segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Instituições deram prova de força ao derrotar golpismo

Valor Econômico

Ainda há pela frente um caminho de pacificação no país, além da identificação e punição dos mentores e organizadores dos atos golpistas

Um ano após a infame tentativa de golpe de Estado, com a invasão e depredação da sede dos Três Poderes - a mais séria investida para subverter a ordem legal desde o fim do regime militar - o país ainda acerta as contas com o passado. O regime democrático resistiu graças à ação imediata do Judiciário, do Executivo, Legislativo e das Forças Armadas, cujo comando alinhou-se na defesa da Constituição. Trinta pessoas foram condenadas até agora, e mil das 1.430 denúncias apresentadas tiveram ação penal suspensa a pedido do ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, e poderão ser objeto de acordo com a Procuradoria Geral da República, com penas leves. Falta ainda outra ação fundamental: levar à Justiça quem planejou, financiou e organizou o levante em Brasília.

Os golpistas eram seguidores radicais do ex-presidente Jair Bolsonaro, estimulados à revolta por propagações de fake news e por pregações cotidianas da extrema direita contra as urnas eletrônicas e o resultado das eleições, classificado de fraudulento desde antes da votação. Há pistas várias de que havia um plano para reagir à vitória de Lula, como demonstram as minutas de intervenção no Tribunal Superior Eleitoral encontradas com ministros fiéis a Bolsonaro, como Anderson Torres, da Justiça.

Mesmo com o controle do aparato de Estado, Bolsonaro não conseguiu se manter no poder. Apesar do apoio de alguns generais da ativa e da reserva, os comandantes das Forças Armadas recusaram-se a apoiar aventuras autoritárias. Diante da barreira inesperada dos comandos militares, foi posto em marcha um plano para criar um ambiente de caos no qual as Forças Armadas seriam constrangidas a intervir e, então, diante da pressão de adeptos do golpe na alta hierarquia das polícias militares e dos quartéis, se colocar diante de um fato consumado.

Anderson Torres, indicado pelo governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB) para a secretaria de Segurança Pública, responsável pela ordem na capital, saiu estrategicamente de férias antes das investidas contra a sede dos Poderes. Caravanas de seguidores do ex-presidente acamparam meses a fio sem serem molestadas em uma zona de segurança nacional, em frente ao QG do Exército, rotineiramente vedada a aglomerações civis. A polícia não pode desalojar manifestantes ali instalados sem autorização militar. Dos acampamentos partiram os golpistas sem que fossem contidas pelo esquema de segurança do DF, apesar dos avisos da Polícia Federal de que poderia haver sérios problemas de ordem pública.

Os golpistas possivelmente cogitaram que, diante do caos que seria instalado, o governo recorresse à operação de Garantia da Lei e da Ordem, colocando o DF nas mãos dos militares que, então, seriam sensíveis aos apelos dos manifestantes e dos militares que apoiavam o movimento. O governo Lula não mordeu a isca e nomeou um interventor no DF, enquanto o ministro Alexandre de Moraes ordenou as prisões de Anderson Torres e do comandante geral da PM, Fábio Vieira, além do afastamento do governador Ibaneis Rocha. A recomposição do esquema de repressão retomou o controle da situação em algumas horas.

Um ano depois, a reconstituição dos fatos ensina que as instituições democráticas tiveram força e souberam se opor às investidas radicais. O Supremo Tribunal Federal já havia iniciado investigações sobre os instigadores de manifestações contra a democracia e o uso das redes sociais para espalhar mentiras em série. As Forças Armadas não se seduziram pela cantilena autocrática. O Executivo se recompôs rapidamente após a desmontagem proposital do sistema de segurança da capital. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, condenaram na primeira hora a aventura golpista. Todos os governadores foram a Brasília mostrar seu repúdio à tentativa de derrubar o regime democrático e um presidente eleito legalmente pelo povo brasileiro.

