sexta-feira, 5 de abril de 2024

Flávia Oliveira - Inventário incompleto

O Globo

Tudo remeteu à ditadura na semana da efeméride nefasta dos 60 anos do golpe militar que depôs o então presidente João Goulart. Quase dois meses depois de fugirem da unidade federal, até então, de segurança máxima, Deibson Cabral Nascimento e Rogério da Silva Mendonça foram presos ontem por PF e PRF na BR-222, em Marabá (PA), a 1.600 quilômetros de Mossoró (RN), de onde escaparam em pleno carnaval. A demora na captura e a distância percorrida não deixam dúvida de que os dois criminosos receberam ajuda da facção que integram, o Comando Vermelho. A organização nasceu nos anos 1970 nos porões do regime, que juntou detentos comuns e presos políticos no extinto presídio da Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ).

Foi impossível não revisitar as décadas de arbítrio por esses dias. Na terça-feira, a Comissão de Anistia, ligada ao Ministério dos Direitos Humanos, pediu perdão aos indígenas crenaque (MG) e guarani-caiouá (MS) pelas atrocidades cometidas pelo Estado. A presidente Eneá de Stutz e Almeida se ajoelhou diante da matriarca Djanira Krenak e do cacique Tito Vilhalva, ancião da etnia guarani-caiouá. A Comissão Nacional da Verdade, encerrada em 2014, contabilizou 8.350 indígenas mortos ou desaparecidos durante o regime.

No dia seguinte, a mesma Comissão reconheceu como anistiada política Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog, torturado e assassinado nas dependências do DOI-Codi (SP), em outubro de 1975. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos, também vinculado ao MDH, anunciou a reabertura do caso Rubens Paiva, ex-deputado federal sequestrado, torturado e morto em 1971, cujo corpo jamais foi encontrado. São dois casos emblemáticos, que escancararam a brutalidade do governo dos militares, sobretudo, a parcelas da classe média e de uma elite inebriadas pelo milagre econômico, que multiplicou, primeiro, o PIB; depois, a pobreza, a desigualdade, a inflação. Lembramos para que o arbítrio, ainda à espreita, não retorne.

As digitais do período de trevas ainda estão em segmentos da população relegados nas primeiras safras de pesquisa e produção acadêmica. Quase 2 mil camponeses perderam a vida durante o regime; movimento negro e sindicatos de trabalhadores foram perseguidos; artistas, censurados. Com aval do regime, a violência explodiu no campo e nas cidades pelas mãos de jagunços, grupos de extermínio e agentes do Estado. Em novembro passado, a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj) e a Defensoria Pública da União ingressaram com pedido na Comissão de Anistia de reconhecimento e reparação. O cotidiano de invasão, repressão, remoção e violência, ainda hoje presente nas relações do poder público com as comunidades populares e periferias, não é fruto de combustão espontânea. Tem História. E a ditadura passa por ela.

Quando a captura dos fugitivos de Mossoró ganhou o noticiário, ontem à tarde, ficou evidente quão longe foi a facção gestada num presídio da Costa Verde fluminense. O CV, de grupo armado do tráfico de drogas, tornou-se organização criminosa gigante e complexa, ramificada em estados do Nordeste e do Norte e com conexões no exterior. O governo, com razão, festeja a prisão dos matadores sem um tiro disparado, ninguém morto, ninguém ferido, como frisou o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski.

Mas não dá para esquecer que eles fugiram, sem dificuldade, de um presídio federal. Viajaram seis dias num barco. Saíram do Rio Grande do Norte e passaram por três estados (Ceará, Piauí e Maranhão) até chegar ao Pará. Receberam da facção dinheiro, fuzil, oito telefones celulares, escolta de quatro comparsas em três automóveis. Não saiu barato. O MJ informou que Rogério e Deibson pretendiam fugir para o exterior, sem mais detalhes. O governador do Pará, Helder Barbalho, disse a jornalistas que o comboio pretendia chegar a Rondônia e atravessar a fronteira. Faz algum sentido pelas conexões do CV com o tráfico internacional na Bolívia ou no Peru.

Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lembra que, no Norte do Brasil, o Comando Vermelho é hegemônico em todos os estados, sobretudo no Acre, origem da dupla de fugitivos. A facção, destaca, só não apita em Rondônia — onde, por sinal, há o presídio federal de Porto Velho — e na porção de Roraima que encosta na Venezuela e na Guiana. Ali, o domínio é do PCC, a poderosa facção que saiu de São Paulo para o Brasil e o mundo. Um mapeamento do Fórum, de 2022, identificou 53 facções criminosas em atuação no Brasil. O PCC está em 24 estados e no DF; o CV, em 13 UFs. A detenção dos fugitivos devolve credibilidade ao sistema federal, ao MJ, ao governo. O Estado brasileiro tem de caminhar muito. Lembremos.

 

 

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