Folha de S. Paulo
Em 25 de abril de 1974, a Revolução dos
Cravos, movimento liderado por militares e apoiado pela maioria da população
civil, pôs fim ao Estado Novo em Portugal, regime ditatorial que vigorou por 41
anos. João Pereira Coutinho comenta os contextos sociais e econômicos que
levaram à queda da ditadura, o turbulento processo de democratização nos meses
seguintes, os impactos da revolução em países que viviam sob governos
autoritários, como o Brasil, e como os portugueses avaliam os últimos 50 anos
Foi bonita a festa, pá? Digo que foi, embora
não tenha estado presente. Nasci depois de tudo. Esse
tudo, aqui, é o 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos, 50 anos atrás.
Mas, às vezes, nas minhas horas de ociosidade, pergunto o que teria sido de mim
se a sorte me tivesse jogado duas ou três gerações antes de eu nascer, no mesmo
país, sob o regime ditatorial de António de
Oliveira Salazar (1889-1970) e Marcello Caetano (1906-1980).
Dizer que a minha vida teria sido diferente
seria um eufemismo: como escrever livremente em um país com censura prévia e
polícia política? A cadeia ou o exílio teriam sido opções possíveis. Ou o
silêncio, já agora: nunca devemos subestimar o papel da boa e velha covardia.
O que é válido para a loucura da arte é válido para a loucura da guerra —em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau— que consumiu as gerações anteriores.
Em princípio, minhas maleitas físicas teriam
poupado a carcaça a certos terrores. Mas nunca fiando: entre 1961 e 1974, 200
mil rapazes foram
mobilizados para as "províncias ultramarinas", com o fino
propósito de defender as populações brancas das guerrilhas independentistas (o
que se compreende), e por lá continuaram, contra toda a lógica, defendendo o
"império" ou uma noção anacrônica de império (o que não se
compreende). É muito?
É muitíssimo. Falamos de 2% da população
portuguesa, contas por baixo, um número superior, em termos relativos, às
tropas que os Estados Unidos enviaram para o Vietnã. Mais de 8.000 não
regressaram. Trinta mil regressaram, mas em péssimo estado. Poderia ter sido um
deles? A resposta arrepia de tão óbvia.
Como foi óbvia para os "capitães de
Abril" quando disseram basta à guerra e, por inerência, ao regime. Um
deles era Fernando José Salgueiro Maia (1944-1992), que na madrugada do 25 de
Abril de 1974 falou assim aos seus homens, antes de sair com eles para derrubar
o Estado Novo: "Meus senhores, como todos sabem, há diversas
modalidades de Estado: os sociais, os corporativos e o estado a que chegamos.
Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegamos".
Não é qualquer um que inaugura uma revolução
com essa mistura de clareza e humor. Mas Salgueiro Maia não era qualquer um: no
Movimento das Forças Armadas, ele foi o mais corajoso e, deposto o regime, um
dos mais recatados também. Morreu jovem e relativamente esquecido. Mas divago.
Estou grato a esses homens. Estou grato aos
que vieram depois: derrubar um regime autoritário não é coisa pouca; mas
construir uma democracia liberal é tarefa ciclópica.
Entre 1974 e 1975, Portugal oscilou entre
radicalismos de sentido oposto: uma tentativa de golpe da extrema direita em
março de 1975, uma tentativa de golpe da extrema esquerda em novembro do mesmo
ano.
Mas o que importa, para lá dessas
contabilidades macabras que continuam a alimentar ressentimentos vários nas
franjas da sociedade portuguesa, é olhar para o povo. Falo do povo que
realmente existe, não do "povo" como criação mítica de vanguardas
revolucionárias que têm o hábito desagradável de falar em seu nome.
Nas primeiras eleições livres, para a
Assembleia Constituinte, em 1975, os portugueses votaram. Para quem acompanhava
o curso da revolução nas ruas, nas fábricas, nos campos, nos jornais, na
televisão, o caminho para o comunismo parecia inexorável. Pelo menos, para quem
achava que os portugueses, depois de experimentarem a mais longa ditadura da
Europa, estariam dispostos a ter outra, de inspiração soviética.
