O Estado de S. Paulo
Em abril de 1964 começava o longo período
marcado pela derrubada da frágil democracia brasileira implantada pela
Constituição de 1946
Existem datas que, pelos malefícios ou
maldades provocados, jamais podem ser esquecidas. Uma delas é o 1.º de abril de
1964, que instituiu uma ditadura que durou 21 anos e completou 60 anos há
poucos dias.
Não pretendo substituir-me à ampla e minuciosa rememoração daqueles acontecimentos publicada dias atrás por este jornal, mas relembrar certos períodos e fatos ocorridos ou que eu próprio presenciei. Eu era jornalista em Brasília e recordo com nitidez a sessão do Congresso Nacional em que o senador-presidente, sem qualquer debate, declarou “vaga” a Presidência da República – numa sessão em plena madrugada e que durou no máximo dez minutos. O pretexto invocado fora uma carta ao Congresso em que o então chefe da Casa Civil informava que o presidente da República iria transferir o governo para Porto Alegre, “em vista dos últimos acontecimentos militares”.
Consumava-se, assim, a tentativa de dar
aparência legal ao levante militar iniciado em 31 de março em Minas Gerais,
pelo general Mourão Filho. Era o começo de um longo período, marcado pela
derrubada da frágil democracia na qual vivia o Brasil e implantada pela
Constituição de 1946, após a destituição de Getúlio Vargas no ano anterior.
Daí em diante, ocorreram atos nefastos ao
longo de mais de duas décadas. Começaram com prisões a esmo e a cassação de
mandatos parlamentares ou a tortura como método de interrogatório dos presos
políticos, e logo a censura na imprensa, rádio e televisão. Tudo se fazia por
meio dos “Atos Institucionais” impostos pelos comandos do Exército, da Marinha
e Aeronáutica. Era o início da ditadura militar, que se ampliou com o Ato
Institucional número 2, ao extinguir os partidos políticos e anular a projetada
eleição presidencial de 1965.
Os golpistas protestavam contra as “reformas
de base”, especialmente contra a reforma agrária e a reforma financeira e
fiscal, que eles apresentavam como a “comunização do País” e o início da
“extinção da propriedade privada”. O pretexto fora o comício de 13 de março no
Rio de Janeiro, em que o presidente João Goulart anunciou a estatização das
refinarias privadas e a desapropriação das áreas rurais não cultivadas junto
das rodovias federais.
Dias antes, em São Paulo, a Marcha da Família
com Deus pela Liberdade reuniu dezenas de milhares de pessoas (encabeçadas por
dona Leonor de Barros, esposa do então governador Adhemar de Barros) para
protestar contra o governo federal. Já pré-candidato à Presidência da
República, o governador paulista era conhecido pelo lema “rouba, mas faz”.
A pregação do sacerdote irlandês-americano
Patrick Peyton, vindo ao Brasil para preparar a marcha, mostrava a escondida
influência estrangeira nos acontecimentos.
Anos depois do golpe, a historiadora Phyllis
Parker descobriu, nos arquivos da CIA e do Departamento de Estado, a Operação
Brother Sam, que descrevia a participação americana no golpe. Naqueles tempos,
em pleno auge da guerra fria, a paranoia anticomunista dominava os Estados
Unidos e o mundo Ocidental. Em meu livro 1964 – O Golpe, exponho parte daquela
documentação, que agora não cabe detalhar.
Mostro aqui, no entanto, um fato que define a
raiz do movimento golpista. A esquadra americana partiu da base naval de
Norfolk, com o portaaviões Forrestal à frente, com destino a Santos, para
intervir no Brasil. Indago: o portaaviões não indicaria até um eventual
bombardeio aéreo?
Dia 2 de abril, a esquadra recebeu ordem de
voltar, pois o presidente João Goulart tinha desistido de resistir e o
movimento golpista já havia triunfado.
Meses antes do golpe, o embaixador Lincoln
Gordon (em reunião com o então presidente John Kennedy) tinha logrado
substituir o adido militar dos EUA no Brasil pelo coronel Vernon Walters, que
falava perfeitamente nosso idioma pois fora oficial de enlace dos EUA com as
tropas do Brasil durante a 2.ª Guerra na Itália. Lá, fez-se íntimo do então
coronel Castello Branco, seu colega no lado brasileiro.
Castello Branco foi o primeiro ditador,
eleito pelo Congresso como candidato único numa verdadeira simulação em que o
voto era cantado publicamente sob ameaça de cassação do mandato. Até o
ex-presidente e então senador Juscelino Kubitschek votou em Castello, que,
meses depois, cassou seu mandato parlamentar.
Desde a consolidação do golpe, incorporou-se
ao nosso idioma o não usual verbo “cassar”, nunca com o sentido de “caçar”
animais ou criminosos, mas de terminar com mandatos parlamentares ou suspender
direitos políticos ao longo de dez anos.
O golpe no Brasil serviu de modelo para que
em diferentes países da América do Sul ocorressem movimentos militares
semelhantes, em que as Forças Armadas assumiram o poder político e aplicaram
todo horror possível. Os mais notórios golpes de Estado ocorreram no Chile e na
Argentina e, logo, se estenderam a outras nações.
Por tudo isso (além de outros detalhes), os 60 anos do golpe militar não podem ser esquecidos e são uma data a sempre lembrar.
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