O radicalismo primitivo dos manifestantes, a falta de líderes visíveis da revolta no local e de um plano geral de ação tenderam a facilitar a interpretação de que tudo foi uma arruaça de uma minoria inconsequente. O que corria nas redes sociais, como revela o ministro Alexandre de Moraes (O Globo, 4/1), mostra o contrário: a iniciativa era séria e poderia desencadear consequências muito graves. As investigações apontaram três planos contra ele, que envolviam até homicídio.

Houve uma tentativa de ruptura da democracia no país, felizmente fracassada pela falta de apoio popular e militar e pela atitude decisiva dos Três Poderes. A destacar também o papel da imprensa ao longo do ano eleitoral e durante a tentativa de golpe. Ela cumpriu fielmente seu papel de fiscalizar o poder e de ser um dos pilares da democracia. Como observou o atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso, os episódios de 8 de Janeiro foram o “ponto culminante” de um processo contínuo de “desrespeito às instituições e desapreço pela democracia”. Mas, posta à prova, a democracia mostrou sua resistência, graças a atuação dos Poderes e ao amplo apoio da sociedade. Ainda há pela frente um caminho de pacificação no país, além da identificação e punição dos mentores e organizadores dos atos golpistas, dentro dos mais rigorosos ritos da lei. Mas há hoje motivos para comemorar e nada deveria ser mais importante que isso, sobretudo para aqueles que foram eleitos democraticamente. O momento é de deixar de lado vieses partidários e celebrar a força das instituições.

Terras raras são oportunidade para o Brasil

O Globo

País detém terceira maior reserva global de conjunto de 17 minérios essenciais à transição energética

A redução drástica das emissões de gases poluentes na atmosfera, medida imprescindível para deter o aquecimento global, depende de investimentos vultosos na exploração de metais. Para que o mundo chegue ao estágio de neutralidade em carbono até 2050, será preciso multiplicar por 15 a atual produção de energia eólica, por 25 a solar e por 60 a de carros elétricos e baterias. Esse cenário fez crescer a procura pelos minerais necessários para produzir turbinas eólicas, painéis solares e componentes de veículos elétricos.

Na busca pelas matérias-primas da transição energética, o Brasil tem papel crucial, por contar com reservas de alguns dos metais mais procurados. No ranking mundial de reservas em terras raras, nome dado a 17 elementos químicos necessários à transição energética, o país é o terceiro. Elementos encontrados nas terras raras são essenciais para fabricar baterias, ímãs de discos rígidos de computadores e carros elétricos, painéis solares, turbinas eólicas, lâmpadas de LED e uma série de outros produtos, inclusive bélicos.

Como revelou reportagem do GLOBO, empresas australianas e canadenses estão numa corrida para encontrar jazidas de terras raras. Minas Gerais conta com três grandes projetos. Juntos, poderão somar investimentos de R$ 4,6 bilhões. Em Goiás, onde uma empresa planeja começar a exploração neste ano, uma nova jazida foi descoberta. Na Bahia, outra companhia obteve permissão para examinar 460 quilômetros quadrados. Há depósitos também no Tocantins.

A China tem as maiores reservas, mas as terras raras encontradas no Brasil estão em profundidade menor. Os chineses extraem entre 800 gramas e 1 quilo por tonelada de argila. A expectativa de uma companhia instalada em Minas é retirar entre 2,5 e 3 quilos por tonelada. Fora a produtividade, o que anima as mineradoras é a perspectiva de alta no preço dos metais. Pelas contas da Energy Transitions Commission, a demanda não atendida apenas por um dos 17 elementos das terras raras, o neodímio, poderá ser até 30% maior já em 2030.

Existe, é verdade, a possibilidade de a transição energética não ocorrer na velocidade desejável. Caso isso se confirme, as estimativas sobre a escalada dos preços de alguns minerais cairão. No caso das terras raras, porém, a situação geopolítica reforça a confiança. Hoje a China domina quase todo o mercado. Já em 1992 Deng Xiaoping dizia: “O Oriente Médio tem petróleo, a China tem terras raras”. Em 2010, os chineses pararam de exportar para o Japão depois de um incidente diplomático. Para diminuir a dependência da China, as potências ocidentais têm incentivado a pesquisa e a exploração dos minerais em diversos países, entre eles o Brasil.

