Combate ao crime exige retomar controle de prisões
O Globo
No ano passado, quase um preso fugiu por dia,
enquanto verbas destinadas à segurança sofreram cortes sucessivos
A fuga de dois detentos do presídio federal
de segurança máxima de Mossoró, no Rio Grande do Norte, foi inédita, dado o
retrospecto inexpugnável dessas cadeias. Elas contrastam com as superlotadas
prisões estaduais, que abrigam a massa de mais de 650 mil presos do Brasil. Levantamento
do GLOBO junto a 18 estados constatou que, no ano passado, 333 presos fugiram
da cadeia, quase um por dia.
As penitenciárias brasileiras estão longe do nível de segurança necessário para os condenados cumprirem as penas estabelecidas pela Justiça. A maioria das fugas ocorre na surdina, geralmente com a colaboração de agentes penitenciários e a ajuda das facções criminosas que controlam as prisões. “É ilusório pensar que a fuga acontece só por vontade própria, isso só [existe] nos filmes de Hollywood. No Brasil demanda muito dinheiro”, diz Ludmila Ribeiro, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
É o que mostra a evasão de 14 detidos no
presídio de Trindade, em Goiás, em outubro passado. Nas investigações, foram
presos um agente penal e um vigilante temporário. Cada um dos fugitivos foi
acusado de ter pagado R$ 10 mil aos dois agentes. Em troca, eles deixaram a
cela aberta, para os detentos alcançarem um buraco no telhado do corredor. Os
presos pagaram o suborno por Pix durante um banho de sol.
As organizações criminosas se fortalecem com
as más condições das penitenciárias. De acordo com o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), 48% estão superlotadas e 33% em condições avaliadas como
“péssimas” ou “ruins”. Um sintoma de que o problema não vem merecendo o
tratamento necessário é a queda nos recursos do Fundo Penitenciário Nacional,
que destina verbas à União e aos estados para políticas na área. Os valores
caíram de R$ 1,2 bilhão para R$ 605 milhões entre 2018 e 2023. Para
este ano, a previsão é modesta: R$ 361 milhões. Em 2023, 64% dos recursos foram
destinados à compra de veículos, equipamentos de proteção e armamento. O resto
foi gasto em despesas correntes, como luz, gás, salários, passagens e diárias.
O fundo é importante não só para construir
novas unidades, mas também para garantir a segurança das atuais. No caso de
Mossoró, havia problemas de manutenção dos equipamentos: 124 câmeras de
vigilância estavam fora de operação. As imagens disponíveis são de péssima
qualidade.
Qualquer debate sobre segurança pública hoje
precisa passar pelos presídios, que não cumprem a função de isolar os presos do
convívio. De dentro das celas, eles continuam tocando suas atividades
criminosas, ordenando execuções de rivais, ataques ao patrimônio público ou
fugas. Unidades prisionais superlotadas funcionam como escolas do crime,
formando mão de obra especializada para o tráfico e a milícia.
Com protocolos rígidos e vagas de sobra, as
cinco penitenciárias federais de segurança máxima figuram como ilhas de
exceção. Mesmo assim, não são perfeitas, como mostrou a fuga em Mossoró. Nas
unidades estaduais, a situação é preocupante. De 2000 até junho do ano passado,
o déficit de vagas quase dobrou (de 97 mil para 166 mil). Se o Brasil quiser
combater as facções criminosas, terá de retomar o controle dos presídios. Isso
implica investimentos e gestão. Do contrário, as cadeias continuarão a ser cenário
de fugas, além de fonte inesgotável de mão de obra para a violência nas
ruas.
Processo da UE contra TikTok serve de exemplo
de regulação no meio digital
O Globo
Autoridades de Bruxelas investigam se
plataforma chinesa protege as crianças de modo satisfatório
A União
Europeia (UE) se firma como um mercado pioneiro nas iniciativas
para disciplinar as plataformas digitais. Na
segunda-feira, os reguladores da UE abriram investigação sobre o TikTok.
