domingo, 25 de fevereiro de 2024

Rolf Kuntz - A praga dos dois por cento

O Estado de S. Paulo

Repetição desta taxa de 2% reflete a percepção de uma economia sem vigor para sustentar um crescimento maior e mais próximo dos padrões alcançados por outros emergentes

É bom olhar os lírios do campo e abandonar, de vez em quando, a preocupação com o dia a dia, mas também parece recomendável, para o País, cuidar um pouco mais do futuro e aumentar o investimento em bens de produção, organização produtiva e capital humano. Comida, moradia, saúde, roupas, transporte, cinema e outros mimos da vida social dependem de tratores, guindastes, prensas mecânicas, máquinas industriais, computadores, centrais elétricas e também, é claro, de escolas e profissionais variados. Disso se trata, supostamente, quando se fala de crescimento econômico. Mas quantos se lembram desses detalhes e do uso eficiente do dinheiro, quando estão envolvidos no troca-troca de Brasília, na manipulação do Orçamento e na apropriação legalizada, afinal, de recursos públicos?

“Se quisermos crescer de forma sustentável, teremos de elevar a produtividade e a taxa de investimentos em capital fixo”, lembrou o professor Affonso Celso Pastore num de seus últimos artigos, publicado em 27 de janeiro, poucas semanas antes de sua morte. Simples, claro e sem especulações, o texto rejeita a ideia de crescimento baseado na gastança federal e defende uma gestão fiscal equilibrada, compatível com juros baixos e capaz de dar sustentabilidade à dívida pública e elevar os investimentos.

Na rotina prosaica e às vezes trepidante do mundo privado, investimento produtivo depende da poupança disponível, do custo do dinheiro e de razoável segurança em relação ao futuro, num ambiente como aquele descrito pelo professor Pastore. O bom ritmo dos negócios também pode, é claro, predispor os donos do capital a gastar mais em bens de produção. Em 2023 a economia brasileira cresceu cerca de 3%, ultrapassando as previsões iniciais, mas pouco se fez para garantir um dinamismo duradouro.

No ano passado, governo e setor privado investiram em obras, máquinas e equipamentos o equivalente a 18,1% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo cálculo da Fundação Getulio Vargas (FGV). O valor investido ficou abaixo da média do período iniciado no ano 2000 e estimada em 19,2%. Foi, portanto, muito inferior às taxas – em torno de 24% – apontadas como necessárias para uma expansão sustentável da ordem de 4% ao ano. Também segundo a FGV, a maior taxa de investimento deste século, 22,8% do PIB, ocorreu em 2013. A menor, 16,9%, foi registrada em 2017, quando o País saía do buraco onde estivera afundado em dois anos de recessão.

Sem grande aumento de potencial produtivo, as perspectivas de crescimento econômico permanecem medíocres. O PIB deve aumentar apenas 1,68% neste ano, segundo a mediana das projeções captadas pelo Banco Central para o último boletim Focus. Durante um mês o boletim havia apontado apenas 1,6%, mas a recente melhora de expectativas é pouco entusiasmante. Além disso, para o período de 2025 a 2027 continua estimado um avanço anual de 2%. Há alguns anos esse número aparece como indicador das expectativas de médio e de longo prazos, como se fosse uma praga estatística.

A repetição desta taxa de 2% reflete, obviamente, a percepção de uma economia sem vigor para sustentar um crescimento maior e mais próximo dos padrões alcançados por outros emergentes. Há um evidente contraste entre os setores. Enquanto o agronegócio reafirma seguidamente seu dinamismo e sua modernidade, a maior parte da indústria se mostra estagnada. Em seis dos dez anos de 2014 a 2023 a produção da indústria geral encolheu. Em sete anos o segmento de bens de capital, isto é, de máquinas e equipamentos, apresentou resultados negativos. É um claro sinal do baixo investimento em expansão e modernização da capacidade produtiva. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Insuficiente oferta de capital, com juros altos e esquemas de crédito pouco favoráveis, pode explicar parte desse quadro. Mas o baixo dinamismo da maior parte da indústria – há subsetores e grupos em condições certamente melhores – é atribuível a um conjunto maior de fatores.

Além do financiamento precário, é fácil apontar, entre outros problemas, a tributação inadequada, o escasso investimento em tecnologia, a infraestrutura deficiente, a baixa oferta de mão de obra qualificada ou qualificável, a insegurança jurídica, o excesso de burocracia e, é claro, a pouca integração nas cadeias globais. Só para cuidar da complicação tributária gasta-se muito tempo de funcionários qualificados, num evidente desperdício de capacidade produtiva, como já apontaram instituições multilaterais.

O governo tem prometido melhores condições para a modernização e a expansão do setor industrial. Mas houve poucos sinais de mudança, até agora, nas condições de operação da maior parte da indústria, especialmente do segmento de transformação. As manifestações do ministro da Indústria, o vice-presidente Geraldo Alckmin, têm sido estimulantes, mas o desafio, agora, é incomum. Não se trata apenas de promover a expansão de um setor, mas de reverter a indisfarçável desindustrialização iniciada há mais de uma década.

 

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