tropa do Planalto começou a desocupar os andares invadidos. Vinte minutos depois o choque da PM concluiu a retomada do Palácio.

Às 17h, duas horas depois de ter sido pedida, uma nova tropa da PM retomou o Salão Verde da Câmara.

O STF, o mais desguarnecido dos Poderes, foi retomado às 17h pela sua polícia, reforçada pela PM e pela PF. (Entre os presos, estava um vigilante terceirizado da segurança do Tribunal que terminara seu plantão horas antes.)

Quando Lula virou o jogo rebarbando a GLO, os três prédios invadidos já estavam sendo retomados. Isso não foi obra de notáveis, mas de servidores e de parte da tropa da PM de Brasília.

A paz política pode recomendar que não se cutuquem feridas, mas quando o 8 de janeiro vira efeméride, deixar de lembrá-los é mais que uma injustiça, é um estímulo para quem ficou em cima do muro, sem ouvir nem ver o que acontecia.

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

Verdade.

Daniel disse...

Há algumas semanas, o filósofo bolsonarista Denis Rosenfield afirmou na sua coluna que "não houve tentativa de golpe", foram apenas manifestações de inconformidade de cidadãos revoltados... Há 5 anos o mesmo "filósofo" fazia campanha eleitora explícita para Jair Bolsonaro e acusava a Esquerda e o PT de antidemocráticos. Um colunista e jornalista de verdade, aqui, relembra os fatos verdadeiros e DESMENTE o pseudofilósofo bolsonarista.