O processo se baseia na nova Lei de Serviços Digitais (DSA, em inglês) e tem
como objetivo avaliar os mecanismos usados para proteger as crianças. Serão
avaliados os sistemas de filtro da plataforma de vídeos, propriedade da chinesa
ByteDance, destinados a barrar conteúdos indesejáveis como violência,
pornografia ou publicidades nocivas.
Na investigação sobre o TikTok,
os reguladores pretendem avaliar também o uso de algoritmos para sugerir
vídeos. Pela experiência acumulada, é sabido que esse caminho costuma levar a
conteúdos extremistas, forma eficaz de manter a clientela sempre “engajada”. O
TikTok também é acusado de induzir usuários a acessar e a produzir vídeos que
invadem a privacidade.
A plataforma de vídeo chinesa estava havia
algum tempo sob vigilância dos reguladores europeus. Em abril do ano passado, o
TikTok foi multado em € 345 milhões na Irlanda, por contrariar legislação da UE
na gestão das informações sobre as crianças que acessam a plataforma. O mesmo
aconteceu no Reino Unido. Se a plataforma for condenada com base no DSA, ela
poderá receber uma multa de até 6% do faturamento global.
Os reguladores europeus não se concentram
apenas no TikTok. Em dezembro, a plataforma X, ex-Twitter, controlada pelo
bilionário Elon Musk, entrou na mira dos investigadores de Bruxelas. Chamaram a
atenção dos órgãos de regulação falhas no bloqueio de conteúdos ilegais e a
aplicação de medidas inadequadas contra a desinformação.
Também a Apple é alvo das autoridades
europeias, em razão de suas políticas no mercado de streaming. A Comissão
Europeia apura se ela tem bloqueado aplicativos que informam aos usuários meios
mais baratos de obtê-los, fora da Apple Store. Se comprovado, o fato
configuraria abuso de poder econômico. As autoridades de Bruxelas podem
aplicar, segundo o jornal britânico Financial Times, uma multa de € 500
milhões.
O TikTok enfrenta a mesma questão de Google
(dono do YouTube) e Meta (controladora de Facebook, Instagram, WhatsApp). Há
muito tempo atraem uma audiência de bilhões de pessoas no planeta sem políticas
satisfatórias de moderação de conteúdo, resguardando-se na falácia de que são
“apenas” empresas de tecnologia — mesmo que tenham se tornado ferramenta de
lazer e trabalho. Plataformas como o TikTok precisarão a cada dia levar mais a
sério os organismos regulatórios, dentro e fora da UE.
Censo mostra atraso do país no saneamento
Folha de S. Paulo
Avanço lento e desigual mantém 49 milhões de
cidadãos sem acesso a esgoto; modelo estatista, é evidente, está exaurido
De menos ruim, os dados recém-divulgados do
Censo 2022 sobre saneamento básico mostram avanço ao longo da última década.
Trata-se, entretanto, de uma melhora lenta e desigual, que mantém o Brasil em
situação vexaminosa para um país de renda média.
No ano retrasado, 75,7% dos
brasileiros viviam em domicílios com acesso a coleta de esgoto tida
como adequada, ante 64,5% contados em 2010. Dito de outro modo, o quarto
restante dos cidadãos —49 milhões de pessoas, mais que a população da
Argentina— recorre a fossas rudimentares, valas, buracos e águas de rios, lagos
e mar.
Dados mais completos e detalhados mostram um
cenário ainda mais aviltante. No Censo, o IBGE só consegue investigar a coleta,
deixando de lado o tratamento do esgoto, e considera aceitáveis as condições de
domicílios com fossa séptica ou fossa-filtro, que perfazem 13,2% do total
nacional.
De acordo com o Sistema Nacional de
Informações sobre Saneamento (SNIS), somente 52,2% do esgoto do país é tratado,
o que atende não mais de 56% da população.
Num comparativo internacional sobre o tema
feito há um ano por agências da ONU, o Brasil ocupava um deplorável 76º lugar
entre 129 países, atrás de vizinhos mais pobres como Paraguai e Bolívia.