As empresas instaladas aqui se beneficiarão com a venda de minério, mas fariam melhor em agregar valor ao produto. Criar uma indústria intermediária capaz de produzir óxidos dos minerais poderá render até dez vezes mais. Se souber extraí-los sem provocar danos ao meio ambiente e conseguir montar um parque industrial, o Brasil contribuirá para a transição a um mundo neutro em carbono e ainda lucrará com isso.

Aposta na sobrevivência digital expõe tragédia climática dos arquipélagos

O Globo

Diante da ameaça de afundar, Tuvalu tenta preservar cultura, costumes e manter Estado ativo no metaverso

Não é de hoje que representantes do governo de Tuvalu, pequeno arquipélago no meio do Pacífico, comparecem às COPs, reuniões sobre o aquecimento global, para clamar pela redução das emissões de gases do efeito estufa. Na COP26, realizada na Escócia em 2021, o ministro das Relações Exteriores das ilhas, Simon Kofe, gravou um pronunciamento com água do mar até os joelhos para demonstrar como Tuvalu já começa a ser coberto pelo Pacífico. Nas ilhas, é realidade aquilo que, para muitos países, ainda pode parecer previsão longínqua.

Diante do risco de desaparecimento, Tuvalu apresentou na COP28, em Dubai no ano passado, um plano para sobreviver no metaverso, em forma digital. O projeto “Future Now” (futuro agora) mapeou digitalmente, em três dimensões, as 124 ilhas e ilhotas do país. Prevê lançar um passaporte digital para que os cidadãos possam continuar a exercer sua cidadania mesmo que o território desapareça sob o oceano. Haverá eleições, registro civil de nascimento, casamento, herança e tudo aquilo que hoje existe para os habitantes locais.

Ao mesmo tempo, o projeto começou a digitalizar os costumes, danças, canções, histórias ouvidas dos avós e toda sorte de manifestação cultural na forma de texto, som e imagens. O acervo ficará disponível na “nuvem”, como uma “arca digital” de Tuvalu, afirmou Kofe. As ilhas do Pacífico pretendem se tornar o primeiro país digital da história, “ocupado” por habitantes obrigados a viver noutros países. O termo “arca digital” faz referência à lenda da Arca de Noé, construída para salvar todas as espécies animais do dilúvio enviado pela divindade bíblica para punir a humanidade por seus pecados.

O dilúvio capaz de afundar Tuvalu é hoje mais que uma possibilidade. Cientistas da Climate Central, entidade independente, em associação com a Universidade de Princeton e o Instituto Potsdam de Impacto do Clima, da Alemanha, publicaram recentemente na revista científica Environmental Research Letters um estudo simulando o que acontecerá na prática com países litorâneos se a temperatura global subir 1,5°C em relação ao nível pré-industrial (meta do Acordo de Paris) ou 3°C (projeção caso o aquecimento mantenha o ritmo atual). Com base nos dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para 100 cidades à beira-mar em 39 países (inclusive o Brasil), o estudo concluiu que, mesmo na hipótese mais otimista, os países litorâneos terão de se precaver.

No Rio, os efeitos da alta de 1,5°C seriam modestos, mas com a temperatura subindo 3°C o bairro de Botafogo ficaria coberto d’água. As regiões mais atingidas, diz o estudo, estão na Ásia — China, Índia, Indonésia e Vietnã. Mas nenhum desses países corre o risco de sumir do mapa como Tuvalu. Ainda que a tecnologia digital ofereça meios para preservar a cultura e os costumes locais, a situação do pequeno arquipélago demonstra o tamanho da ameaça que paira sobre o planeta.

 Balança recorde

Folha de S. Paulo

Superávit histórico ajuda o país; governo deveria conter pendores protecionistas

Há boas e más notícias no impressionante saldo comercial de US$ 98,8 bilhões registrado pelo Brasil em 2023. Os aspectos positivos decerto superam os negativos, mas não por margem tão larga quanto a das exportações sobre as importações.

