O Globo
Tudo remeteu à ditadura na semana da
efeméride nefasta dos 60 anos do golpe militar que depôs o então presidente
João Goulart. Quase dois meses depois de fugirem da unidade federal, até então,
de segurança máxima, Deibson Cabral Nascimento e Rogério da Silva Mendonça
foram presos ontem por PF e PRF na BR-222, em Marabá (PA), a 1.600 quilômetros
de Mossoró (RN),
de onde escaparam em pleno carnaval. A demora na captura e a distância
percorrida não deixam dúvida de que os dois criminosos receberam ajuda da
facção que integram, o Comando Vermelho. A organização nasceu nos anos 1970 nos
porões do regime, que juntou detentos comuns e presos políticos no extinto
presídio da Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ).
Foi impossível não revisitar as décadas de arbítrio por esses dias. Na terça-feira, a Comissão de Anistia, ligada ao Ministério dos Direitos Humanos, pediu perdão aos indígenas crenaque (MG) e guarani-caiouá (MS) pelas atrocidades cometidas pelo Estado. A presidente Eneá de Stutz e Almeida se ajoelhou diante da matriarca Djanira Krenak e do cacique Tito Vilhalva, ancião da etnia guarani-caiouá. A Comissão Nacional da Verdade, encerrada em 2014, contabilizou 8.350 indígenas mortos ou desaparecidos durante o regime.
No dia seguinte, a mesma Comissão reconheceu
como anistiada política Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog, torturado e
assassinado nas dependências do DOI-Codi (SP), em outubro de 1975. O Conselho
Nacional dos Direitos Humanos, também vinculado ao MDH, anunciou a reabertura
do caso Rubens Paiva, ex-deputado federal sequestrado, torturado e morto em
1971, cujo corpo jamais foi encontrado. São dois casos emblemáticos, que
escancararam a brutalidade do governo dos militares, sobretudo, a parcelas da
classe média e de uma elite inebriadas pelo milagre econômico, que multiplicou,
primeiro, o PIB; depois, a pobreza, a desigualdade, a inflação. Lembramos para
que o arbítrio, ainda à espreita, não retorne.
As digitais do período de trevas ainda estão
em segmentos da população relegados nas primeiras safras de pesquisa e produção
acadêmica. Quase 2 mil camponeses perderam a vida durante o regime; movimento
negro e sindicatos de trabalhadores foram perseguidos; artistas, censurados.
Com aval do regime, a violência explodiu
no campo e nas cidades pelas mãos de jagunços, grupos de extermínio e agentes
do Estado. Em novembro passado, a Federação das Associações de Favelas do Rio
de Janeiro (Faferj) e a Defensoria Pública da União ingressaram com pedido na
Comissão de Anistia de reconhecimento e reparação. O cotidiano de invasão,
repressão, remoção e violência, ainda hoje presente nas relações do poder
público com as comunidades populares e periferias, não é fruto de combustão
espontânea. Tem História. E a ditadura passa por ela.
Quando a captura dos fugitivos de Mossoró
ganhou o noticiário, ontem à tarde, ficou evidente quão longe foi a facção
gestada num presídio da Costa Verde fluminense. O CV, de grupo armado do
tráfico de drogas, tornou-se organização criminosa gigante e complexa,
ramificada em estados do Nordeste e do Norte e com conexões no exterior. O
governo, com razão, festeja a prisão dos matadores sem um tiro disparado,
ninguém morto, ninguém ferido, como frisou o ministro da Justiça, Ricardo
Lewandowski.
Mas não dá para esquecer que eles fugiram,
sem dificuldade, de um presídio federal. Viajaram seis dias num barco. Saíram
do Rio Grande do Norte e passaram por três estados (Ceará, Piauí e Maranhão)
até chegar ao Pará. Receberam da facção dinheiro, fuzil, oito telefones
celulares, escolta de quatro comparsas em três automóveis. Não saiu barato. O
MJ informou que Rogério e Deibson pretendiam fugir para o exterior, sem mais
detalhes. O governador do Pará, Helder Barbalho, disse a jornalistas que o
comboio pretendia chegar a Rondônia e atravessar a fronteira. Faz algum sentido
pelas conexões do CV com o tráfico internacional na Bolívia ou no Peru.
Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, lembra que, no Norte do Brasil, o Comando Vermelho é
hegemônico em todos os estados, sobretudo no Acre, origem da dupla de
fugitivos. A facção, destaca, só não apita em Rondônia — onde, por sinal, há o
presídio federal de Porto Velho — e na porção de Roraima que encosta na
Venezuela e na Guiana. Ali, o domínio é do PCC, a poderosa facção que saiu de
São Paulo para o Brasil e o mundo. Um mapeamento do Fórum, de 2022, identificou
53 facções criminosas em atuação no Brasil. O PCC está em 24 estados e no DF; o
CV, em 13 UFs. A detenção dos fugitivos devolve credibilidade ao sistema
federal, ao MJ, ao governo. O Estado brasileiro tem de caminhar muito.
Lembremos.
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