Não dá para tolerar reconstruções em área de risco
O Globo
Como Nova Orleans no pós-Katrina, Rio Grande
do Sul deverá manter desocupadas as regiões vulneráveis
Respondendo ao clamor público diante da enchente no Rio Grande do Sul, o governo federal tem feito anúncios quase diários de ajuda para os atingidos pela catástrofe. Dinheiro é, sem dúvida, crucial para o socorro imediato e para a reconstrução do estado. Mas os recursos só contribuirão para evitar novas tragédias se as três esferas de governo aprenderem com os erros cometidos nas anteriores. É, antes de tudo, preciso desocupar áreas de alto risco. Não dá mais para tolerar casas e moradias em locais sujeitos a repetidas inundações, como partes de Lajeado e cidades vizinhas. Mesmo quando a memória da enchente de 2024 perder a força, é preciso manter desocupadas as áreas vulneráveis.
Também crucial é garantir que obras de
infraestrutura tenham como foco a população mais vulnerável. Os bairros mais
pobres costumam estar mais suscetíveis, como em Canoas e Eldorado do Sul. Nas
regiões com baixa probabilidade de alagamento, as moradias devem ter custo
baixo, preço acessível e, ao mesmo tempo, ser construídas para suportar
enchentes menores. Uma medida prudente é criar áreas de refúgio para as águas
em regiões desocupadas. Outra medida necessária é reflorestar as encostas nas
serras, para também ajudar a reter as enxurradas.
Em certa medida, o desastre gaúcho guarda
semelhanças com o provocado pelo Furacão Katrina em 2005. Nova Orleans foi
inundada pela ruptura de diques, depois recebeu investimentos bilionários para
a reconstrução. Passados mais de 18 anos, uma das principais lições é que os
governos devem repensar a política habitacional, segundo um estudo sobre o
pós-Katrina publicado em janeiro pelo Urban Institute. A população mais
vulnerável não pode seguir exposta aos riscos.
Como no Rio Grande do Sul, em Nova Orleans
também houve falhas no planejamento e na manutenção das barreiras destinadas a
conter as águas. Passado o pior momento, políticos de todo tipo correram para
dar atenção às obras de proteção. Nos Estados Unidos,
o investimento superou US$ 14 bilhões. As ações foram amplas, com diques,
canalizações, conservação de áreas alagadiças, sistemas de drenagem,
reservatórios, bacias de amortecimento e muros. Mesmo quando gerenciadas pelos
governos municipais e estadual, as fontes de financiamento federal tiveram
papel relevante. O mesmo deve se repetir por aqui.
Na avaliação dos pesquisadores, todo esse
esforço deu resultado. Há evidência de que aumentou a proteção contra novos
eventos climáticos extremos. Uma das razões foi a diminuição do número de
residências em áreas expostas a enchentes. O estudo, porém, faz ressalvas: o
foco deve ser a população historicamente menos atendida pelas políticas
públicas. “Um investimento mais equitativo deve priorizar as comunidades que
antes tinham serviços deficitários e garantir que tenham acesso aos benefícios
da infraestrutura”, dizem os autores.
Para se reerguer, o Rio Grande do Sul
precisará aprender com os erros cometidos por quem já passou por experiência de
mesma dimensão. O alto engajamento dos gaúchos como voluntários tem sido uma
das respostas positivas à tragédia. A participação da população será
fundamental na reconstrução também. Para garantir projetos habitacionais que
levem em conta o risco de catástrofes, dar prioridade aos mais vulneráveis e,
de quebra, coibir o mau uso do dinheiro público.
Conquista da Copa feminina merece celebração,
mas exige vigilância
O Globo
Histórico de equívocos e obras abandonadas em
eventos anteriores recomenda mais comedimento
Confirmando o favoritismo, o Brasil foi
escolhido pela Fifa para
sediar a Copa do Mundo Feminina de 2027, derrotando a candidatura conjunta de
Alemanha, Holanda e Bélgica. Pesou na decisão o anfitrião dispor de
infraestrutura pronta, preparada para a Copa masculina de 2014. Será a primeira
vez que a competição acontecerá na América do Sul.
