Instituições deram prova de força ao derrotar
golpismo
Valor Econômico
Ainda há pela frente um caminho de
pacificação no país, além da identificação e punição dos mentores e
organizadores dos atos golpistas
Um ano após a infame tentativa de golpe de Estado, com a invasão e depredação da sede dos Três Poderes - a mais séria investida para subverter a ordem legal desde o fim do regime militar - o país ainda acerta as contas com o passado. O regime democrático resistiu graças à ação imediata do Judiciário, do Executivo, Legislativo e das Forças Armadas, cujo comando alinhou-se na defesa da Constituição. Trinta pessoas foram condenadas até agora, e mil das 1.430 denúncias apresentadas tiveram ação penal suspensa a pedido do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, e poderão ser objeto de acordo com a Procuradoria Geral da República, com penas leves. Falta ainda outra ação fundamental: levar à Justiça quem planejou, financiou e organizou o levante em Brasília.
Os golpistas eram seguidores radicais do
ex-presidente Jair Bolsonaro, estimulados à revolta por propagações de fake
news e por pregações cotidianas da extrema direita contra as urnas eletrônicas
e o resultado das eleições, classificado de fraudulento desde antes da votação.
Há pistas várias de que havia um plano para reagir à vitória de Lula, como
demonstram as minutas de intervenção no Tribunal Superior Eleitoral encontradas
com ministros fiéis a Bolsonaro, como Anderson Torres, da Justiça.
Mesmo com o controle do aparato de Estado,
Bolsonaro não conseguiu se manter no poder. Apesar do apoio de alguns generais
da ativa e da reserva, os comandantes das Forças Armadas recusaram-se a apoiar
aventuras autoritárias. Diante da barreira inesperada dos comandos militares,
foi posto em marcha um plano para criar um ambiente de caos no qual as Forças
Armadas seriam constrangidas a intervir e, então, diante da pressão de adeptos
do golpe na alta hierarquia das polícias militares e dos quartéis, se colocar
diante de um fato consumado.
Anderson Torres, indicado pelo governador do
Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB) para a secretaria de Segurança Pública,
responsável pela ordem na capital, saiu estrategicamente de férias antes das
investidas contra a sede dos Poderes. Caravanas de seguidores do ex-presidente
acamparam meses a fio sem serem molestadas em uma zona de segurança nacional,
em frente ao QG do Exército, rotineiramente vedada a aglomerações civis. A
polícia não pode desalojar manifestantes ali instalados sem autorização militar.
Dos acampamentos partiram os golpistas sem que fossem contidas pelo esquema de
segurança do DF, apesar dos avisos da Polícia Federal de que poderia haver
sérios problemas de ordem pública.
Os golpistas possivelmente cogitaram que,
diante do caos que seria instalado, o governo recorresse à operação de Garantia
da Lei e da Ordem, colocando o DF nas mãos dos militares que, então, seriam
sensíveis aos apelos dos manifestantes e dos militares que apoiavam o
movimento. O governo Lula não mordeu a isca e nomeou um interventor no DF,
enquanto o ministro Alexandre de Moraes ordenou as prisões de Anderson Torres e
do comandante geral da PM, Fábio Vieira, além do afastamento do governador
Ibaneis Rocha. A recomposição do esquema de repressão retomou o controle da
situação em algumas horas.
Um ano depois, a reconstituição dos fatos
ensina que as instituições democráticas tiveram força e souberam se opor às
investidas radicais. O Supremo Tribunal Federal já havia iniciado investigações
sobre os instigadores de manifestações contra a democracia e o uso das redes
sociais para espalhar mentiras em série. As Forças Armadas não se seduziram
pela cantilena autocrática. O Executivo se recompôs rapidamente após a
desmontagem proposital do sistema de segurança da capital. Os presidentes da
Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, condenaram na primeira hora
a aventura golpista. Todos os governadores foram a Brasília mostrar seu repúdio
à tentativa de derrubar o regime democrático e um presidente eleito legalmente
pelo povo brasileiro.
