O Globo
Sim, há limites para a liberdade de
expressão, como para qualquer direito. Mas a ideia original era que fossem
poucos e raros
Na última quarta-feira, o presidente Joe Biden sancionou a lei que pode banir o TikTok dos Estados Unidos. A holding que controla a rede social, ByteDance, tem até janeiro para vendê-la a alguma companhia sem vínculos com a China. Não vai acontecer. A legislação chinesa proíbe que algoritmos de inteligência artificial sejam vendidos a estrangeiros, e, ora, o coração do TikTok é seu algoritmo. O receio de democratas e republicanos é que os chineses possam usar a rede para distribuir ideias perigosas que manipulem a juventude americana. Talvez. É uma hipótese difícil de comprovar, mas também difícil de desmentir. É, no fim das contas, só isso. Uma hipótese. O Congresso decidiu proibir a plataforma de maior sucesso entre americanos com menos de 30 anos com base numa hipótese.
A ByteDance recorrerá à Justiça. Diz que a
lei é inconstitucional. A Primeira Emenda à Constituição de lá, tão citada
quanto pouco conhecida, proíbe o Estado de legislar dificultando a livre
expressão dos cidadãos. Ao banir o TikTok, os advogados argumentarão, deputados
e senadores fazem exatamente isso. Cassam a possibilidade de inúmeros
americanos se manifestarem por uma rede em que vários construíram legiões de
seguidores. Eles não necessariamente terão o mesmo alcance noutras redes. Quer
dizer: a lei violou a Primeira Emenda. Se o argumento cola ou não, é com os
juízes de todas as instâncias até a Suprema Corte, onde possivelmente o caso
vai parar.
A história é a cara do tempo em que vivemos.
Há, na crise democrática, um aspecto para o qual damos pouco valor: andamos com
muito medo de ideias. Estamos emocionalmente mobilizados por um ímpeto censor.
À direita, o desejo de controlar o que
professores falam para crianças é imenso. A vontade de limitar que espetáculos
podem ser financiados com dinheiro público, que arte é permitida não é pequena.
Políticos de direita jogam livros no lixo e se filmam, orgulhosos no
exibicionismo contínuo das redes.
À esquerda, o desejo é de controle do
vocabulário, dos pronomes. Todo artista, jornalista, intelectual ou celebridade
que derrape no comportamento aceitável padrão deve ser atacado em massa. Como
devem ser emudecidos nas redes ou expulsos a pontapés do Congresso todos
aqueles que representem o “golpismo”. Sim, claro: há golpistas entre nós. Mas
são golpistas todas as pessoas de direita? Tem parecido.
Claro, nosso lado não é censor. Censor é o
outro. Nosso lado só reconhece que a livre expressão não é absoluta, e um
limite bastante razoável é proteger as crianças. Ou proteger as minorias. Ou,
evidentemente, proteger a democracia. Para que todos sejam protegidos, melhor
calar com a lei, com a força ou com a turba.
O motor das redes sociais é algorítmico. Uma
inteligência artificial ajustada como poucas para gerar alto engajamento. Ela
faz isso nos convidando a um palco onde, logo aprendemos, o truque para receber
aplausos é estar permanentemente indignado. O outro lado representa, em
essência, ideias perigosas. Todos no outro lado são fascistas. Ou são
comunistas. Aí gravamos vídeos indignados, escrevemos mensagens indignadas e
reconhecemos que não há jeito que não controlar as ideias dos outros. Afinal,
para tudo tem limite.
O momento ainda não permite que muita gente
reconheça isso em público, mas precisamos começar a reconhecer. Nos
infantilizamos e estamos, assim, pondo em risco a democracia. Sim, há limites
para a liberdade de expressão, como para qualquer direito. Mas a ideia original
era que fossem poucos e raros. Não é que não existam ideias incômodas, ideias
que ofendam, ideias que enojam. Existem. Mas acreditávamos que adultos seriam
capazes de sobreviver às ofensas da vida e que, ora, crianças não são tão
frágeis assim e amadurecem.
Quando nosso espírito democrata era adulto,
puníamos as consequências das falas quando era o caso, mas sem tentar
controlá-las de antemão. Coletivamente desejamos hoje um mundo em que ideias
perigosas precisam todas ser controladas. O que não perguntamos ainda é se
poderemos chamar um mundo assim de democracia. Na definição anterior da
palavra, não dava, não.
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