terça-feira, 30 de abril de 2024

Pedro Doria - Medo de ideias perigosas

O Globo

Sim, há limites para a liberdade de expressão, como para qualquer direito. Mas a ideia original era que fossem poucos e raros

Na última quarta-feira, o presidente Joe Biden sancionou a lei que pode banir o TikTok dos Estados Unidos. A holding que controla a rede social, ByteDance, tem até janeiro para vendê-la a alguma companhia sem vínculos com a China. Não vai acontecer. A legislação chinesa proíbe que algoritmos de inteligência artificial sejam vendidos a estrangeiros, e, ora, o coração do TikTok é seu algoritmo. O receio de democratas e republicanos é que os chineses possam usar a rede para distribuir ideias perigosas que manipulem a juventude americana. Talvez. É uma hipótese difícil de comprovar, mas também difícil de desmentir. É, no fim das contas, só isso. Uma hipótese. O Congresso decidiu proibir a plataforma de maior sucesso entre americanos com menos de 30 anos com base numa hipótese.

A ByteDance recorrerá à Justiça. Diz que a lei é inconstitucional. A Primeira Emenda à Constituição de lá, tão citada quanto pouco conhecida, proíbe o Estado de legislar dificultando a livre expressão dos cidadãos. Ao banir o TikTok, os advogados argumentarão, deputados e senadores fazem exatamente isso. Cassam a possibilidade de inúmeros americanos se manifestarem por uma rede em que vários construíram legiões de seguidores. Eles não necessariamente terão o mesmo alcance noutras redes. Quer dizer: a lei violou a Primeira Emenda. Se o argumento cola ou não, é com os juízes de todas as instâncias até a Suprema Corte, onde possivelmente o caso vai parar.

A história é a cara do tempo em que vivemos. Há, na crise democrática, um aspecto para o qual damos pouco valor: andamos com muito medo de ideias. Estamos emocionalmente mobilizados por um ímpeto censor.

À direita, o desejo de controlar o que professores falam para crianças é imenso. A vontade de limitar que espetáculos podem ser financiados com dinheiro público, que arte é permitida não é pequena. Políticos de direita jogam livros no lixo e se filmam, orgulhosos no exibicionismo contínuo das redes.

À esquerda, o desejo é de controle do vocabulário, dos pronomes. Todo artista, jornalista, intelectual ou celebridade que derrape no comportamento aceitável padrão deve ser atacado em massa. Como devem ser emudecidos nas redes ou expulsos a pontapés do Congresso todos aqueles que representem o “golpismo”. Sim, claro: há golpistas entre nós. Mas são golpistas todas as pessoas de direita? Tem parecido.

Claro, nosso lado não é censor. Censor é o outro. Nosso lado só reconhece que a livre expressão não é absoluta, e um limite bastante razoável é proteger as crianças. Ou proteger as minorias. Ou, evidentemente, proteger a democracia. Para que todos sejam protegidos, melhor calar com a lei, com a força ou com a turba.

O motor das redes sociais é algorítmico. Uma inteligência artificial ajustada como poucas para gerar alto engajamento. Ela faz isso nos convidando a um palco onde, logo aprendemos, o truque para receber aplausos é estar permanentemente indignado. O outro lado representa, em essência, ideias perigosas. Todos no outro lado são fascistas. Ou são comunistas. Aí gravamos vídeos indignados, escrevemos mensagens indignadas e reconhecemos que não há jeito que não controlar as ideias dos outros. Afinal, para tudo tem limite.

O momento ainda não permite que muita gente reconheça isso em público, mas precisamos começar a reconhecer. Nos infantilizamos e estamos, assim, pondo em risco a democracia. Sim, há limites para a liberdade de expressão, como para qualquer direito. Mas a ideia original era que fossem poucos e raros. Não é que não existam ideias incômodas, ideias que ofendam, ideias que enojam. Existem. Mas acreditávamos que adultos seriam capazes de sobreviver às ofensas da vida e que, ora, crianças não são tão frágeis assim e amadurecem.

Quando nosso espírito democrata era adulto, puníamos as consequências das falas quando era o caso, mas sem tentar controlá-las de antemão. Coletivamente desejamos hoje um mundo em que ideias perigosas precisam todas ser controladas. O que não perguntamos ainda é se poderemos chamar um mundo assim de democracia. Na definição anterior da palavra, não dava, não.

 

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