O radicalismo primitivo dos manifestantes, a
falta de líderes visíveis da revolta no local e de um plano geral de ação
tenderam a facilitar a interpretação de que tudo foi uma arruaça de uma minoria
inconsequente. O que corria nas redes sociais, como revela o ministro Alexandre
de Moraes (O Globo, 4/1), mostra o contrário: a iniciativa era séria e poderia
desencadear consequências muito graves. As investigações apontaram três planos
contra ele, que envolviam até homicídio.
Houve uma tentativa de ruptura da democracia no país, felizmente fracassada pela falta de apoio popular e militar e pela atitude decisiva dos Três Poderes. A destacar também o papel da imprensa ao longo do ano eleitoral e durante a tentativa de golpe. Ela cumpriu fielmente seu papel de fiscalizar o poder e de ser um dos pilares da democracia. Como observou o atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso, os episódios de 8 de Janeiro foram o “ponto culminante” de um processo contínuo de “desrespeito às instituições e desapreço pela democracia”. Mas, posta à prova, a democracia mostrou sua resistência, graças a atuação dos Poderes e ao amplo apoio da sociedade. Ainda há pela frente um caminho de pacificação no país, além da identificação e punição dos mentores e organizadores dos atos golpistas, dentro dos mais rigorosos ritos da lei. Mas há hoje motivos para comemorar e nada deveria ser mais importante que isso, sobretudo para aqueles que foram eleitos democraticamente. O momento é de deixar de lado vieses partidários e celebrar a força das instituições.
O Globo
País detém terceira maior reserva global de
conjunto de 17 minérios essenciais à transição energética
A redução drástica das emissões de gases
poluentes na atmosfera, medida imprescindível para deter o aquecimento global,
depende de investimentos vultosos na exploração de metais. Para que o mundo
chegue ao estágio de neutralidade em carbono até 2050, será preciso multiplicar
por 15 a atual produção de energia eólica, por 25 a solar e por 60 a de carros
elétricos e baterias. Esse cenário fez crescer a procura pelos minerais
necessários para produzir turbinas eólicas, painéis solares e componentes de
veículos elétricos.
Na busca pelas matérias-primas da transição energética, o Brasil tem papel crucial, por contar com reservas de alguns dos metais mais procurados. No ranking mundial de reservas em terras raras, nome dado a 17 elementos químicos necessários à transição energética, o país é o terceiro. Elementos encontrados nas terras raras são essenciais para fabricar baterias, ímãs de discos rígidos de computadores e carros elétricos, painéis solares, turbinas eólicas, lâmpadas de LED e uma série de outros produtos, inclusive bélicos.
Como revelou
reportagem do GLOBO, empresas australianas e canadenses estão
numa corrida para encontrar jazidas de terras raras. Minas Gerais conta com
três grandes projetos. Juntos, poderão somar investimentos de R$ 4,6 bilhões.
Em Goiás, onde uma empresa planeja começar a exploração neste ano, uma nova
jazida foi descoberta. Na Bahia, outra companhia obteve permissão para examinar
460 quilômetros quadrados. Há depósitos também no Tocantins.
A China tem as maiores reservas, mas as
terras raras encontradas no Brasil estão em profundidade menor. Os chineses
extraem entre 800 gramas e 1 quilo por tonelada de argila. A expectativa de uma
companhia instalada em Minas é retirar entre 2,5 e 3 quilos por tonelada. Fora
a produtividade, o que anima as mineradoras é a perspectiva de alta no preço
dos metais. Pelas contas da Energy Transitions Commission, a demanda não
atendida apenas por um dos 17 elementos das terras raras, o neodímio, poderá
ser até 30% maior já em 2030.
Existe, é verdade, a possibilidade de a
transição energética não ocorrer na velocidade desejável. Caso isso se
confirme, as estimativas sobre a escalada dos preços de alguns minerais cairão.
No caso das terras raras, porém, a situação geopolítica reforça a confiança.
Hoje a China domina quase todo o mercado. Já em 1992 Deng Xiaoping dizia: “O
Oriente Médio tem petróleo, a China tem terras raras”. Em 2010, os chineses
pararam de exportar para o Japão depois de um incidente diplomático. Para
diminuir a dependência da China, as potências ocidentais têm incentivado a
pesquisa e a exploração dos minerais em diversos países, entre eles o Brasil.