Superávits comerciais não são necessariamente sinais de pujança econômica. Países bem-sucedidos têm déficits em suas balanças —e o exemplo mais notório é o dos Estados Unidos. A análise do indicador depende de sua composição e das circunstâncias.

No Brasil de hoje, o resultado é bem-vindo devido ao ingresso expressivo de divisas, que contribuiu para a queda da cotação do dólar e da inflação, e ao bom desempenho das exportações, sobretudo de produtos primários.

Mesmo com queda de 6,3% nos preços dos produtos vendidos, segundo dados do governo, o volume embarcado teve alta de 8,7%. Em termos nominais, as exportações e o superávit bateram recordes, mas o país já registrou cifras maiores como proporção do Produto Interno Bruto, ou seja, considerando o tamanho da economia.

Os setores agropecuário e extrativo (petróleo e minério de ferro, principalmente) responderam pelo aumento dos embarques, com altas de de 9% e 3,5%, respectivamente. O Brasil, como se sabe, é competitivo nessas commodities, mas os números anuais variam muito de acordo com as flutuações do mercado global.

Já a indústria de transformação, que trabalha com produtos de maior valor agregado, sofreu queda de 2,3% e teve sua participação no total exportado reduzida a 52,2%.

O mais problemático no saldo comercial do ano passado, entretanto, é que o recorde se deveu muito mais à queda das importações, de 11,7%, do que à alta das exportações, de apenas 1,7%. Menos compras do exterior costumam ser sinais de enfraquecimento da demanda doméstica, seja das famílias ou das empresas.

No caso brasileiro, houve alarmante queda dos investimentos nacionais, que recuaram de já insatisfatórios 18,3% do PIB para 16,6% entre os terceiros trimestres de 2022 e 2023 —especialistas apontam que o país deve almejar uma taxa de ao menos 25% para um crescimento sustentável.

Parcela importante dessa rubrica são aquisições, por parte de empresas, de máquinas e equipamentos destinados à ampliação da capacidade produtiva.

Países devem buscar a ampliação do comércio exterior em todas as frentes, como meio de obter eficiência econômica e bem-estar social. O governo petista acertará se deixar de lado seus pendores protecionistas e não promover retrocessos na precária abertura do Brasil ao restante do mundo.

Câmeras sem foco

Folha de S. Paulo

Sem monitoramento, Tarcísio não pode atestar ineficácia do programa de segurança

"Qual é a efetividade da câmera corporal na segurança do cidadão? Nenhuma", declarou neste ano, sem apresentar maior fundamentação, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Entre idas e vindas desde a campanha eleitoral, Tarcísio não abandona a má vontade diante da inovação adotada em 2021 pela polícia paulista, cujos resultados, promissores, demandam mais estudo.

O impacto da tecnologia na redução das mortes nos batalhões em que foi implementada —queda de 85% na letalidade policial em 2021, comparada ao ano anterior— deve ser lido à luz de outras medidas adotadas no mesmo período. Entre elas, a expansão do uso de instrumentos não letais de força, como tasers (armas de choque).

Mas a dificuldade de isolar a câmera de outros fatores não é argumento contra o uso da ferramenta.
Justamente porque a segurança pública é um fenômeno multifatorial, a tecnologia deve ser integrada a uma gama de políticas de redução de mortes, e o seu uso precisa ser monitorado por estudos que avaliem o impacto da política.

Entretanto a administração de Tarcísio não só descontinuou, em setembro de 2023, estudo que avalia o uso de câmeras policiais, como também dificulta o acesso a dados que poderiam ajudar a análise.

Pesquisadores ouvidos pela Folha ressaltam que a PM não divulga dados sobre as áreas patrulhadas por batalhões que usam câmeras nem os boletins de ocorrência dos agentes durante o expediente. Sem transparência, o governo não pode atestar ineficácia.

Os dados existentes caminham em direção contrária à fala do governador. A primeira parte do estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas nos batalhões com câmera em 2022 revelou alta no registro de crimes em geral subnotificados, como violência doméstica (102%), e em apreensões de arma de fogo (24%), além de redução de mortes de policiais em serviço ao menor nível em 30 anos.