Quase 92% dos eleitores acorreram às urnas,
números que nunca mais se repetiram. Quando os resultados foram divulgados, 68%
escolhiam partidos defensores da democracia liberal e do pluralismo político (o
PS, o PPD e o CDS, por ordem decrescente).
O Partido Comunista, que se julgava ungido
pela história e proprietário do país, ficava em terceiro lugar, com 12,5%. A
"legitimidade revolucionária", como então se dizia, sofreu um golpe
fatal. Ainda sobreviveu uns meses, na união perversa entre a ala radical do
Movimento das Forças Armadas e a extrema esquerda. Ocuparam-se terras,
nacionalizaram-se empresas, cometeram-se abusos e violências contra as forças
da "reação", ou seja, contra os democratas. Mas o país tinha falado e
nunca mais voltou atrás.
Como diria mais tarde o presidente
e primeiro-ministro Mário Soares sobre o "verão
quente" de 1975: "As praias e os parques de automóveis estavam
literalmente a abarrotar. Como é possível, pensei, com esta classe média tão
forte, com toda esta gente nas praias, que se venha dar aqui um golpe comunista?
Não era". E não foi.
Quando eu nasci, em 1976, a democracia era um
fato, ainda que limitada pela tutela dos militares (até à primeira revisão
constitucional de 1982). A entrada na Comunidade Econômica Europeia, em 1986,
passou a ser o horizonte de um país que só queria uma vida normal.
Tive direito a uma vida normal: educação
pública até a universidade, fronteiras abertas para viajar pela Europa durante
toda adolescência e a liberdade para escrever e publicar por minha conta e
risco.
Quando fui a tribunal por abuso de liberdade
de imprensa, pouco depois dos 18 anos, não foi a Pide/DGS, a polícia política
do regime salazarista, que me foi buscar a casa. Caminhei para a sala de
audiências pelo meu próprio pé, conhecendo os meus direitos e deveres.
E por falar em pé: foi ele que me salvou
quando compareci à inspeção para cumprir o serviço militar obrigatório, só
abolido no século 21. Fui dado como "inapto". Nunca estive nas
antigas províncias ultramarinas, muito obrigado.
Foi bonita a festa, pá? O cientista político Samuel
Huntington não tem dúvidas: foi belíssima. Nas primeiras linhas
do clássico "The Third Wave: Democratization in the Late 20th Century"
(a terceira onda: democratização no final do século 20), escreve Huntington:
"A terceira vaga de democratização no mundo moderno começou, implausível e
involuntariamente, 25 minutos depois da meia-noite, quinta-feira, 25 de abril
de 1974, em Lisboa, Portugal, quando uma estação de rádio tocou a canção
'Grândola Vila Morena'".
Explico melhor. Na obra de Huntington, a
democracia na era contemporânea é como as ondas do mar, avançando e recuando em
momentos históricos particulares. E arrastando consigo outros países, por
influência ou exemplo.
A primeira vaga aconteceu entre 1828 e 1926 e
tem as suas raízes na Revolução Francesa e no alargamento do direito de voto
nos Estados Unidos (aos homens brancos, claro).
A sua contravaga surgiria em 1922, com a
infame marcha dos
fascistas sobre Roma, contaminando Portugal (em 1926), a Espanha (em
1936), sem falar da
Alemanha (em 1933, o caso mais catastrófico de todos).
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, uma
segunda vaga se espraiou na Europa, na Ásia, na América Latina, pelo menos até
1962. Da Alemanha à Itália, da Áustria ao Japão, a democracia firmou-se nesses
países até então relapsos.
A segunda contravaga terá começado em 1958 e
durado até 1962. A América Latina foi a "loca infecta" dessa
regressão, com o Brasil (1964), a Argentina (1966), o Equador (1972), o Chile e
o Uruguai (1973) a serem tomados pelo autoritarismo.
