Por Caio Sartori / Valor Econômico
Autor de ‘Como as Democracias Morrem’ e ‘Como
Salvar a Democracia’, professor de Harvard elogia união da política brasileira
e faz críticas ao Partido Republicano
Notório analista da crise das democracias
mundo afora, o cientista político americano Steven Levitsky avalia que o Brasil
reagiu melhor ao 8 de janeiro do que os Estados Unidos à invasão do Capitólio,
em 2021. Não só: mesmo na forma de lidar com os ímpetos autoritários de Jair
Bolsonaro e Donald Trump como um todo, afirma o professor de Harvard, as elites
políticas e o Judiciário brasileiros tiveram desempenho mais sólido. Os atos
golpistas que resultaram na depredação dos Poderes completam um ano nesta segunda-feira.
“Depois do 8 de janeiro, os políticos do Brasil, quase sem exceções, foram muito rápidos em repudiar completamente o ataque ao Planalto e ao STF e em pedir uma investigação sobre os atos. Não procuraram achar desculpas para as causas daquilo, subestimar a seriedade ou defender os que se insurgiram”, diz em entrevista por vídeo ao Valor o autor do bestseller: “Como as Democracias Morrem” e do recém-lançado “Como Salvar a Democracia”, ambos em parceria com o colega de Harvard Daniel Ziblatt e publicados no Brasil pela Companhia das Letras.
Muitas das explicações de Levitsky sobre o
porquê de a situação americana ser mais delicada giram em torno do Partido
Republicano, um dos dois que de fato existem na política americana. O outro é o
Democrata. Os republicanos, observa o pesquisador, encontram-se reféns de
Trump, que deve ter facilidade para se consolidar mais uma vez como o candidato
da sigla à Casa Branca neste ano - as primárias começam no dia 15 deste mês. A
legenda não só falhou em contê-lo, como o alimentou.
“Não apenas Donald Trump, como a maioria dos
líderes republicanos se recusou a aceitar de forma clara, sem ambiguidade, o
resultado eleitoral [de 2020]. No Brasil, quase todos os políticos de direita,
incluindo os mais importantes deles e os aliados de Bolsonaro, como o
presidente da Câmara e os governadores de Minas Gerais e São Paulo, aceitaram
publicamente o resultado e parabenizaram Lula”, compara. “Isso deixou Bolsonaro
quase isolado, de um jeito que Trump não ficou. O Partido Republicano desempenha
um papel decisivo de proteger e resgatar a carreira política de Trump.”
Trump, explica Levitsky, é a figura mais
popular do partido, e qualquer republicano que tenha ambições eleitorais
precisa “estar em harmonia” com ele. Uma relação de dependência muito calcada
na estrutura bipartidária daquele país.
“No Brasil, como a direita é fragmentada, ou
porque Bolsonaro na prática não tem um partido claro, seu destino é menos
amarrado ao de outros políticos de direita, como os governadores de Minas e São
Paulo, membros do Congresso”, diz. “Eles sabem que podem continuar suas
carreiras políticas com ou sem Bolsonaro. Não precisam do apoio de Bolsonaro no
mesmo nível que os republicanos precisam de Trump. Acho que essa é a grande
diferença.”
"Democracia brasileira pode ter sido até mais
ameaçada do que se imaginava”
Foi fundamental, avalia o cientista político,
a forma como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu reunir os chefes
dos Poderes, ministros do Supremo e governadores imediatamente após o 8 de
janeiro. Trata-se de um movimento que está no cerne do que Levitsky e Ziblatt
defendem nos dois livros sobre democracia: quando ela está ameaçada, a elite
política precisa abraçá-la de forma “conjunta, pública e enérgica”, a despeito
de diferenças ideológicas.
A política americana, pontua, foi incapaz de
fazer algo semelhante. “Acho que isso se dá principalmente por causa de uma
ignorância. Porque ninguém vivo nos Estados Unidos experimentou de fato ter
perdido a democracia. Pode ser uma ignorância baseada na crença no
excepcionalismo americano, na ideia de que a democracia americana vai sempre
ser forte não importa o que aconteça.”
Talvez por ser uma democracia mais jovem,
avalia ainda o professor, o Brasil tenha uma classe política mais consciente do
que foi a ditadura militar. “O Partido Republicano, como escrevemos no nosso
novo livro, em geral se afastou da democracia”, analisa. “Acho que existem
visões distintas sobre a direita brasileira, mas ao menos em 2022 e 2023 esses
políticos fizeram a coisa certa. Não posso dizer o mesmo sobre os Estados
Unidos.”
Mesmo que no dia 6 de janeiro de 2021 os
líderes republicanos tenham repudiado a invasão do Capitólio, com o tempo o
partido foi mudando de retórica, aponta Levitsky. Passou a defender quem se
engajou na revolta, a menosprezar o peso dela ou a pedir perdão aos que foram
processados. Também se recusou a defender uma investigação independente e,
sobretudo, a condenar Trump no Senado, o que poderia torná-lo inelegível.