Mesmo assim, o governador segue no sentido de desmantelar a política. Segundo a Secretaria de Segurança Pública, em 2023 foram gastos R$ 680 milhões em equipamentos para as polícias, além das câmeras. Mas Tarcísio cortou cerca de R$ 26,2 milhões do programa que usa a tecnologia.

Câmeras corporais não são panaceia. Por isso, diretrizes sobre aplicação, armazenamento e controle são necessárias, além do monitoramento da eficácia da política.

A ferida aberta do 8 de Janeiro

O Estado de S. Paulo

Muito se fala do dia da tentativa de golpe, mas não se enfrentam suas causas. Além de punir os mandantes, é preciso superar a lógica que motiva tanta gente a hostilizar a democracia

Há um ano o Brasil sofreu uma tentativa de golpe. Não eram manifestantes exercendo sua liberdade de expressão, mas grupos e pessoas que agiram contra as instituições democráticas e o resultado das eleições presidenciais. A invasão e a depredação das sedes dos Três Poderes configuram-se como um trágico episódio da história nacional, que não se deu por acaso – foi engendrado e alimentado ao longo de anos pelo bolsonarismo – e cujos efeitos continuam e continuarão sendo sentidos por anos. O 8 de Janeiro não é mero fato pretérito, mas uma ferida aberta na sociedade e no Estado brasileiros. Continua havendo muita gente convencida de que, se o regime democrático não seguir suas ideias e escolhas, ele já não seria democrático e, portanto, poderia ser derrubado. Esses liberticidas se dizem defensores da Constituição, mas na verdade são seus maiores inimigos, porque não aceitam qualquer forma de acordo político com aqueles de quem discordam.

O 8 de Janeiro impôs uma tarefa imensa ao Estado brasileiro; em especial, ao Poder Judiciário. A tentativa de golpe não podia ficar impune, e o Supremo Tribunal Federal (STF) ofereceu uma resposta rápida e diligente. A Corte cometeu erros e exageros, não há dúvida, mas sua atuação proporcionou tranquilidade institucional ao País. Foi graças a essa coragem que os crimes contra o Estado Democrático de Direito não ficaram relegados ao esquecimento nem foram tratados como mero vandalismo.

Há ainda muito a ser feito, deve-se advertir, no âmbito da responsabilização jurídico-penal. Não se faz justiça punindo os executores do crime e aliviando a responsabilidade dos mandantes e dos omissos. A defesa da democracia exige que os autores intelectuais dos crimes praticados no 8 de Janeiro sejam devidamente processados e punidos. Não basta prender alguns intermediários ou mesmo alguns financiadores. É preciso que a Justiça alcance os cabeças do esquema criminoso – e isso até agora não foi feito.

Por óbvio, esse trabalho investigativo e judicial sobre o 8 de Janeiro que ainda não foi realizado não é justificativa para que o STF mantenha todos os inquéritos relacionados a atos antidemocráticos abertos, perpetuando uma atuação excepcional da Corte e alimentando um protagonismo desproporcional do ministro Alexandre de Moraes. A resposta mais efetiva à tentativa de uma ruptura institucional é sempre a obediência aos ritos republicanos. Em regime democrático, não existe inquérito perpétuo.

Um ano depois do 8 de Janeiro, é preciso que se diga: o País precisa voltar à normalidade, que não é impunidade, tampouco esquecimento conivente com o golpismo. Normalidade republicana é sinônimo de respeito à lei.

Por sua vez, o governo Lula não se mostrou à altura dos desafios. Em vez de unir institucionalmente o País, preferiu utilizar o 8 de Janeiro em proveito político-eleitoral. Por exemplo, ao longo de todo o ano de 2023, o ministro da Justiça, Flávio Dino, fomentou o acirramento e a divisão da sociedade. Todos os que não prestam vênia ao governo petista seriam “fascistas” e “bolsonaristas”. O resultado dessa atuação disforme é patente. No ano passado, os governadores assentiram em massa ao convite do presidente Lula para participarem de ato em defesa da democracia após o 8 de Janeiro. Agora, vários deles recusaram o convite, cientes do risco de ser mais uma cilada político-eleitoral petista.

