domingo, 25 de fevereiro de 2024

Eliane Cantanhêde - Lágrimas de crocodilo e minissérie

O Estado de S. Paulo

Lula esquece Holocausto, mas insiste em genocídio para evitar armadilha e massacre em Rafah

A semana passada começou desastrosa, com a inaceitável comparação dos ataques a Gaza com o Holocausto, mas evoluiu bem com dois consensos importantes na reunião de chanceleres do G-20 (grupo das maiores economias globais) e encerrou com o presidente Lula modulando o seu discurso: deixou de lado o falatório sobre Holocausto, mas manteve a acusação de genocídio contra Israel.

A insistência no termo genocídio tem motivo: o temor, não só do Brasil, mas do mundo, de que a próxima etapa da selvageria seja em Rafah, ao sul de Gaza, na fronteira com o Egito, para onde o regime Netanyahu empurrou milhares de famílias palestinas. Ou seja, de que Rafah se transforme numa armadilha. Como me disse um alto diplomata, “não venham chorar lágrimas de crocodilo e fazer minissérie depois, tarde demais”.

Lula está também amparado pela Corte Internacional de Justiça de Haia. Acionada pela África do Sul, inclusive com apoio do Brasil, para julgar Israel por violação à chamada “Convenção contra Genocídio”, de 1948, a Corte adotou medidas cautelares contra o regime Netanyahu, ou seja, reconheceu o risco real de genocídio contra os palestinos, diante da passividade do mundo e da ONU.

Aliás, os dois principais consensos na reunião de chanceleres do G-20 foram a criação de dois Estados independentes, o de Israel e o da Palestina, e justamente a reforma da ONU. Sob a presidência do Brasil, os chanceleres deixaram as (muitas) discordâncias em segundo plano para focar nas convergências. Exemplo: Brasil e EUA discordam em relação à guerra de Israel e ao uso do termo genocídio, mas concordam com a necessidade de dois Estados. Segundo o anfitrião Mauro Vieira, essa posição foi “uma virtual unanimidade” na reunião.

E quem haveria de discordar de que a ONU não está funcionando? O mundo mudou e não tem sentido manter cinco potências com direito a veto e impedindo unilateralmente resoluções de interesse da humanidade. Com um único voto, os EUA derrubaram a proposta do Brasil para cessar-fogo em Gaza. Como falar é uma coisa e fazer é outra, o Brasil e o mundo sabem que EUA, Rússia, China, Reino Unido e França, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, dizem que topam, mas vão fazer tudo para evitar a reforma.

Por isso, a próxima reunião de chanceleres do G-20 será na sede da ONU, em Nova York, em setembro, durante a abertura da Assembleia-Geral. Vai começar, de fato, debate sério sobre a velha e agora inadiável atualização da governança global. Lula abriu pessimamente a semana, mas a consistente diplomacia brasileira botou o trem nos trilhos.

 

2 comentários:

Daniel disse...

Muito bom! Prezada colunista: a diplomacia brasileira é autônoma e independente ou ELA SEGUE OS RUMOS DITADOS PELO PRESIDENTE?

ADEMAR AMANCIO disse...

Sei.