Mesmo o progresso apontado pelo Censo
2022 revela
disparidades regionais gritantes. Enquanto a taxa de coleta adequada
subiu de 85,7% para 90,7% no Sudeste entre 2010 e 2022, no Nordeste a variação
no período foi de 43,2% a 58,1%, e no Norte, de 31,1% a 46,4%.
Os números comprovam, como se isso ainda
fosse necessário, que está exaurido o modelo de saneamento básico baseado em
empresas estatais —que conta com defensores obstinados no governo Luiz Inácio
Lula da Silva (PT), na esquerda e nos sindicatos.
O panorama, felizmente, dá sinais de mudança
forçada pela realidade. O novo marco legal do setor, aprovado em 2020, abriu
caminho para maior participação do setor privado mirando a meta de
universalização até 2033. No ano passado, o Congresso barrou a tentativa de
Lula de promover um retrocesso na legislação.
A indigência nacional em saneamento é
desastrosa para o ambiente e a saúde pública —a explosão
anunciada da dengue é apenas um exemplo mais recente. Sua superação
depende de investimentos vultosos e gestão eficiente, em falta no poder público
deficitário.
Privatizações, como se fez no Rio e se
pretende fazer em São Paulo, mostram um bem-vindo pragmatismo. Há muito a fazer
para evitar nova constatação de atraso civilizatório no Censo de 2030.
Meio cheio, meio vazio
Folha de S. Paulo
Censo Escolar 2023 mostra alguns progressos e
gargalos crônicos, como a evasão
Segundo o Censo Escolar 2023, divulgado na
quinta (22), mais de 68 milhões de brasileiros acima de 18 anos não concluíram
a educação básica e não estudam; na faixa de 18 a 24 anos, são mais de 4
milhões.
Esses números apontam para gargalos no ensino
médio, no qual se verificam os principais problemas que levam à evasão escolar.
A taxa de reprovação é mais alta na primeira
(4,1%) e na terceira série (5,6%) dessa etapa, de acordo com dados entre 2020 e
2021 levantados pela pesquisa. Não à toa, as taxas de abandono dos estudos
chegam a 7% e 7,1% no primeiro e no segundo ano, respectivamente, e 5,9% na
média dos três anos.
É inescapável, entende este jornal, dar
continuidade à reforma dessa etapa da vida escolar, que tem como
objetivos tornar o currículo mais atraente, com a oferta de percursos
formativos focados em áreas de interesse dos alunos, e estimular a educação
profissional.
Nesta última, as matrículas foram de 1,9
milhão em 2019 para 2,4 milhões em 2023 —1,3 milhão na rede pública e 1,07
milhão na particular.
Mas maior parcela dos alunos (44,7%) está na
modalidade subsequente do ensino técnico, quando foi concluído o ensino médio.
Seria mais adequado elevar a participação nos modelos integrado (32,4%) e
concomitante (13,7%).
O ensino de tempo integral, que melhora o
aprendizado e ajuda a diminuir a evasão, também evoluiu, com 21% das matrículas
na educação básica em 2023 —alta de 5,1 pontos percentuais em relação a 2021.
Mas o país ainda não alcançou a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) de
2014, que prevê 25% de matrículas neste ano.
Outro incremento foi o número de alunos em
creches, que
subiu de 3,4 milhões em 2021 para 4,1 milhões em 2023. Para cumprir
o PNE, que estipula 50% de crianças entre 0 e 3 anos, o número precisa chegar a
cerca de 5 milhões.
Apesar de melhoras, o Brasil ainda está muito
aquém dos parâmetros de uma educação de qualidade.
Espera-se que os achados do censo orientem uma alocação eficiente de recursos
públicos para resolver problemas desse setor fundamental para a redução da
exorbitante desigualdade social do país.
