Folha de S. Paulo
Da guerra, sobressaem o aumento da capacidade
de assassinar, a desumanização do outro e a polarização da empatia
A guerra russo-ucraniana parece caso exemplar
da tese pós-modernista de apagamento virtual da realidade. Substituído por
números e discurso burocrático, o morticínio sumiu da mídia. No entanto,
continua. O espaço midiático dado aos mortos foi ocupado por israelenses e
palestinos com contagem alarmante, mas sem que nada justifique a supressão dos
europeus. Fica implícita a suposição de que o público estaria saturado, não de
guerra propriamente, e sim de um tipo de conflito.
Real é a perenidade da violência extrema, obsessiva no imaginário contemporâneo. Quem nunca viu guerra de frente é para ela atraído por noticiário ou filmes. Diz Erasmo num adágio que "bem parece a guerra a quem não vai nela" ("bellum dulce inexpertis"). Não é gozo com sofrimento alheio, mas espanto ético com a justificação de atos considerados imorais numa situação normal, senão perplexidade ante o enigma do homem como único mamífero que se autodestrói. É frustrante tentar compreender o brutalismo em grande escala, cujas vítimas imediatas são civis indefesos e crianças.
Cabe ao jornalismo o metabolismo social desse fenômeno. Uma
coisa, porém, é a construção midiática do acontecimento, outra, o fato bruto
das atrocidades: os boletins ficam aquém da realidade dilacerada de corpos e
nervos. Assim como a extensão da guerra à vida cotidiana normaliza o horror, o
jornalismo centrado em ocorrências (baixas militares, vítimas civis), pode
apenas acomodar, como no espetáculo, o olhar do espectador ao processamento de
seu medo. E, se aquilo que se lê ou se vê não é compartilhado pelo sentimento
comunitário, o fato não existe.
Toda a atenção dada à notícia continuada
obedece a um ciclo de interesse análogo ao dos relatos ficcionais. Quanto mais
conhecidos os personagens, maior a empatia. O assassinato de uma mãe palestina e
filha numa igreja por um sniper, índice "balcânico" de limpeza
étnica, passou em branco. Não se sabe das 24 horas de desesperança no cotidiano
de Gaza. É como se não houvesse realidade atroz porque não aparece no espelho
da mídia.
Por isso, algo tão presente até há pouco,
como as chacinas no front russo-ucraniano, dissipa-se, não por irrelevância,
mas por fadiga do já conhecido e emergência do mais atual. Não é tanto o fato
da morte brutal em si que mobiliza consciências, e sim a sua atualidade
compassiva. Saber-se humano é ser capaz de atualizar sua própria humanidade.
Dos números de guerra, entretanto, sobressaem apenas o aumento da capacidade de
assassinar, a desumanização do outro (o terrorista do Hamas, o sniper
israelense, o bombardeio de hospitais, o infanticídio) e a polarização da
empatia. Nos relatórios, na mídia, estatísticas são verdades frias, humanamente
neutras. Junto com a pública "fadiga de compaixão", apagam a
realidade.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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