sexta-feira, 5 de abril de 2024

José de Souza Martins* - Fé no golpe continua

Valor Econômico

Nos depoimentos divulgados do processo de 8 de janeiro, vários são de evangélicos que alegam ter ido a Brasília e participado da invasão dos palácios do Executivo, do Legislativo e do Judiciário para orar pelo Brasil, de joelho

No processo dos surpreendidos nos atos delinquentes da intentona política de 8 de janeiro de 2023, a variedade de tipos vai se tornando clara. Da multidão, as evidências indicam que essa variedade ganha perfil na mentalidade dos envolvidos de uma cultura de baixa classe média que tem componentes bem nítidos. Um deles, o componente religioso, sobretudo fundamentalista e pentecostal, do medo ao inferno e satanás.

Não é de agora que a mobilização popular se dá na cultura de medo e do pavor à modernidade e, aqui, na problemática modernização dos costumes. Os democratas prestariam um grande serviço à democracia se em sua militância levassem em conta a importância do diálogo respeitoso com a cultura anacrônica e tradicionalista dos simples. Que é, na verdade, repositório de valores sociais populares e insurgentes, socialmente criativos, em vez de desprezá-los e abandoná-los à voracidade de poder da classe média reacionária.

Convém ler Gramsci e Henri Lefebvre para compreender esse Brasil misterioso, um país do avesso.

Uma cultura de pavor começou a ganhar corpo e sentido há mais de meio século em uma anômica consciência de fim de mundo, de que a modernização dos costumes seria um sinal. Sinal, também, de que essa modernização se explicaria pela recusa de Deus e consequentemente pela vitória de satanás.

Não só entre católicos do catolicismo popular mas também entre protestantes e evangélicos. Entre esses, na concepção de que é possível assegurar a salvação enquanto há tempo, coisa de um deus mercenário vulnerável à venda de um lugar de primeira classe da carruagem de fogo de Elias. Ou mesmo para nela acolher os destituídos de meios, no pagamento por meio do sofrimento voluntário, como a fome por opção penitencial.

Foi o que aconteceu em Minas Gerais, em meados dos anos 1950, em Malacacheta, quando na Semana Santa um grupo de adventistas da promessa entrou em vigília de oração, à espera do profeta que viria buscá-los. E acabou matando crianças e animais, que estavam com fome porque perturbavam a celebração do arrebatamento próximo e a ascensão dos crentes ao céu.

Esse episódio está documentado num estudo de cientistas sociais da USP que foram ao local quando a polícia prendeu os participantes. Nesse estudo inspirado, Jorge Andrade escreveu a peça de teatro “Vereda da Salvação”, que Anselmo Duarte adaptou para o cinema no filme do mesmo nome.

Livrar o país desse satanás apocalíptico é o mote de uma cultura persistente e disseminada, herética, que tem contaminado vários âmbitos da realidade brasileira e desde os anos 2018, o âmbito das seitas religiosas instrumentalizadas pelo nosso autoritarismo político saudoso da ditadura militar.

Nos depoimentos divulgados do processo de 8 de janeiro, vários são de evangélicos que alegam ter ido a Brasília e participado da invasão dos palácios do Executivo, do Legislativo e do Judiciário para orar pelo Brasil, de joelhos. O que é perda de tempo pois Deus está do lado da democracia e do direito. Os fiéis dessa religiosidade tosca não sabem é que o cristianismo pressupõe que Deus é onipresente e onisciente. Brasília foi, portanto, um pretexto inútil.

Se o Estado brasileiro não fosse o de um país possuído pelo satanás do oportunismo, do autoritarismo e da saudade pela ditadura da repressão, da tortura e dos assassinatos, do republicanismo forçado, do capitalismo rentista e anticapitalista, provavelmente não teria havido o 8 de janeiro.

Teria em tempo tomado providências enérgicas e sérias para impedir que os lugares do poder fossem transformados em templos heréticos de uma religiosidade tosca e materialista. Se nesse sentido a Constituição e nela a separação entre Estado e religião fosse observada com rigor.

Um eloquente exemplo dessa religiosidade partidária foi a manifestação da então primeira-dama, em 7 de agosto de 2022, na igreja batista pentecostal da Lagoinha, em Belo Horizonte: “Vamos continuar orando, intercedendo em todos os lugares, sabem por quê? Por muito tempo aquele lugar (o Palácio do Planalto) foi um lugar consagrado a demônios e hoje consagrado ao Senhor Jesus. (...) Essa cadeira é do presidente maior, o rei que governa esta nação”. Bolsonaro ajuntou: “A função que ocupo é função de Deus”.

A baderna de 8 de janeiro foi momento de uma conspiração para transformar o Brasil numa república teocrática, antidemocrática, para colocar o país de joelhos. Sua lógica não é política porque imune à lei e às instituições. O castigo da punição dos que foram presos apenas lhes confirma que não se trata de punição educativa, mas provação justa e redentora, prêmio divino, pela transgressão da Constituição e pela violência contra as instituições.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

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