A tentativa de golpe deflagrada há exatamente um ano foi profundamente antidemocrática não apenas em razão do ataque contra as instituições. Em todos os seus atos, havia uma mensagem de exclusão. Quem não estava alinhado com o movimento golpista era visto como um traidor do País. O autoritarismo traz sempre a pretensão de monopólio da virtude cívica. E é preciso reconhecer que, com frequência, se observa no chamado campo progressista o mesmo fenômeno, apenas com os sinais trocados.

A brutalidade do 8 de Janeiro deve ser enfrentada pelas causas. O País não pode continuar refém da lógica da violência e da ruptura. Cidadania é sinônimo de pluralidade, de diálogo, de liberdade, de respeito às diferenças – e de cumprimento da lei, em todas as esferas.

SP precisa de política, não de ideologia

O Estado de S. Paulo

Felizmente perde apoio a CPI que, a título de investigar ONGs da Cracolândia, serviria só para atazanar um padre que lá atua. Caso lembra o risco de intoxicação ideológica do debate público

Areação da sociedade civil foi determinante para enfraquecer o movimento pela instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Municipal de São Paulo com o objetivo de, supostamente, investigar algumas ONGs que atuam na Cracolândia. Ao que tudo indica, essa CPI, caso seja instalada pela Mesa Diretora na volta do recesso parlamentar, não se prestará a investigar coisa alguma, e sim a intoxicar o debate público em pleno ano eleitoral.

Que fique claro: o uso dos recursos públicos repassados a essas ONGs não só pode, como deve passar por escrutínio público, inclusive por meio de uma CPI, instrumento legítimo à disposição do Poder Legislativo. O problema é que o pedido de abertura da tal “CPI das ONGs”, feito pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), a rigor, não traz um fato determinado a ser investigado – o parlamentar fala apenas na existência de uma “máfia da miséria” que viveria de “explorar” a miséria física e psíquica dos dependentes químicos –, o que dá azo à inferência de que o propósito constitucional da CPI seria sobrepujado pelos interesses eleitoreiros dos que a apoiam.

Isso ficou claro há poucos dias, quando o autor do pedido de CPI, por meio de suas redes sociais, alçou o padre Júlio Lancellotti, conhecido por seu trabalho em defesa da população de rua, à condição de “alvo” principal das investigações, para perplexidade da Arquidiocese de São Paulo e surpresa de um grupo de vereadores que haviam assinado o requerimento, mas não sabiam que era o pároco o foco do vereador Rubinho Nunes. Dos 22 signatários do pedido de CPI, 8 já retiraram suas assinaturas – Sidney Cruz (Solidariedade), Thammy Miranda (PL), Sandra Tadeu (União Brasil), Milton Ferreira (Podemos), Dr. Nunes Peixeiro (MDB), Xexéu Tripoli, João Jorge e Beto do Social (PSDB).

É óbvio que qualquer CPI tem uma natureza eminentemente política. Entretanto, apenas o fito do embate político não autoriza a abertura de uma comissão de inquérito por uma Casa Legislativa. Para isso há a tribuna; há os partidos políticos; há as redes sociais; entre outros meios para defesa de determinadas agendas programáticas, valores e visões de mundo. A instalação de uma CPI requer a existência de mínima materialidade que justifique a dedicação do tempo dos parlamentares e o dispêndio de recursos dos contribuintes. Não é o caso, ao que parece, da “CPI das ONGs”.

Não há dúvidas de que a tragédia social da Cracolândia, que há mais de três décadas permanece como uma chaga aberta no coração da maior cidade do País, é um tema que deve mobilizar todos os paulistanos. Em ano eleitoral, não seria diferente. Candidatos e eleitores devem se debruçar sobre a questão, entre tantas outras. Mas o debate há de ser qualificado. Mais bem dito: questões vitais para a metrópole, como, além da citada Cracolândia, as relativas à mobilidade, zeladoria, urbanismo, mudanças climáticas e até mesmo segurança pública, têm de ser tratadas com técnica, espírito público e respeito à verdade factual, e não de forma enviesada por diferenças ideológicas.