As empresas instaladas aqui se beneficiarão
com a venda de minério, mas fariam melhor em agregar valor ao produto. Criar
uma indústria intermediária capaz de produzir óxidos dos minerais poderá render
até dez vezes mais. Se souber extraí-los sem provocar danos ao meio ambiente e
conseguir montar um parque industrial, o Brasil contribuirá para a transição a
um mundo neutro em carbono e ainda lucrará com isso.
Aposta na sobrevivência digital expõe
tragédia climática dos arquipélagos
O Globo
Diante da ameaça de afundar, Tuvalu tenta
preservar cultura, costumes e manter Estado ativo no metaverso
Não é de hoje que representantes do governo
de Tuvalu,
pequeno arquipélago no meio do Pacífico, comparecem às COPs, reuniões sobre o
aquecimento global, para clamar pela redução das emissões de gases do efeito
estufa. Na COP26, realizada na Escócia em 2021, o ministro das Relações
Exteriores das ilhas, Simon Kofe, gravou um pronunciamento com água do mar até
os joelhos para demonstrar como Tuvalu já começa a ser coberto pelo Pacífico.
Nas ilhas, é realidade aquilo que, para muitos países, ainda pode parecer
previsão longínqua.
Diante do risco de desaparecimento, Tuvalu
apresentou na COP28, em Dubai no ano passado, um plano para sobreviver no
metaverso, em forma digital. O projeto “Future Now” (futuro agora) mapeou
digitalmente, em três dimensões, as 124 ilhas e ilhotas do país. Prevê lançar
um passaporte digital para que os cidadãos possam continuar a exercer sua
cidadania mesmo que o território desapareça sob o oceano. Haverá eleições,
registro civil de nascimento, casamento, herança e tudo aquilo que hoje existe
para os habitantes locais.
Ao mesmo tempo, o projeto começou a
digitalizar os costumes, danças, canções, histórias ouvidas dos avós e toda
sorte de manifestação cultural na forma de texto, som e imagens. O acervo
ficará disponível na “nuvem”, como uma “arca digital” de Tuvalu, afirmou Kofe.
As ilhas do Pacífico pretendem se tornar o primeiro país digital da história,
“ocupado” por habitantes obrigados a viver noutros países. O termo “arca
digital” faz referência à lenda da Arca de Noé, construída para salvar todas as
espécies animais do dilúvio enviado pela divindade bíblica para punir a
humanidade por seus pecados.
O dilúvio capaz de afundar Tuvalu é hoje mais
que uma possibilidade. Cientistas da Climate Central, entidade independente, em
associação com a Universidade de Princeton e o Instituto Potsdam de Impacto do
Clima, da Alemanha, publicaram recentemente na revista científica Environmental
Research Letters um estudo simulando o que acontecerá na prática com países
litorâneos se a temperatura global subir 1,5°C em relação ao nível
pré-industrial (meta do Acordo de Paris) ou 3°C (projeção caso o aquecimento
mantenha o ritmo atual). Com base nos dados do Painel Intergovernamental
sobre Mudanças
Climáticas (IPCC) para 100 cidades à beira-mar em 39 países
(inclusive o Brasil), o estudo concluiu que, mesmo na hipótese mais otimista,
os países litorâneos terão de se precaver.
No Rio, os efeitos da alta de 1,5°C seriam
modestos, mas com a temperatura subindo 3°C o bairro de Botafogo ficaria
coberto d’água. As regiões mais atingidas, diz o estudo, estão na Ásia — China,
Índia, Indonésia e Vietnã. Mas nenhum desses países corre o risco de sumir do
mapa como Tuvalu. Ainda que a tecnologia digital ofereça meios para preservar a
cultura e os costumes locais, a situação do pequeno arquipélago demonstra o
tamanho da ameaça que paira sobre o planeta.
Folha de S. Paulo
Superávit histórico ajuda o país; governo
deveria conter pendores protecionistas
Há boas e más notícias no impressionante saldo
comercial de US$ 98,8 bilhões registrado pelo Brasil em 2023. Os
aspectos positivos decerto superam os negativos, mas não por margem tão larga
quanto a das exportações sobre as importações.