“Então, uma grande e óbvia diferença entre
Brasil e Estados Unidos foi que a Corte eleitoral brasileira baniu Bolsonaro de
participar da política por oito anos. Isso teria acontecido nos Estados Unidos
se o Senado tivesse condenado Trump”, explica. “Enquanto Trump continua uma
ameaça e pode facilmente ganhar as eleições de 2024, Bolsonaro no momento é uma
figura relativamente marginal na política brasileira.”
Levitsky também destaca, portanto, o papel do
Judiciário brasileiro na contenção da ameaça autoritária. Não sem vaticinar
que, no futuro, o país vai precisar discutir com mais afinco a intensa
participação da Justiça na vida política. Em suma, pode-se argumentar que o
Supremo assumiu um papel descomunal, diz ele, mas não sem ignorar que o momento
o exigia.
"Intervenção militar foi um risco muito maior
no Brasil do que nos EUA”
“É uma faca de dois gumes e provavelmente,
nos próximos anos, os brasileiros vão ter que debater e entender formas de
reduzir a influência política do Judiciário, mas no momento eu acho que a Corte
fez a coisa certa”, opina. “A democracia brasileira foi ameaçada durante o
período Bolsonaro e as evidências continuam a aparecer. Talvez tenha sido até
mais ameaçada do que imaginávamos.”
Outra diferença nítida entre as ameaças nos
dois países, segundo o autor, envolve os militares. Se no Brasil o capitão
Bolsonaro esteve mais perto de receber o beneplácito de oficiais para colocar
em curso uma ruptura, Trump não teve o mesmo gostinho. Ao contrário: os
militares que integraram o governo dele, diz Levitsky, foram vozes críticas e
deixaram claro que não compactuavam com os ímpetos autoritários.
“Em parte, as duas tentativas de golpe
falharam porque precisavam que Trump e Bolsonaro tivessem o apoio dos
militares. E qualquer país da América Latina sabe que não se pode dar um golpe
presidencial sem o suporte deles”, aponta. “Acho que a intervenção militar foi
um risco muito maior no Brasil do que nos Estados Unidos. Bolsonaro realmente
pensou que poderia ter, e alguns oficiais queriam isso.”
Diferentemente de Bolsonaro, recorda
Levitsky, Trump não tem trajetória militar, conta com poucos amigos fardados e
falhou na compreensão de como funciona a relação deles com a política
americana: “Bolsonaro avançou mais nisso porque conhece os militares, tem
amigos, foi capaz de politizar as Forças Armadas ou ao menos setores delas. Ele
próprio é um militar.”
Outro ponto bem sustentado nos livros de
Levitsky e Ziblatt é que políticos com vocação autoritária costumam chegar ao
paroxismo quando obtêm um segundo mandato. O primeiro costuma ser de testes. É
por isso que o professor é pessimista quando o Valor lhe pede para
prever como seria um eventual novo governo de Trump, que tem aparecido bem
posicionado nas pesquisas em disputa contra o atual presidente, o democrata Joe
Biden. Como exemplos de presidentes que tiveram primeiros mandatos mais discretos
e solaparam a democracia quando voltaram ao poder, cita Daniel Ortega, da
Nicarágua, e Victor Orbán, da Hungria.
No primeiro governo, Trump “foi muito
ignorante sobre como fazer política, operar o Estado, e falhou em muita coisa
porque realmente não sabia o que estava fazendo”, de acordo com Levitsky. O
magnata confiou no establishment do Partido Republicano, algo que dificilmente
repetirá se voltar à Casa Branca.
“Vai preencher o Estado com trumpistas
absolutamente leais, pessoas que vão fazer o que ele disser para fazer. E, não
sei quão bem sucedido vai ser, mas vai tentar muito mais do que na primeira vez
usar o Estado e as instituições como armas contra seus rivais políticos. Para
perseguir os rivais, investigar, espiar, ameaçar”, vislumbra. “É impossível
saber quão bem sucedido ele seria, mas estou bem confiante de que, se eleito,
vai tentar com bem mais força do que na primeira presidência.”
Sobre o governo Lula, Levitsky tece uma
análise equilibrada. Elogia o presidente por ser democrata, experiente e capaz
de governar um país difícil como o Brasil por meio de coalizões, além de
avaliar que a economia está indo bem. É crítico, no entanto, ao abordar a
política externa, matéria na qual Lula estaria “preso aos anos 1970”. Também vê
poucos movimentos do líder petista para forjar novas lideranças no partido.
Mas, de maneira geral, o diagnóstico do cientista político é simples: depois de
anos turbulentos, o mero restabelecimento de certa normalidade configura um
avanço.
“São coisas essenciais após o governo
Bolsonaro. Em última instância, o governo Lula pode vir a ser bastante mediano,
provavelmente não vai ter os grandes sucessos que teve de 2003 a 2010. Mas só
de restabelecer um governo competente e as práticas democráticas já é um grande
passo para frente”, afirma. “Nesse ponto, é bem similar a Biden.”
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