Os que sofrem com o abandono da cidade de São Paulo não pensam em ideologia quando enfrentam as agruras do transporte público todos os dias; quando tropeçam em ruas esburacadas; quando sentem medo ao transitar por vias mal iluminadas. A precariedade na oferta de alguns serviços públicos, em especial nas áreas de saúde e educação, ou o congestionamento provocado por semáforos que apagam ao contato com as primeiras gotas de chuva não decorrem do viés ideológico do prefeito, seja de que partido político for, mas, em geral, de incompetência administrativa. Isso é que precisa estar em discussão.

Os vereadores, portanto, servirão muito melhor aos munícipes, em especial aos milhares de doentes que padecem dos terríveis males da dependência química, se acaso fizerem um corajoso e sincero autoexame para avaliar onde a Câmara Municipal, no limite de sua responsabilidade, tem falhado ao permitir que São Paulo, malgrado sua pujança política e econômica, esteja nesse estado de degradação – sendo a Cracolândia apenas a evidência mais dolorosa desse misto de abandono com inépcia.

Pagando a conta

O Estado de S. Paulo

Brasil quita dívidas com organismos internacionais antes do vexame de perder direito de voto

O Brasil afinal resolveu pagar o que devia aos organismos internacionais, cumprindo seu dever de quitar as contribuições voluntariamente assumidas e acabando com o risco de passar vexame ao perder o direito de votar em diversos fóruns relevantes para o País.

O governo Lula da Silva não apenas pagou, em dezembro, o restante de um passivo de R$ 4,6 bilhões acumulado desde a gestão anterior, como deu também um relevante passo ao tornar essas despesas obrigatórias no Orçamento da União a partir deste ano. Ao pôr fim à sua recorrente inadimplência, o País afinal demonstra que leva a sério a vocação multilateralista de sua Política Externa e reforça sua presença nos debates mundiais que afetam os interesses nacionais.

As dívidas nessa seara sempre resultaram em vexame à diplomacia brasileira. Em nota conjunta, os Ministérios das Relações Exteriores e do Planejamento assinalaram a grave situação provocada pelo passivo herdado da gestão de Jair Bolsonaro no início de 2023, quando o Brasil teve seu poder de voto suspenso na Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), no Tribunal Penal Internacional (TPI) e em outros três fóruns. A correria para quitar o débito evitou que a vergonha se prolongasse no tempo.

Tal punição nada tem de trivial. O engajamento nos debates multilaterais historicamente tem reforçado a condição do Brasil de ator diplomático relevante, malgrado não ter força militar significativa e de estar longe do pleno desenvolvimento. Perder o voto, mesmo momentâneo, significa um isolamento que prejudica os brasileiros. O selo de adimplência, ao contrário, traduz sua seriedade com os organismos que integra. Por isso, virar o ano endividado não era opção. O arremate dos R$ 4,6 bilhões devidos, em dezembro, incluiu R$ 288,8 milhões à Organização das Nações Unidas (ONU) e R$ 1,1 bilhão às suas missões de paz, muitas das quais integradas por militares brasileiros. A ameaça de o Brasil ver-se podado na Assembleia-Geral e das missões da ONU em 2024 era real.

A expectativa é que esse atropelo não mais se repita. Ao incluir na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) a obrigatoriedade de pagamento em dia aos organismos multilaterais e regionais e às instituições financeiras internacionais, o Brasil sinaliza que leva a sério esse compromisso, superando a uma negligência que já havia se naturalizado na gestão do Orçamento da União. É preciso lembrar que, em 2015, durante o governo de Dilma Rousseff, o Brasil perdeu seu direito de voto nos mesmos TPI e AIEA que Bolsonaro deixou de pagar sete anos depois.