Bolsonaro quer sequestrar a oposição
O Estado de S. Paulo
Com o ato de hoje na Paulista, Bolsonaro espera demonstrar que, a despeito do futuro nada auspicioso que se lhe apresenta, é ele o único capaz de liderar a oposição a Lula da Silva
Jair Bolsonaro subirá num carro de som na
Avenida Paulista hoje à tarde como um homem acuado. O ex-presidente vive o
momento mais crítico de sua longa e improdutiva trajetória política – quando
emergem, dia após dia, os detalhes da conspiração bolsonarista para tentar um
golpe de Estado, tudo tramado nas salas de reunião da Presidência da República.
No limite, isso poderá custar não só a proscrição definitiva de Bolsonaro das
disputas eleitorais, como também anos de cadeia para ele e para seus sócios na
empreitada golpista.
A manifestação, portanto, desvelase como uma
tentativa de resposta política de Bolsonaro diante desse quadro adverso. Seu
objetivo é muito claro: demonstrar que, a despeito do futuro nada auspicioso
que se lhe apresenta, é ele o único político capaz de liderar a oposição ao
governo do presidente Lula da Silva e que abandoná-lo não é uma opção.
Mas dessa oposição – golpista, que insulta as
instituições democráticas, ataca a imprensa e prega a violência – o País não
precisa. Pode ser que sirva aos propósitos do presidente Lula da Silva, que
vestiu a fantasia de herói da democracia contra a ameaça bolsonarista, mas não
serve aos propósitos do Brasil, terrivelmente necessitado de uma oposição que
ajude a construir soluções em vez de sabotar o diálogo. Definitivamente, não é
essa a oposição civilizada e democrática que estará no carro de som para desagravar
Bolsonaro – ainda que, por estratégia de seus advogados, não se gritem palavras
de ordem contra o Supremo Tribunal Federal nem a favor da ruptura democrática,
como de hábito.
Quando convocou seus apoiadores para a
manifestação de hoje dizendo que, “mais do que discursos”, o importante é “uma
fotografia de todos vocês”, para “mostrar para o Brasil e para o mundo a nossa
união”, Bolsonaro nem sequer tentou disfarçar sua estratégia. Essa “união”
entre ele e o eleitorado que se opõe visceralmente a Lula e ao PT tem o
evidente propósito de constranger os aliados de Bolsonaro que hesitam em seguir
a seu lado no momento em que seu envolvimento numa trama explicitamente
golpista fica cada vez mais evidente.
À luz das leis e da Constituição, pouco
importa se haverá uma multidão ou uns gatos-pingados hoje na Avenida Paulista.
É bastante improvável que a Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República
e o Supremo Tribunal Federal façam ou deixem de fazer o que se lhes impõe o
ordenamento jurídico do País a depender do número de pessoas enquadradas na
fotografia por que Bolsonaro tanto anseia.
Se as intenções de Bolsonaro estão
claríssimas, resta ver como se comportarão seus aliados políticos. São muitas
as suspeitas de que houve, de fato, a intenção de dar um golpe de Estado em
2022 para impedir a posse de Lula e manter Bolsonaro no poder, em desabrida
afronta à soberania da vontade popular manifestada nas urnas. É ao lado do
líder dessa conspirata que as lideranças de uma dita direita moderada desejam
estar?
Nesse sentido, é estarrecedor que o
governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, não só tenha cedido o Palácio dos
Bandeirantes como estalagem para Bolsonaro, como ainda tenha aberto as portas
da sede do governo paulista, nada menos, para servir de escritório para
“reuniões preparatórias” para a manifestação de hoje. O cálculo eleitoral, a
lealdade ou a gratidão, seja qual for o nome que se dê às razões de Tarcísio
para emprestar a pujança política de São Paulo a um golpista de marca maior, já
começam a flertar com a imprudência. Afinal, a rigor, ninguém sabe que rumo a
manifestação poderá tomar. Bolsonaristas radicais já deram mostras do que são
capazes quando os interesses do “mito” estão sob risco.
Por aí se vê a força de Bolsonaro, que, a
despeito de suas aflições judiciais, ainda é capaz de sequestrar a direita tida
como moderada e submetê-la a seus propósitos truculentos e antidemocráticos.
