Folha de S. Paulo
É certo que "combatente" tem largo
espectro semântico, abrange atribuições que podem variar de uma gama de funções
à adesão a trama golpista
Flagrante carioca: um caminhante habitual da
pista vizinha a prédio militar na Praia Vermelha assiste a ordenanças
arrancarem plantas daninhas num pequeno gramado frontal. Boa cena para um site,
quis fotografar, no que foi advertido pela esposa. Ninguém pintava meio-fio,
mas, sabe-se lá, a foto poderia susceptibilizar a imagem combativa da Força,
alardeada em grandes letras na praça.
É certo, como se deduz da fala de um general de palanque agora investigado, que "combatente" tem largo espectro semântico, abrange atribuições que podem variar de uma gama de funções à adesão a trama golpista. Mas jardim destoaria de "selva!"
É que forças
armadas periféricas vivem de imagem. Claro, são reais as
tarefas de vigilância das fronteiras e de garantia territorial, por mais que se
fracasse no combate aos tráficos e à tomada de
espaços por facções criminosas na Amazônia.
Mas a inclusão das forças no recente plano de desenvolvimento industrial, além
do evidente apaziguamento de descontentes, contempla um potencial de defesa mal
explicitado.
Entre nós, desde o morticínio paraguaio no
século 19, a palavra guerra, assim como combatente, é um elástico semântico.
Serve para justificar orçamentos, assegurar espírito de corpo, encobrir
desaparecimentos de presos políticos ou de 8.000 indígenas durante
a ditadura.
Na realidade, a guerra é interna, declarada
por militares para se imporem à vida civil como fundamento último da República.
Uma imagem de guerra, bem entendido, já que aqui ela não se associa diretamente
ao capital, como em potências mundiais. Tapa-olho da tutela histórica.
Assim, a força da convicção tem de ser maior
que a da verdade. O saber da imagem cola-se à história republicana, deflagrada
pelos golpes de
Deodoro e Floriano, narrada em circuito comum. Atentados à Constituição são
crispações na identidade desse meio: há mais de uma consciência militar, logo,
risco de fratura. "Caserna profunda" é quase parônima de caverna. O
fato é que sem anuência americana, golpe civil-empresarial-militar vira intentona
miliciana.
Uma modernização começaria pelo féretro da
imagem que embute o culto autoritário da ordem e suspende há séculos um cutelo
sobre a cabeça da civilidade. Certo, submarino nuclear e aviões competitivos
podem ser saltos em inovação, de provável retorno para a economia nacional. A
normalidade constitucional, entretanto, requer depuração institucional. Como
na Lei de Murphy,
a imagem das forças piorou: "trollar" colegas e suas famílias,
baixezas digitais, rasgam a fantasia de combate. Na selva ou no jardim,
verdadeiras plantas daninhas são indisciplina e impunidade. Modernizar-se é
buscar autorrespeito, desfazer a sombra ominosa sobre a cidadania democrática.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
Nenhum comentário:
Postar um comentário