Superávits comerciais não são necessariamente
sinais de pujança econômica. Países bem-sucedidos têm déficits em suas balanças
—e o exemplo mais notório é o dos Estados Unidos. A análise do indicador
depende de sua composição e das circunstâncias.
No Brasil de hoje, o resultado é bem-vindo
devido ao ingresso expressivo de divisas, que contribuiu para a queda da
cotação do dólar e da inflação, e ao bom desempenho das exportações, sobretudo
de produtos primários.
Mesmo com queda de 6,3% nos preços dos
produtos vendidos, segundo dados do governo, o volume embarcado teve alta de
8,7%. Em termos nominais, as exportações e o superávit bateram recordes, mas o
país já registrou cifras maiores como proporção do Produto Interno Bruto, ou
seja, considerando o tamanho da economia.
Os setores agropecuário e extrativo (petróleo
e minério de ferro, principalmente) responderam pelo aumento dos embarques, com
altas de de 9% e 3,5%, respectivamente. O Brasil,
como se sabe, é competitivo nessas commodities, mas os números
anuais variam muito de acordo com as flutuações do mercado global.
Já a indústria de transformação, que trabalha
com produtos de maior valor agregado, sofreu queda de 2,3% e teve sua
participação no total exportado reduzida a 52,2%.
O mais problemático no saldo comercial do ano
passado, entretanto, é que o recorde se deveu muito mais à queda das
importações, de 11,7%, do que à alta das exportações, de apenas 1,7%. Menos
compras do exterior costumam ser sinais de enfraquecimento da demanda
doméstica, seja das famílias ou das empresas.
No caso brasileiro, houve alarmante queda dos
investimentos nacionais, que recuaram de já insatisfatórios 18,3% do PIB para
16,6% entre os terceiros trimestres de 2022 e 2023 —especialistas apontam que o
país deve almejar uma taxa de ao menos 25% para um crescimento sustentável.
Parcela importante dessa rubrica são
aquisições, por parte de empresas, de máquinas e equipamentos destinados à
ampliação da capacidade produtiva.
Países devem buscar a ampliação do comércio
exterior em todas as frentes, como meio de obter eficiência econômica e
bem-estar social. O governo petista acertará se deixar de lado seus pendores
protecionistas e não promover retrocessos na precária abertura do Brasil ao
restante do mundo.
Câmeras sem foco
Folha de S. Paulo
Sem monitoramento, Tarcísio não pode atestar
ineficácia do programa de segurança
"Qual é
a efetividade da câmera corporal na segurança do cidadão? Nenhuma",
declarou neste ano, sem apresentar maior fundamentação, o governador de São
Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Entre idas e vindas desde a campanha
eleitoral, Tarcísio não abandona a má vontade diante da inovação adotada em
2021 pela polícia paulista, cujos resultados, promissores, demandam mais
estudo.
O impacto da tecnologia na redução das mortes
nos batalhões em que foi implementada —queda de 85%
na letalidade policial em 2021, comparada ao ano anterior— deve ser
lido à luz de outras medidas adotadas no mesmo período. Entre elas, a expansão
do uso de instrumentos não letais de força, como tasers (armas de choque).
Mas a dificuldade de isolar a câmera de
outros fatores não é argumento contra o uso da ferramenta.
Justamente porque a segurança pública é um fenômeno multifatorial, a tecnologia
deve ser integrada a uma gama de políticas de redução de mortes, e o seu uso
precisa ser monitorado por estudos que avaliem o impacto da política.
Entretanto a administração de Tarcísio não só
descontinuou, em setembro de 2023, estudo que avalia o uso de câmeras
policiais, como também dificulta o acesso a dados que poderiam ajudar a
análise.
Pesquisadores ouvidos pela Folha ressaltam
que a PM não divulga dados sobre as áreas patrulhadas por batalhões que usam
câmeras nem os boletins de ocorrência dos agentes durante o expediente. Sem
transparência, o governo não pode atestar ineficácia.
Os dados existentes caminham em direção
contrária à fala do governador. A primeira parte do estudo feito pela Fundação
Getúlio Vargas nos batalhões com câmera em 2022 revelou alta no registro de
crimes em geral subnotificados, como violência doméstica (102%), e em
apreensões de arma de fogo (24%), além de redução de mortes de policiais em
serviço ao menor nível em 30 anos.