Aquela manhã fria em Lisboa inaugurou a
reversão da reversão. Para ficarmos uma vez na América Latina, a democracia
retornou ao Equador (1979), ao Peru (1980), à Bolívia (1982) e ao Brasil
(1985).
Por outras palavras: o pedigree internacional
da Revolução dos Cravos é reconhecido e aplaudido. Sua influência benigna
também. Mas nos momentos de festa há sempre vozes de desânimo que olham para a
data e lamentam o que ela significa.
Alguns têm razões para isso: falo dos
extremos, cada vez mais minoritários, que lamentam o fim da ditadura —ou, em
alternativa, o fato de Portugal não ter inaugurado outra.
Mas eu não falo dos casos extremos. Falo até
de moderados que persistem em projetar na democracia o que ela não pode
comportar. Democracia é igualdade, para uns. É riqueza, para outros. É
reconhecimento, justiça, fraternidade. Citando o título do filme, é tudo em
todo lugar ao mesmo tempo. Se a perfeição não foi atingida em cada um desses
valores, a democracia falhou.
O sociólogo
Ralf Dahrendorf, ao confrontar-se com as revoluções de 1990 que
libertaram o Leste Europeu do comunismo, já tinha detectado esse problema
eterno. Se a revolução é o momento em que o povo faz amor com a história
(obrigado, Sartre), há quem não tolere a rotina conjugal que se instala quando
a febre passa. As expetativas extravagantes dão lugar ao desencanto quando a
utopia teima em não chegar.
Mas a utopia nunca chega, afirmava
Dahrendorf. Se a revolução enterra a ditadura e se a democracia enterra a
revolução, permitindo a partir daí remover maus governos sem derramamento de
sangue, ambas já terão cumprido o seu papel.
Tal como o 25 de Abril cumpriu o dele: o
Estado Novo terminou em 1974, praticamente sem resistência, e ninguém suspira
por ele, muito menos com a sua restauração. Além disso, se a democracia é o
arranjo possível para remover governos através de eleições limpas e livres,
convém procurar o que falta ao país noutros lugares, não nas urnas que sempre
funcionaram sem engulhos.
Falta muito, admito, mesmo sabendo que o país
de 2024 é irreconhecível aos olhos de 1974. Em qualquer indicador relevante
—educação, saúde, bem-estar, proteção social, emancipação feminina etc.—,
existe um abismo entre esses dois mundos.
Mas nem tudo é perfeito. O fraco crescimento
econômico, os baixos salários, a dívida pública (beirando os 100% do PIB), a
taxa elevada de pobreza e de desigualdade em comparação com os nossos parceiros
europeus —tudo isso é motivo de desânimo. A fraca participação política e a
erosão na confiança das instituições democráticas são a expressão disso.
Desânimo, no entanto, não significa
desistência. Significativamente, o Instituto de Ciências Sociais e Políticas da
Universidade de Lisboa realizou um estudo intitulado "50 anos de democracia em Portugal: mudanças e continuidades
geracionais". O objetivo dos pesquisadores é permitir que
sejam os portugueses a fazer um balanço do regime, sem os habituais mandarins
que, repito, gostam de falar em seu nome.
Os resultados não me surpreendem. A
esmagadora maioria (69%) tem uma opinião mais positiva que negativa da
revolução; 24% ficam em cima do muro; 7% têm uma opinião mais negativa que
positiva. Mas é entre os mais jovens, de 16 a 34 anos, que o 25 de Abril é
acolhido com entusiasmo: 73% aplaudem a data (só 6% a recusam).
Moral da história?
Em 1975, chamados às urnas, os portugueses
mostraram mais clarividência que as vanguardas terceiro-mundistas que os
desejavam pastorear. Cinquenta anos depois, nada mudou: o gosto pela liberdade
é um hábito que não se perde.
Nestas matérias, convém lembrar o verso da
canção "Grândola Vila Morena", que pôs em marcha o fim da ditadura.
"O povo é quem mais ordena"?
Precisamente.
Um comentário:
João Pereira Coutinho ?
" Você " por aqui ?
😍😍😍
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