Valor Econômico
Nos depoimentos divulgados do processo de 8 de janeiro, vários são de evangélicos que alegam ter ido a Brasília e participado da invasão dos palácios do Executivo, do Legislativo e do Judiciário para orar pelo Brasil, de joelho
No processo dos surpreendidos nos atos
delinquentes da intentona política de 8 de janeiro de 2023, a variedade de
tipos vai se tornando clara. Da multidão, as evidências indicam que essa
variedade ganha perfil na mentalidade dos envolvidos de uma cultura de baixa
classe média que tem componentes bem nítidos. Um deles, o componente religioso,
sobretudo fundamentalista e pentecostal, do medo ao inferno e satanás.
Não é de agora que a mobilização popular se
dá na cultura de medo e do pavor à modernidade e, aqui, na problemática
modernização dos costumes. Os democratas prestariam um grande serviço à
democracia se em sua militância levassem em conta a importância do diálogo
respeitoso com a cultura anacrônica e tradicionalista dos simples. Que é, na
verdade, repositório de valores sociais populares e insurgentes, socialmente
criativos, em vez de desprezá-los e abandoná-los à voracidade de poder da
classe média reacionária.
Convém ler Gramsci e Henri Lefebvre para compreender esse Brasil misterioso, um país do avesso.
Uma cultura de pavor começou a ganhar corpo e
sentido há mais de meio século em uma anômica consciência de fim de mundo, de
que a modernização dos costumes seria um sinal. Sinal, também, de que essa
modernização se explicaria pela recusa de Deus e consequentemente pela vitória
de satanás.
Não só entre católicos do catolicismo popular
mas também entre protestantes e evangélicos. Entre esses, na concepção de que é
possível assegurar a salvação enquanto há tempo, coisa de um deus mercenário
vulnerável à venda de um lugar de primeira classe da carruagem de fogo de
Elias. Ou mesmo para nela acolher os destituídos de meios, no pagamento por
meio do sofrimento voluntário, como a fome por opção penitencial.
Foi o que aconteceu em Minas Gerais, em
meados dos anos 1950, em Malacacheta, quando na Semana Santa um grupo de
adventistas da promessa entrou em vigília de oração, à espera do profeta que
viria buscá-los. E acabou matando crianças e animais, que estavam com fome
porque perturbavam a celebração do arrebatamento próximo e a ascensão dos
crentes ao céu.
Esse episódio está documentado num estudo de
cientistas sociais da USP que foram ao local quando a polícia prendeu os
participantes. Nesse estudo inspirado, Jorge Andrade escreveu a peça de teatro
“Vereda da Salvação”, que Anselmo Duarte adaptou para o cinema no filme do
mesmo nome.
Livrar o país desse satanás apocalíptico é o
mote de uma cultura persistente e disseminada, herética, que tem contaminado
vários âmbitos da realidade brasileira e desde os anos 2018, o âmbito das
seitas religiosas instrumentalizadas pelo nosso autoritarismo político saudoso
da ditadura militar.
Nos depoimentos divulgados do processo de 8
de janeiro, vários são de evangélicos que alegam ter ido a Brasília e
participado da invasão dos palácios do Executivo, do Legislativo e do
Judiciário para orar pelo Brasil, de joelhos. O que é perda de tempo pois Deus
está do lado da democracia e do direito. Os fiéis dessa religiosidade tosca não
sabem é que o cristianismo pressupõe que Deus é onipresente e onisciente.
Brasília foi, portanto, um pretexto inútil.
Se o Estado brasileiro não fosse o de um país
possuído pelo satanás do oportunismo, do autoritarismo e da saudade pela
ditadura da repressão, da tortura e dos assassinatos, do republicanismo
forçado, do capitalismo rentista e anticapitalista, provavelmente não teria
havido o 8 de janeiro.
Teria em tempo tomado providências enérgicas
e sérias para impedir que os lugares do poder fossem transformados em templos
heréticos de uma religiosidade tosca e materialista. Se nesse sentido a
Constituição e nela a separação entre Estado e religião fosse observada com
rigor.
Um eloquente exemplo dessa religiosidade
partidária foi a manifestação da então primeira-dama, em 7 de agosto de 2022,
na igreja batista pentecostal da Lagoinha, em Belo Horizonte: “Vamos continuar
orando, intercedendo em todos os lugares, sabem por quê? Por muito tempo aquele
lugar (o Palácio do Planalto) foi um lugar consagrado a demônios e hoje
consagrado ao Senhor Jesus. (...) Essa cadeira é do presidente maior, o rei que
governa esta nação”. Bolsonaro ajuntou: “A função que ocupo é função de Deus”.
A baderna de 8 de janeiro foi momento de uma
conspiração para transformar o Brasil numa república teocrática,
antidemocrática, para colocar o país de joelhos. Sua lógica não é política
porque imune à lei e às instituições. O castigo da punição dos que foram presos
apenas lhes confirma que não se trata de punição educativa, mas provação justa
e redentora, prêmio divino, pela transgressão da Constituição e pela violência
contra as instituições.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).
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