Folha de S. Paulo
Crise de uma década estimula planos ruins de
criar algum tipo de governo parlamentar
O "semipresidencialismo" foi um
assunto do ano, mais uma vez. Assunto ou ruído de fundo, tem sido assim desde
que o Congresso depôs Dilma Rousseff. Era assim o jeitão do governo de Michel Temer (PMDB),
"semiparlamentar", dominado por parte do comitê de deputados e
senadores que derrubou Dilma. Foi de certo modo assim sob as trevas de Jair
Bolsonaro, um parasita "antissistema" que se aproveitava do que havia
da máquina burocrática ainda funcional e do governo que restava, entregue a
premiês do centrão.
Arthur Lira (PP-AL), presidente da
Câmara e trator legislativo, vez e outra sugere, de leve e quando convém, que
pode liberar a tramitação de um projeto de semipresidencialismo. Ministros do
Supremo, como Luís Barroso e o politizador geral da Justiça Gilmar Mendes, acabam
de defender a mudança de sistema de governo.
A vulgarização do impeachment, a limitação de prerrogativas do Executivo e o avanço parlamentar sobre o Orçamento estimulam especulações de que viveríamos já sob alguma espécie de semipresidencialismo. O fato circunstancial de que o governo, no caso Lula 3, seja minoritário em números e ideias no Congresso leva mais uma aguinha para esse moinho conceitual. Na falta de pensamento melhor sobre o problema, usamos a palavra, mal e mal, para definir esse arranjo ruim e instável de quase uma década.
Uma questão interessante é o motivo desse
zum-zum, desse ruído de fundo e das sugestões de que se acabe com o poder
presidencial. Nas propostas de mudança, o presidente da República seria
formalmente quase decorativo. É um projeto de parlamentarismo com outro nome,
talvez para não confrontar o resultado do plebiscito de 1993. Por que essa
ideia está no ar? A quem interessa?
O argumento bem pensante diz que o novo
sistema permitiria a dissolução menos traumática de um governo sem prestígio,
com a convocação de novas eleições. Na redemocratização, 2 de 5 presidentes
foram depostos; Bolsonaro não o foi por cumplicidade do sistema político; Lula
foi preso para que não pudesse se candidatar em 2018.
O fato de a esquerda ganhar todas as eleições
presidenciais desde 2002 (fora o arranjo de 2018) pode ser um motivo. Sob algum
sistema parlamentarista, a esquerda dificilmente chegaria ao poder federal, que
ficaria sob o domínio de algum tipo de centrão.
Parlamentares, gente vocal do "sistema
de Justiça" (ministros, desembargadores, juízes, procuradores) e boa parte
da cúpula militar gostam da ideia. A perspectiva de chutar a esquerda para
escanteio talvez também agrade a donos do dinheiro grosso.
Parece remota a possibilidade de que tal
mudança venha a ocorrer, a não ser em caso de uma nova situação de desordem
profunda. O eleitorado gosta de escolher seu presidente e costuma ser mais
desconfiado dos "políticos", os parlamentares que elege.
Poderia haver um sistema em que um
parlamentar (nomeado candidato principal do partido) fosse escolhido nas urnas
como premiê, na prática diretamente. De resto, para que a coisa fosse
minimamente séria, seria preciso mudar o sistema de eleição de deputados (para
alguma variante de distrital misto), resolver a representação excessiva de
estados pouco povoados etc. Essa reforma jamais andou e dificilmente andará.
Nisso, o status quo está feliz consigo mesmo.
Mas não se quer aqui dar a impressão de que
essa virada parlamentarista seja por ora viável, discutindo-se um projeto de
mudança. Mais relevante é notar o zum-zum contínuo, sintoma de crise política
fervendo baixo. Importante é que o Congresso domine entre 25% e 30% do dinheiro
que resta livre do Orçamento (excluídos os 92% de despesas obrigatórias), sem
ser responsável pelo que faz. Importante é que a ameaça ou o engavetamento de
pedidos de impeachment tenham se tornado poderes explícitos na mão do presidente
da Câmara. Ou que os partidos dominantes se tornem mais e mais uma corporação
ou cooperativa de uso de recursos estatais para a reeleição de seus caciques.
Esses poderes do Congresso são tantos que os presidentes da República
descaradamente cuidam de formar bancadas no Supremo, a fim de tentar se
defender.
A relativa calmaria democrática de 1995-2010 ruiu. O que ficou no lugar é uma maçaroca mutante, com risco gravíssimo de sinistro, como em 2019-2022.
Nenhum comentário:
Postar um comentário