O anúncio é uma boa notícia. O Brasil já
acumula ampla experiência na organização de megaeventos esportivos. Sediou duas
Copas do Mundo (1950 e 2014), dois Pan-Americanos (1963 e 2007) e uma Olimpíada
(Rio 2016). A Copa aumentará a visibilidade interna do futebol feminino, que
evoluiu nos últimos anos, mas ainda tem potencial para avançar. Além disso,
contribuirá para movimentar a economia das cidades escaladas para receber os
jogos.
Mas o histórico de equívocos na preparação de
eventos anteriores preocupa. A escolha das sedes para a Copa de 2014 obedeceu a
critérios mais políticos que técnicos. Estádios portentosos foram erguidos ou
reformados em cidades sem demanda para ocupá-los depois da competição. Um
exemplo é o Mané Garrincha, em Brasília, cuja ociosidade não faz jus ao craque
que lhe dá nome. Eventualmente, shows ou jogos de times do Rio e de São Paulo
cumprem a função de encher a arena que custou R$ 1,6 bilhão e tem capacidade para
mais de 70 mil torcedores.
Projetos de mobilidade que deveriam ter
ficado como legado não saíram do papel. Reportagem
do GLOBO mostrou que, dez anos depois da Copa de 2014, mais de um terço (38%)
das obras prometidas por estados e municípios ainda não foram entregues. Um
dos casos mais escandalosos é o VLT de Cuiabá (MT), orçado em R$ 1,4 bilhão.
Dezenas de trens e quilômetros de trilhos foram comprados, mas depois o governo
do estado decidiu mudar o projeto. A questão foi parar na Justiça, os trens
foram abandonados, e a população ficou sem nada.
Os responsáveis pela candidatura brasileira
afirmam que a Copa feminina aproveitará estádios existentes em dez cidades
(duas a menos que em 2014). Estão planejadas apenas construções provisórias
para abrigar convidados, imprensa e reuniões. Tais gastos foram orçados em
meros US$ 13,3 milhões e devem, segundo os organizadores, ser bancados por
patrocinadores.
É verdade que os principais estádios já foram
adaptados para o padrão Fifa e, em princípio, não devem demandar gastos
significativos para sediar os jogos em 2027. Mas será preciso conter o ímpeto
de ministros, governadores e prefeitos ávidos por obras. As protagonistas, vale
lembrar, são as atletas. O certo seria concluir o que se começou há mais de dez
anos, evitando novos projetos que torram dinheiro público e são abandonados
pelo caminho.
O Brasil deve celebrar a realização da décima
Copa do Mundo de futebol feminino. O evento pode ser um estímulo para que
milhares de meninas se tornem uma nova Marta e para que o Brasil se torne uma
potência na modalidade. Mas é preciso vigilância para evitar que o evento sirva
de pretexto para novos desperdícios.
Melhor rumo para novo TSE é o do comedimento
Folha de S. Paulo
Com composição alterada, corte acertará se
atuar de forma mais contida e menos censória nos pleitos municipais deste ano
A partir do próximo mês, o Tribunal Superior
Eleitoral terá uma nova composição, à qual caberá a tarefa mais imediata de
supervisionar os pleitos municipais deste ano. É de imaginar que pode haver
mudanças —em boa parte, desejáveis— na conduta da corte.
Alexandre
de Moraes deixará a presidência do TSE e será
substituído por Cármen Lúcia;
Nunes Marques assumirá a vice-presidência; André
Mendonça passará a integrar o colegiado, na condição de terceiro membro
cativo do Supremo Tribunal Federal.
Isso significa que os dois ministros
indicados por Jair
Bolsonaro (PL)
estarão com assento na cúpula da Justiça
Eleitoral.
Não se pode afirmar, obviamente, que a corte
se tornará bolsonarista —os magistrados nomeados pelo ex-presidente são apenas
2 dos 7 membros titulares. Mas parece razoável prognosticar um TSE menos
beligerante em relação ao ex-presidente e seus aliados.
Em parte, isso ocorrerá por razões materiais.