Mesmo assim, o governador segue no sentido de
desmantelar a política. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, em 2023
foram gastos R$ 680 milhões em equipamentos para as polícias, além das câmeras.
Mas Tarcísio cortou cerca
de R$ 26,2 milhões do programa que usa a tecnologia.
Câmeras corporais não são panaceia. Por isso, diretrizes sobre aplicação, armazenamento e controle são necessárias, além do monitoramento da eficácia da política.
A ferida aberta do 8 de Janeiro
O Estado de S. Paulo
Muito se fala do dia da tentativa de golpe,
mas não se enfrentam suas causas. Além de punir os mandantes, é preciso superar
a lógica que motiva tanta gente a hostilizar a democracia
Há um ano o Brasil sofreu uma tentativa de
golpe. Não eram manifestantes exercendo sua liberdade de expressão, mas grupos
e pessoas que agiram contra as instituições democráticas e o resultado das
eleições presidenciais. A invasão e a depredação das sedes dos Três Poderes
configuram-se como um trágico episódio da história nacional, que não se deu por
acaso – foi engendrado e alimentado ao longo de anos pelo bolsonarismo – e
cujos efeitos continuam e continuarão sendo sentidos por anos. O 8 de Janeiro
não é mero fato pretérito, mas uma ferida aberta na sociedade e no Estado
brasileiros. Continua havendo muita gente convencida de que, se o regime
democrático não seguir suas ideias e escolhas, ele já não seria democrático e,
portanto, poderia ser derrubado. Esses liberticidas se dizem defensores da
Constituição, mas na verdade são seus maiores inimigos, porque não aceitam
qualquer forma de acordo político com aqueles de quem discordam.
O 8 de Janeiro impôs uma tarefa imensa ao
Estado brasileiro; em especial, ao Poder Judiciário. A tentativa de golpe não
podia ficar impune, e o Supremo Tribunal Federal (STF) ofereceu uma resposta
rápida e diligente. A Corte cometeu erros e exageros, não há dúvida, mas sua
atuação proporcionou tranquilidade institucional ao País. Foi graças a essa
coragem que os crimes contra o Estado Democrático de Direito não ficaram
relegados ao esquecimento nem foram tratados como mero vandalismo.
Há ainda muito a ser feito, deve-se advertir,
no âmbito da responsabilização jurídico-penal. Não se faz justiça punindo os
executores do crime e aliviando a responsabilidade dos mandantes e dos omissos.
A defesa da democracia exige que os autores intelectuais dos crimes praticados
no 8 de Janeiro sejam devidamente processados e punidos. Não basta prender
alguns intermediários ou mesmo alguns financiadores. É preciso que a Justiça
alcance os cabeças do esquema criminoso – e isso até agora não foi feito.
Por óbvio, esse trabalho investigativo e
judicial sobre o 8 de Janeiro que ainda não foi realizado não é justificativa
para que o STF mantenha todos os inquéritos relacionados a atos
antidemocráticos abertos, perpetuando uma atuação excepcional da Corte e
alimentando um protagonismo desproporcional do ministro Alexandre de Moraes. A
resposta mais efetiva à tentativa de uma ruptura institucional é sempre a
obediência aos ritos republicanos. Em regime democrático, não existe inquérito
perpétuo.
Um ano depois do 8 de Janeiro, é preciso que
se diga: o País precisa voltar à normalidade, que não é impunidade, tampouco
esquecimento conivente com o golpismo. Normalidade republicana é sinônimo de
respeito à lei.
Por sua vez, o governo Lula não se mostrou à
altura dos desafios. Em vez de unir institucionalmente o País, preferiu
utilizar o 8 de Janeiro em proveito político-eleitoral. Por exemplo, ao longo
de todo o ano de 2023, o ministro da Justiça, Flávio Dino, fomentou o
acirramento e a divisão da sociedade. Todos os que não prestam vênia ao governo
petista seriam “fascistas” e “bolsonaristas”. O resultado dessa atuação
disforme é patente. No ano passado, os governadores assentiram em massa ao
convite do presidente Lula para participarem de ato em defesa da democracia
após o 8 de Janeiro. Agora, vários deles recusaram o convite, cientes do risco
de ser mais uma cilada político-eleitoral petista.