Não se sabe quanto tempo essa força durará, mas, até que expire, continuará a
distorcer as causas liberais e a acarretar imensos prejuízos ao bom debate.
Limitação das ‘saidinhas’ não é panaceia
O Estado de S. Paulo
Restrição draconiana à concessão do benefício
para todos os presos, indistintamente, significa a capitulação do Estado na
missão de ressocializar os cidadãos sob sua custódia
O Senado aprovou o Projeto de Lei (PL)
2.253/2022, que restringe duramente a concessão das saídas temporárias aos
presos de bom comportamento em regime semiaberto. Pode-se dizer que os
senadores promoveram um certo avanço humanitário. Afinal, o texto original
aprovado pela Câmara previa o fim total das chamadas “saidinhas”, não sua
limitação. De qualquer forma, o populismo prevaleceu no debate sobre um projeto
que, a bem da sociedade, deveria ter sido discutido à luz das evidências, com
mais técnica e menos paixão.
Dito isso, é incontornável reconhecer que o
PL 2.253 mexe com as emoções de uma sociedade farta da leniência do Estado para
lidar com o problema da violência. O País parece estar de joelhos diante de
organizações criminosas cada vez mais perversas. É ultrajante ver agentes
públicos se associarem a criminosos numa torpe joint venture delitiva que faz
com que milhões de cidadãos se sintam largados à própria sorte. Aí estão as
facções do tráfico e as milícias, que ocupam largas porções do território
nacional e ali escrevem com sangue as suas próprias constituições.
Esse sentimento foi muito bem captado pelo
senador Fabiano Contarato (PT-ES), cujas credenciais democráticas e humanistas
são insuspeitas. Ao votar a favor da restrição das “saidinhas”, Contarato
reconheceu que, “diante dessas circunstâncias, não é razoável explicar (a
concessão de benefícios penais) para quem teve um filho morto por homicídio
doloso”. Pedindo perdão aos colegas de bancada, Contarato sustentou seu voto
por entender que o benefício “não passa a sensação, mas a certeza da
impunidade” para a população.
Há fundamento nesse desabafo do senador
petista. O controle de permissões para as “saidinhas” é falho. Não há dúvida de
que têm ido para as ruas em feriados e datas comemorativas alguns presos que
jamais deveriam ter o benefício. Entretanto, são casos isolados, que não
deveriam servir de base para a continuidade ou a revogação de uma política
pública; deveriam, antes, servir ao seu aprimoramento.
É quase certo que o PL 2.253 será aprovado
novamente pela Câmara antes de seguir para análise do presidente Lula da Silva.
Resta ver se os deputados vão preservar no texto a emenda do senador Sergio
Moro (União-PR), que manteve a permissão para as “saidinhas” para presos
matriculados em cursos profissionalizantes, no ensino médio ou superior. Mas,
independentemente do resultado final, é fundamental refletir se a medida, de
fato, contribuirá para o aumento da segurança da sociedade. O castigo estatal
tem uma justa dimensão restaurativa, mas também deve ensejar medidas capazes de
evitar que os condenados voltem a delinquir quando postos em liberdade.
As “saidinhas”, se bem controladas, têm essa
dimensão preventiva. Elas permitem que os presos de bom comportamento – que,
diga-se, já desfrutam de certo grau de liberdade por cumprirem pena em regime
semiaberto – tenham contato com suas famílias e, assim, sejam acolhidos por
mais tempo em um ambiente social diametralmente oposto, por óbvio, à
brutalidade dos presídios. Retirar de todos os presos, indistintamente, esse
respiro de humanidade tende a aumentar a vulnerabilidade dos que cometeram
crimes menos graves ao assédio cada vez mais violento das organizações
criminosas que exercem poder de vida e morte intramuros.
O problema da violência deve ser enfrentado
com um arcabouço legal mais inteligente. No caso em questão, isso significa
aprimorar os controles sobre as “saidinhas”, não acabar com o benefício.