Restam apenas dois casos de alta voltagem a serem julgados, que são os pedidos
de cassação
dos mandatos dos senadores Jorge Seif (PL-SC) e Sergio Moro (União Brasil-PR).
A seguir, a mudança do perfil dos
representantes do STF na corte
eleitoral deverá pesar. Sai Moraes, aquele que os bolsonaristas consideram seu
inimigo número 1, e entra em seu lugar uma juíza rigorosa, mas bem mais
discreta e comedida. Nunes Marques e Mendonça, mesmo que não tivessem sido
indicados por Bolsonaro, são considerados de tendência garantista.
Uma redução do protagonismo e do
intervencionismo do TSE seria positiva. A democracia brasileira enfrentou
recentemente uma pressão golpista e foi bem-sucedida. A cúpula do Judiciário
teve papel importante na defesa das instituições, ao traçar limites e mirar
indivíduos e grupos que extrapolaram no extremismo.
Desde que Bolsonaro foi derrotado nas urnas e
tornado inelegível, porém, os riscos foram significativamente reduzidos. A
Procuradoria-Geral da República, que se tornara um órgão omisso no governo
anterior, voltou a atuar normalmente —ao menos nessa seara.
As heterodoxias emergenciais adotadas pelas
cortes não mais se justificam. A credibilidade da Justiça e a própria
pacificação do país requerem um Judiciário mais autocontido e menos censório.
No caso do TSE, essa tarefa é ainda mais
delicada, dado que o tribunal tem o poder não apenas de julgar condutas
pretéritas mas também o de regular os pleitos, criando as normas necessárias
quando a lei não as prevê. Há
que tomar cuidado especialmente aí.
O objetivo primeiro e inafastável da Justiça
Eleitoral é fazer cumprir a vontade dos eleitores, não substituí-los nem
tutelá-los.
Eleições sangrentas
Folha de S. Paulo
Sob o rastro da violência, México deve eleger
primeira mulher como presidente
As eleições no México serão
decididas em 2 de junho sob
o signo da violência e da interferência dos cartéis do crime organizado.
Chegou-se a considerar a postergação do
pleito diante dos assassinatos de 25 candidatos e de 26 pessoas ligadas a
campanhas entre setembro de 2023 e abril deste ano, segundo dados da ONG
mexicana Laboratório Eleitoral. A data acabou mantida, entretanto nada garante
que o Estado de Direito mexicano sairá fortalecido.
A barbárie já supera a das eleições de 2018,
quando o populista de esquerda Andrés Manuel López Obrador, conhecido
como AMLO,
chegou ao poder sob o bordão do combate aos cartéis.
Há a perspectiva de que uma
mulher chegue à chefia do Executivo —ao qual cabe a política nacional
de segurança pública— pela primeira vez na história do país.
Claudia Sheinbaum —ex-prefeita da Cidade do
México pelo partido Morena, de seu mentor AMLO— promete dar continuidade
a um governo que descumpriu sua promessa de reduzir a criminalidade, moveu
militares do combate aos cartéis a cargos civis e enfraqueceu controles do
sistema eleitoral.
Ao surfar na popularidade do atual presidente
e no uso da máquina federal, a candidata mantém vantagem de 20 a 25 pontos nas
últimas pesquisas sobre a oposicionista Xóchitl Gálvez, que pretende em seu
discurso demolir os atos de AMLO, sobretudo os que debilitaram a democracia, e
não dar trégua ao crime organizado.
No entanto Gálvez representa uma inusitada
coalizão entre o Partido Revolucionário Institucional, que escancarou a
corrupção nos seus 71 anos de domínio político do país, e seu antigo oponente
Partido Ação Nacional.
Sabe-se que nenhuma das candidatas governará
com maioria confortável no Congresso para impor sua agenda de segurança.
E poucos duvidarão de que o crime organizado se move, com violência ou malícia, por seus interesses nestas eleições mexicanas. Para os cartéis, tanto melhor uma gestão incapaz de combatê-los e uma democracia mais debilitada.