A tentativa de golpe deflagrada há exatamente
um ano foi profundamente antidemocrática não apenas em razão do ataque contra
as instituições. Em todos os seus atos, havia uma mensagem de exclusão. Quem
não estava alinhado com o movimento golpista era visto como um traidor do País.
O autoritarismo traz sempre a pretensão de monopólio da virtude cívica. E é
preciso reconhecer que, com frequência, se observa no chamado campo
progressista o mesmo fenômeno, apenas com os sinais trocados.
A brutalidade do 8 de Janeiro deve ser
enfrentada pelas causas. O País não pode continuar refém da lógica da violência
e da ruptura. Cidadania é sinônimo de pluralidade, de diálogo, de liberdade, de
respeito às diferenças – e de cumprimento da lei, em todas as esferas.
SP precisa de política, não de ideologia
O Estado de S. Paulo
Felizmente perde apoio a CPI que, a título de
investigar ONGs da Cracolândia, serviria só para atazanar um padre que lá atua.
Caso lembra o risco de intoxicação ideológica do debate público
Areação da sociedade civil foi determinante
para enfraquecer o movimento pela instalação de uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) na Câmara Municipal de São Paulo com o objetivo de,
supostamente, investigar algumas ONGs que atuam na Cracolândia. Ao que tudo
indica, essa CPI, caso seja instalada pela Mesa Diretora na volta do recesso
parlamentar, não se prestará a investigar coisa alguma, e sim a intoxicar o
debate público em pleno ano eleitoral.
Que fique claro: o uso dos recursos públicos
repassados a essas ONGs não só pode, como deve passar por escrutínio público,
inclusive por meio de uma CPI, instrumento legítimo à disposição do Poder
Legislativo. O problema é que o pedido de abertura da tal “CPI das ONGs”, feito
pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), a rigor, não traz um fato
determinado a ser investigado – o parlamentar fala apenas na existência de uma
“máfia da miséria” que viveria de “explorar” a miséria física e psíquica dos
dependentes químicos –, o que dá azo à inferência de que o propósito
constitucional da CPI seria sobrepujado pelos interesses eleitoreiros dos que a
apoiam.
Isso ficou claro há poucos dias, quando o
autor do pedido de CPI, por meio de suas redes sociais, alçou o padre Júlio
Lancellotti, conhecido por seu trabalho em defesa da população de rua, à
condição de “alvo” principal das investigações, para perplexidade da
Arquidiocese de São Paulo e surpresa de um grupo de vereadores que haviam
assinado o requerimento, mas não sabiam que era o pároco o foco do vereador
Rubinho Nunes. Dos 22 signatários do pedido de CPI, 8 já retiraram suas
assinaturas – Sidney Cruz (Solidariedade), Thammy Miranda (PL), Sandra Tadeu
(União Brasil), Milton Ferreira (Podemos), Dr. Nunes Peixeiro (MDB), Xexéu
Tripoli, João Jorge e Beto do Social (PSDB).
É óbvio que qualquer CPI tem uma natureza
eminentemente política. Entretanto, apenas o fito do embate político não
autoriza a abertura de uma comissão de inquérito por uma Casa Legislativa. Para
isso há a tribuna; há os partidos políticos; há as redes sociais; entre outros
meios para defesa de determinadas agendas programáticas, valores e visões de
mundo. A instalação de uma CPI requer a existência de mínima materialidade que
justifique a dedicação do tempo dos parlamentares e o dispêndio de recursos dos
contribuintes. Não é o caso, ao que parece, da “CPI das ONGs”.
Não há dúvidas de que a tragédia social da
Cracolândia, que há mais de três décadas permanece como uma chaga aberta no
coração da maior cidade do País, é um tema que deve mobilizar todos os
paulistanos. Em ano eleitoral, não seria diferente. Candidatos e eleitores
devem se debruçar sobre a questão, entre tantas outras. Mas o debate há de ser
qualificado. Mais bem dito: questões vitais para a metrópole, como, além da
citada Cracolândia, as relativas à mobilidade, zeladoria, urbanismo, mudanças
climáticas e até mesmo segurança pública, têm de ser tratadas com técnica,
espírito público e respeito à verdade factual, e não de forma enviesada por
diferenças ideológicas.