Medidas de ressocialização não são favores
prestados aos criminosos. É no melhor interesse da sociedade que elas existem.
Não há pena de morte nem tampouco de prisão perpétua no Brasil, o que significa
que quem cometeu um crime e foi preso um dia haverá de voltar ao convívio
social. Que preso será esse e com que espírito voltará a circular pelas ruas,
depende de quanto o Estado está disposto a lhe estender a mão para reconduzi-lo
para uma vida digna.
Consenso sobre o Estado palestino
O Estado de S. Paulo
G-20 apresenta a Israel o desafio de prever
sua convivência com uma Palestina soberana
O consenso de chanceleres do G-20 sobre o
estabelecimento de um Estado palestino, durante o recente encontro no Rio de
Janeiro, deu mais um sinal de que esse antigo projeto pode afinal sair do
papel. A rara unanimidade entre potências ocidentais e países emergentes sobre
o tema abre a perspectiva de que essa iniciativa avance ainda neste ano, o que
impõe a Israel a escolha entre participar do processo e influenciá-lo conforme
seus interesses ou manter-se intransigente e se isolar ainda mais.
Sensatez, entretanto, é o que não se tem
visto por parte de Israel. Malgrado a incontestável legitimidade de sua reação
militar contra o Hamas depois das atrocidades cometidas pelos terroristas
palestinos contra centenas de civis israelenses, em outubro passado, a operação
em Gaza tem cobrado preço alto demais em vidas inocentes e, pior, praticamente
inviabiliza a vida normal ali depois que a guerra acabar. Para piorar, os
sequestrados pelo Hamas continuam reféns, e o grupo terrorista ainda demonstra
algum vigor. Ou seja, os grandes objetivos de Israel ainda não foram cumpridos.
É nesse cenário que o governo israelense tem
sido pressionado a negociar, inclusive pelo seu maior aliado, os Estados
Unidos, como ficou claro na reunião técnica do G-20. “É um consenso entre todos
nós, porque eu não ouvi ninguém dizer nada contra a solução de dois Estados.
Então vamos tornar público”, disse o chefe da diplomacia da União Europeia,
Josep Borrell. O secretário de Estado americano, Anthony Blinken, manifestou
seu apoio à criação do Estado palestino na reunião e também na conversa que
teve com o presidente Lula da Silva.
O primeiro-ministro israelense, Benjamin
Netanyahu, vinha evitando falar no pós-guerra, com receio de perder o apoio de
seus aliados mais extremistas, que desejam a reocupação de Gaza, mas
aparentemente a pressão internacional o obrigou a tocar no assunto. Ele afinal
apresentou um plano intitulado “O Dia Seguinte ao Hamas”, em que estabelece
suas prioridades na administração de Gaza depois da guerra. O território seria
gerenciado por “autoridades locais” sem vinculação “com países ou grupos que
apoiam o terrorismo”, mas o Exército israelense teria carta branca para agir na
região para evitar a volta do terrorismo. Ademais, o plano estabelece uma faixa
de segurança em Gaza, na fronteira com Israel, que será mantida “enquanto
houver necessidade de segurança”.
Os EUA já se manifestaram contrários a qualquer redução do território de Gaza, mas é evidente que Israel não negociará nada enquanto não tiver garantias de segurança críveis. Sua intenção de obliterar o Hamas está em linha com esse imperativo, que não pode ser ignorado, sob pena de inviabilizar qualquer diálogo. Por outro lado, a segurança de Israel só será garantida se, do outro lado da fronteira, houver um Estado palestino funcional, viável e democrático – única forma de neutralizar os palestinos radicais que defendem a destruição de Israel e dos judeus.
Saneamento e dignidade
Correio Braziliense
São gritantes as desigualdades captadas pelo IBGE quando se detalham as informações. Dos 203 milhões de cidadãos, 24,3% não contam com o descarte adequado de esgoto, mas esse índice sobe para 68,6% entre pretos e pardos
Dados do Censo de 2022, elaborado pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que o Brasil
avançou no acesso da população ao saneamento básico, mas as condições gerais
ainda estão muito aquém do necessário. Entre 2010 e 2022, a proporção de lares
com coleta adequada de esgoto passou de 64,5% para 75,7%. Ainda assim, 49
milhões de brasileiros não são atendidos por esse serviço. Isso em um país que
se comprometeu com um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), das
Nações Unidas, de ter 100% das casas ligadas a redes de saneamento até 2030.