A participação ativa do Brasil em instituições multilaterais e regionais não é um capricho deste ou de outro governo. Trata-se de decisão soberana. Ao Estado brasileiro cabe a tarefa constitucional de defender o interesse nacional nas mais diferentes esferas de diálogo internacional. Zelar pelos organismos nos quais está presente e financiar suas atividades são as contrapartidas devidas por todos os seus integrantes. Felizmente, o Brasil parece ter entendido essa premissa.

Um país (quase) sem leitores

Correio Braziliense

Livros não são meros acervos de palavras: são janelas para outros mundos, portadores de experiências e ensinamentos acumulados ao longo dos séculos

Uma pesquisa encomendada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) e divulgada no fim do ano passado apresentou um dado estarrecedor, mas que acabou sendo pouco discutido. Segundo a pesquisa Panorama do Consumo de Livros, aplicada pela Nielsen BookData em 16 mil pessoas com 18 anos ou mais, entre 23 e 31 de outubro de 2023, aproximadamente 84% da população brasileira acima de 18 anos não comprou nenhum livro nos últimos 12 meses. Ou seja, em 2023, apenas 16% das pessoas se dispuseram a ir a uma livraria ou a um site para comprar um livro sobre qualquer assunto. Além disso, apenas 25 milhões dos 214,3 milhões de brasileiros se consideram consumidores de livros, ou seja, menos de 10%.

É um sinal de alerta que não pode ser ignorado. Mesmo sendo uma pesquisa sobre a compra de livros — outros modos de acesso, como bibliotecas, não foram considerados —, o número revela, de modo claro, a ausência de interesse pela leitura da população brasileira, o que traz implicações mais amplas para a educação e o desenvolvimento da sociedade.

Afinal, livros não são meros acervos de palavras: são janelas para outros mundos, portadores de experiências e ensinamentos acumulados ao longo dos séculos. Eles são um dos principais dispositivos que a humanidade dispõe de transmissão de conhecimento ao longo de gerações e são ferramentas fundamentais para o aprendizado e a educação. Além disso, a leitura, ao estimular o pensamento crítico, promove a capacidade de análise e síntese. São habilidades fundamentais para um mundo cada vez mais dominado pelas telas e pelos algoritmos das redes sociais. A educação proporcionada pelos livros torna-se um antídoto poderoso contra a superficialidade e a desinformação. A leitura é um instrumento democratizador do conhecimento, permitindo que indivíduos de todas as origens tenham acesso a ideias e perspectivas que enriquecem sua compreensão do mundo e leva a uma mobilidade na pirâmide social.

Mudar o cenário de baixo interesse pelos livros e ampliar a base de consumidores e leitores no Brasil são estratégias possíveis, mas não simples. Os próprios dados da pesquisa apontam alguns dos problemas a serem combatidos para resolver a questão. Entre os 84% de entrevistados que não compraram livros em 2023, 60% afirmaram que consideram o hábito da leitura importante, mas se sentem desmotivados para isso. Entre os motivos para o desânimo, estão a ausência de livrarias próximas, a falta de tempo e, principalmente, o custo.

É preciso, portanto, que o debate sobre o estímulo à leitura seja ampliado. O preço do livro no Brasil, por exemplo, vem sendo exaustivamente discutido por editoras, livreiros, entidades e políticos desde a consolidação da Amazon — acusada de praticar uma concorrência desleal contra livrarias e prejudicar toda a cadeia produtiva do livro —, mas, raramente, inclui a opinião do consumidor final, o leitor. Outras ações para o incentivo à leitura, como programas educacionais, campanhas de conscientização e parcerias entre governos, empresas e organizações da sociedade civil, também podem desempenhar um papel vital nesse esforço conjunto e devem ser consideradas.

Afinal, investir na educação, com foco na promoção da leitura, é investir no futuro. Ao garantir que mais brasileiros tenham acesso a livros e se sintam motivados a explorar suas páginas, a mudança que virá não vai se refletir apenas em conhecimento, mas também em um país mais culturalmente rico e promissor para todos.


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