Os que sofrem com o abandono da cidade de São
Paulo não pensam em ideologia quando enfrentam as agruras do transporte público
todos os dias; quando tropeçam em ruas esburacadas; quando sentem medo ao
transitar por vias mal iluminadas. A precariedade na oferta de alguns serviços
públicos, em especial nas áreas de saúde e educação, ou o congestionamento
provocado por semáforos que apagam ao contato com as primeiras gotas de chuva
não decorrem do viés ideológico do prefeito, seja de que partido político for,
mas, em geral, de incompetência administrativa. Isso é que precisa estar em
discussão.
Os vereadores, portanto, servirão muito
melhor aos munícipes, em especial aos milhares de doentes que padecem dos
terríveis males da dependência química, se acaso fizerem um corajoso e sincero
autoexame para avaliar onde a Câmara Municipal, no limite de sua
responsabilidade, tem falhado ao permitir que São Paulo, malgrado sua pujança
política e econômica, esteja nesse estado de degradação – sendo a Cracolândia
apenas a evidência mais dolorosa desse misto de abandono com inépcia.
Pagando a conta
O Estado de S. Paulo
Brasil quita dívidas com organismos
internacionais antes do vexame de perder direito de voto
O Brasil afinal resolveu pagar o que devia
aos organismos internacionais, cumprindo seu dever de quitar as contribuições
voluntariamente assumidas e acabando com o risco de passar vexame ao perder o
direito de votar em diversos fóruns relevantes para o País.
O governo Lula da Silva não apenas pagou, em
dezembro, o restante de um passivo de R$ 4,6 bilhões acumulado desde a gestão
anterior, como deu também um relevante passo ao tornar essas despesas
obrigatórias no Orçamento da União a partir deste ano. Ao pôr fim à sua
recorrente inadimplência, o País afinal demonstra que leva a sério a vocação
multilateralista de sua Política Externa e reforça sua presença nos debates
mundiais que afetam os interesses nacionais.
As dívidas nessa seara sempre resultaram em
vexame à diplomacia brasileira. Em nota conjunta, os Ministérios das Relações
Exteriores e do Planejamento assinalaram a grave situação provocada pelo
passivo herdado da gestão de Jair Bolsonaro no início de 2023, quando o Brasil
teve seu poder de voto suspenso na Agência Internacional de Energia Atômica
(AIEA), no Tribunal Penal Internacional (TPI) e em outros três fóruns. A
correria para quitar o débito evitou que a vergonha se prolongasse no tempo.
Tal punição nada tem de trivial. O
engajamento nos debates multilaterais historicamente tem reforçado a condição
do Brasil de ator diplomático relevante, malgrado não ter força militar
significativa e de estar longe do pleno desenvolvimento. Perder o voto, mesmo
momentâneo, significa um isolamento que prejudica os brasileiros. O selo de
adimplência, ao contrário, traduz sua seriedade com os organismos que integra.
Por isso, virar o ano endividado não era opção. O arremate dos R$ 4,6 bilhões
devidos, em dezembro, incluiu R$ 288,8 milhões à Organização das Nações Unidas
(ONU) e R$ 1,1 bilhão às suas missões de paz, muitas das quais integradas por
militares brasileiros. A ameaça de o Brasil ver-se podado na Assembleia-Geral e
das missões da ONU em 2024 era real.
A expectativa é que esse atropelo não mais se
repita. Ao incluir na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) a obrigatoriedade
de pagamento em dia aos organismos multilaterais e regionais e às instituições
financeiras internacionais, o Brasil sinaliza que leva a sério esse
compromisso, superando a uma negligência que já havia se naturalizado na gestão
do Orçamento da União. É preciso lembrar que, em 2015, durante o governo de
Dilma Rousseff, o Brasil perdeu seu direito de voto nos mesmos TPI e AIEA que
Bolsonaro deixou de pagar sete anos depois.