São gritantes as desigualdades captadas pelo
IBGE quando se detalham as informações. Dos 203 milhões de cidadãos, 24,3% não
contam com o descarte adequado de esgoto, mas esse índice sobe para 68,6% entre
pretos e pardos. Em 2.386 cidades, todas de pequeno porte, menos da metade das
residências tem saneamento. As piores situações estão em áreas rurais e
assentamentos informais nas periferias das grandes metrópoles, o que comprova
que as políticas públicas estão voltadas apenas para as áreas urbanas.
Outro dado estarrecedor: 1,2 milhão de
pessoas, dos quais 868 mil no Nordeste, não têm nenhum tipo de banheiro em
casa, mesmo que improvisado. Por outro lado, 5,4 milhões vivem em moradias com
quatro ou mais banheiros. Não é só: entre os 49 milhões sem rede coletora ou
fossa séptica, a maioria despeja o esgoto em buracos ou fossas rudimentares. O
restante usa rios, lagos e córregos para despejar os dejetos.
Essa realidade explica, em boa parte, os
recorrentes problemas de saúde da população mais pobre, sujeita a doenças como
diarreia, que mata milhares de crianças todos os anos, e verminoses. Também
justifica os surtos de dengue, zika e chikungunya. Os resultados desse descaso,
da ausência do Estado, são superlotação de hospitais, gastos excessivos com
medicamentos e mortes que poderiam ser evitadas. Passou, portanto, da hora de
se atacar os problemas com medidas efetivas, como dobrar ou mesmo triplicar os
investimentos médios anuais em redes coletoras de esgoto.
Na avaliação de especialistas, os últimos
anos mostraram que políticas públicas focadas, sem ideologia, podem trazer bons
resultados. Pelo menos até 2015, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)
conseguiu destravar obras importantes, especialmente no Nordeste, onde o total
de lares com saneamento saltou de 59,2%, em 2010, para 64,5%, em 2022. A
melhora geral no país, ao longo desse período, foi possível, ainda, por meio
das parcerias público-privadas (PPPs), das concessões e das privatizações. Os investimentos
privados têm feito a diferença.
São poucos os que acreditam na promessa do
Brasil se integrar a totalidade das residências a redes coletoras de esgoto nos
próximos seis anos. Contudo, é preciso persistir nesse compromisso, pois é
inaceitável que tanta gente ainda seja submetida a condições de dois séculos
atrás. No mundo político, sempre se disse que obras de saneamento básico, por
ficarem debaixo da terra, não dão votos. Esse tipo de argumento é, no mínimo,
uma aberração. Permitir que as pessoas tenham melhores condições de vida der ser
princípio básico entre aqueles que exercem funções públicas.
Num país de tantos desperdícios, de verbas
públicas aplicadas de forma errada e, muitas vezes, desviadas, a população não
deve ser omitir, mesmo aquela parcela que pode escolher que banheiro vai usar
em casa. É fundamental cobrar todas as esferas de governo, uma vez que têm
responsabilidades a cumprir, para que a dignidade humana seja considerada na
definição dos investimentos públicos.
É preciso ressaltar, também, que o novo marco do saneamento, aprovado em 2020, trouxe avanços importantes no sentido de melhorar a destinação de recursos para o setor, seja do ponto de vista público, seja do privado. Isso passa pelo empenho efetivo de governantes e legisladores a fim de que os interesses da população se sobreponham às artimanhas políticas, inclusive, para o bom andamento da economia. Foi a melhora da renda da população nos últimos anos, com a inflação sob controle, que permitiu a muitas famílias buscarem moradias em condições melhores. Mãos à obra.
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