O Estado de S. Paulo
Como compreender que um país facilmente
governável permaneça neste estado de miséria e malquerenças políticas estúpidas
como a que teve início na eleição presidencial de 2018?
Alguns dos leitores que me honram com sua
atenção consideram como “exagerado” o meu pessimismo sobre o Brasil atual.
Não sei se pessimismo é o termo adequado, mas reconheço a relevância do questionamento, pois, de fato, exageros (pessimistas ou otimistas) comprometem a objetividade de qualquer reflexão sobre as condições da sociedade. Assíduo leitor das publicações diárias, admito que raramente encontro nelas alguma razão para alívio. Um exemplo: na página A8 da edição de 11 do corrente mês, este jornal estampou a seguinte manchete: Com RS em crise, Lula envia texto ao Congresso que eleva salários no STF. Não ficaria chocado se entendesse que os mais altos magistrados vivem como miseráveis, mas esse não me parece ser o caso. Na edição de 16 de maio, na primeira página, o jornal voltou ao tema: No RS, Lula anuncia ajuda federal aos gaúchos com tom de comício. Por aí se vê que nosso principal aspirante a estadista não se preocupa sequer em disfarçar sua sensibilidade meramente eleitoreira.
Claro, o problema não é só brasileiro. Numa
vigorosa série de ensaios, a jornalista Anne Applebaum, redatora da revista
mensal norte-americana The Atlantic, tem afirmado que “as democracias estão
perdendo a guerra da propaganda”. Na edição de maio passado, ela lembrou que,
“na era soviética, a propaganda comunista pintava um paraíso ao alcance da mão.
Hoje, ao contrário, a propaganda antidemocrática procura convencer o Ocidente
de que a democracia degenerou de vez, que toda eleição é ilegítima e que a civilização
está à beira da morte”. Ninguém contesta o talento da eminente jornalista, mas
peço vênia para algumas ressalvas. Opino que, se os Estados Unidos e as demais
democracias ocidentais se abrissem completamente à imigração (hipótese
fantasiosa, claro), no mínimo metade dos cidadãos que hoje vivem sob o jugo de
Vladimir Putin (Rússia), Xi Jinping (China), Viktor Orbán (Hungria), Recep
Erdogan (Turquia), Narendra Modi (Índia) e outros menos votados formariam
longas filas nos aeroportos, ansiosos por desembarcar em alguma “democracia
degenerada”.
A questão é simples. A propaganda
antidemocrática não sai da cabeça de gente que mal sabe o que vai comer amanhã,
de analfabetos, ou de subcidadãos que nunca fizeram uma viagem ao exterior. Ela
é produzida pelos dirigentes de países autoritários e pelos exércitos de
assessores e publicitários que todo governante tem ao seu dispor.
Voltemos ao Brasil. Penso que as desgraças
que corroem nossa sociedade não são propriamente um sentimento de pessimismo,
mas uma mescla de três coisas: primeiro, uma observação realista do poço em que
nos afundamos; segundo, uma profunda decepção com o que não fizemos em mais de
dois séculos como nação independente; terceiro, uma sensação de perplexidade
por não conseguirmos compreender a conexão entre os dois pontos precedentes.
A observação pode ser condensada em poucas
linhas. No Brasil, um pequeno número de bilionários controla metade da renda e
da riqueza; no mínimo, 30% dos cidadãos de mais de 15 anos são analfabetos
funcionais; a criminalidade e o crime organizado crescem a toda brida;
milionários recusam-se a pagar a anuidade de seus filhos em universidades
públicas, mas não abrem mão de um breve séjour anual na Europa.
A decepção decorre da certeza de que, em
última análise, somos um país fácil de governar. Recursos naturais não nos
faltam. Não somos um país dividido por dezenas de idiomas oficiais e diversas
tribos acidamente belicosas entre si, como ocorre, por exemplo, na África do
Sul; e não vivemos (como a Ucrânia) à mercê de vizinhos grosseiramente
imperialistas, como a Rússia sempre foi.
Chegamos, assim, à perplexidade. Como
compreender que um país facilmente governável permaneça neste estado de miséria
e malquerenças políticas estúpidas como a que teve início na eleição
presidencial de 2018? Divisões ideológicas por certo não explicam esse
fenômeno, pois sabemos que nossos soit-disant líderes políticos trocam de
ideologia como quem troca de camisa, ou na mera expectativa de um cargo na
administração pública. Penso que a resposta está na leviandade com que
mediocrizamos os pilares fundamentais da democracia representativa,
principalmente os partidos políticos e o Legislativo. Nessas condições – como
observou no início do século o grande pensador Max Weber –, nenhum país é capaz
de produzir líderes políticos que mereçam o respeito da sociedade. Atingido
esse ponto, é comum surgir, mesmo nas camadas mais esclarecidas de qualquer
país, a ilusão do “governo forte”, vale dizer, do populismo, do ditador
benévolo, do “cesarismo”.
O maior temor de Max Weber em relação às
sociedades modernas era o estiolamento da vida política pelas burocracias. O
único antídoto confiável para esse mal seriam, para ele, líderes políticos de
envergadura, formados nos embates parlamentares. Políticos que vivessem “para a
política”, e não “da política”, ou seja, políticos por vocação, e não meros
aproveitadores. Se assim é, na entressafra política que nos assola, temos
lamentavelmente fortes motivos para pessimismo. •
Um comentário:
Eu, ein, pirou? Não começou em 2018, mas em 2002.
MAM
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