A participação ativa do Brasil em instituições multilaterais e regionais não é um capricho deste ou de outro governo. Trata-se de decisão soberana. Ao Estado brasileiro cabe a tarefa constitucional de defender o interesse nacional nas mais diferentes esferas de diálogo internacional. Zelar pelos organismos nos quais está presente e financiar suas atividades são as contrapartidas devidas por todos os seus integrantes. Felizmente, o Brasil parece ter entendido essa premissa.
Um país (quase) sem leitores
Correio Braziliense
Livros não são meros acervos de palavras: são
janelas para outros mundos, portadores de experiências e ensinamentos
acumulados ao longo dos séculos
Uma pesquisa encomendada pela Câmara
Brasileira do Livro (CBL) e divulgada no fim do ano passado apresentou um dado
estarrecedor, mas que acabou sendo pouco discutido. Segundo a pesquisa Panorama
do Consumo de Livros, aplicada pela Nielsen BookData em 16 mil pessoas com 18
anos ou mais, entre 23 e 31 de outubro de 2023, aproximadamente 84% da
população brasileira acima de 18 anos não comprou nenhum livro nos últimos 12
meses. Ou seja, em 2023, apenas 16% das pessoas se dispuseram a ir a uma
livraria ou a um site para comprar um livro sobre qualquer assunto. Além disso,
apenas 25 milhões dos 214,3 milhões de brasileiros se consideram consumidores
de livros, ou seja, menos de 10%.
É um sinal de alerta que não pode ser
ignorado. Mesmo sendo uma pesquisa sobre a compra de livros — outros modos de
acesso, como bibliotecas, não foram considerados —, o número revela, de modo
claro, a ausência de interesse pela leitura da população brasileira, o que traz
implicações mais amplas para a educação e o desenvolvimento da sociedade.
Afinal, livros não são meros acervos de
palavras: são janelas para outros mundos, portadores de experiências e
ensinamentos acumulados ao longo dos séculos. Eles são um dos principais
dispositivos que a humanidade dispõe de transmissão de conhecimento ao longo de
gerações e são ferramentas fundamentais para o aprendizado e a educação. Além
disso, a leitura, ao estimular o pensamento crítico, promove a capacidade de
análise e síntese. São habilidades fundamentais para um mundo cada vez mais
dominado pelas telas e pelos algoritmos das redes sociais. A educação
proporcionada pelos livros torna-se um antídoto poderoso contra a
superficialidade e a desinformação. A leitura é um instrumento democratizador
do conhecimento, permitindo que indivíduos de todas as origens tenham acesso a
ideias e perspectivas que enriquecem sua compreensão do mundo e leva a uma
mobilidade na pirâmide social.
Mudar o cenário de baixo interesse pelos
livros e ampliar a base de consumidores e leitores no Brasil são estratégias
possíveis, mas não simples. Os próprios dados da pesquisa apontam alguns dos
problemas a serem combatidos para resolver a questão. Entre os 84% de
entrevistados que não compraram livros em 2023, 60% afirmaram que consideram o
hábito da leitura importante, mas se sentem desmotivados para isso. Entre os
motivos para o desânimo, estão a ausência de livrarias próximas, a falta de
tempo e, principalmente, o custo.
É preciso, portanto, que o debate sobre o
estímulo à leitura seja ampliado. O preço do livro no Brasil, por exemplo, vem
sendo exaustivamente discutido por editoras, livreiros, entidades e políticos
desde a consolidação da Amazon — acusada de praticar uma concorrência desleal
contra livrarias e prejudicar toda a cadeia produtiva do livro —, mas,
raramente, inclui a opinião do consumidor final, o leitor. Outras ações para o
incentivo à leitura, como programas educacionais, campanhas de conscientização
e parcerias entre governos, empresas e organizações da sociedade civil, também
podem desempenhar um papel vital nesse esforço conjunto e devem ser
consideradas.
Afinal, investir na educação, com foco na promoção da leitura, é investir no futuro. Ao garantir que mais brasileiros tenham acesso a livros e se sintam motivados a explorar suas páginas, a mudança que virá não vai se refletir apenas em conhecimento, mas também em um país mais culturalmente rico e promissor para todos.
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