Vai começar tudo de novo
O Estado de S. Paulo
A troca do presidente fez a Petrobras perder
R$ 34 bi em valor de mercado, mas isso é só uma fração do que a estatal perderá
ao voltar a ser a vaca leiteira da demagogia lulopetista
O presidente Lula da Silva está disposto a
obrigar a Petrobras a se alinhar, em ritmo e intensidade, aos projetos que
considera fundamentais para seu governo, mesmo que tais projetos não sejam do
interesse da empresa. Diante disso, os R$ 34 bilhões que a petroleira perdeu em
valor de mercado imediatamente após a demissão sumária de Jean Paul Prates da
presidência da estatal serão apenas uma fração do que a Petrobras perderá ao
ser transformada, de novo, em vaca leiteira da demagogia lulopetista.
Queda de valor das ações na bolsa depois de
um anúncio de mudança é uma reação previsível e até faz parte do jogo
especulativo do mercado. Pelo tamanho da Petrobras, a cifra envolvida nem chega
a assustar no curto prazo. O problema é o que virá depois, a médio e longo
prazos. E, o que se depreende das movimentações do governo, a intenção de Lula
em seu terceiro mandato é reativar a pleno vapor políticas que causaram perdas
não de dezenas, mas de centenas de bilhões de reais, a maior parte delas
irrecuperável.
O pior é que o rombo colossal aberto na
Petrobras não trouxe as compensações sociais que prometiam as gestões petistas
de Lula e Dilma Rousseff. Ao contrário, foi um jogo de perde-perde, em que os
maiores lesados pela administração dolosa da empresa, além dela mesma, foram o
País e os contribuintes. O desvario começou já no primeiro mandato de Lula, que
vislumbrou na descoberta do pré-sal seu eldorado particular e iniciou sua
jornada tão megalomaníaca quanto desarrazoada.
O espantoso é que, mesmo depois do fracasso
retumbante de suas iniciativas, Lula insiste na obsessão. É o que fica claro,
por exemplo, na elevação significativa do volume de investimentos previsto pela
Petrobras já no primeiro ano de seu retorno ao Planalto. No fim de 2023, a
empresa anunciou US$ 102 bilhões para o período 2024-2028, uma alta de mais de
30% em relação à programação anterior, que o agora ex-presidente Prates
promoveu na tentativa de agradar ao chefe e se manter no cargo.
Desde 2015, a Petrobras estava optando por
ciclos de investimentos abaixo da marca dos US$ 100 bilhões. Em seu período
mais frenético, entre 2010 e 2014, o volume ultrapassou a marca de US$ 220
bilhões, o que mereceu destaque em um processo do Tribunal de Contas da União
(TCU) que avaliou o desnível entre investimentos, endividamento e a política de
preços de combustíveis – responsável pela receita – como “inequívocos sinais de
ameaça à perenidade da companhia”.
Agora, Lula quer que a Petrobras acelere
novamente os investimentos, para ter o quanto antes obras grandiosas para
inaugurar em sua ininterrupta campanha eleitoral, como por exemplo a Refinaria
Abreu e Lima, em Pernambuco, e o Comperj, no Rio de Janeiro, que se
transformaram em emblemas de desperdício de dinheiro e corrupção. O projeto da
refinaria estimava custos em torno de US$ 2 bilhões, consumiu US$ 19 bilhões e
ficou pela metade. O polo petroquímico, nem a quarta parte do previsto alcançou
e engoliu outros US$ 8 bilhões, de acordo com o TCU.
O valor das perdas da Petrobras com políticas
irrealistas e investimentos fracassados a partir de 2003, início do mandarinato
petista, é estimado em mais de R$ 300 bilhões. Somente a contenção do preço dos
combustíveis – uma política populista muito cara ao PT e que teve seu auge na
gestão de Dilma – representou perda de receitas da ordem de R$ 180 bilhões.
Entre 2005 e o fim de 2011, ainda de acordo com o TCU, os preços de diesel e
gasolina foram mantidos praticamente no mesmo patamar, a despeito da escalada
dos preços internacionais e da necessidade de financiar os maiores planos de
negócios da empresa.
Nunca antes em sua história, a Petrobras se
viu mergulhada em tamanha disparidade entre receitas e despesas. O objetivo da
empresa, além de prover o mercado interno de combustíveis, é buscar o lucro e
distribuir dividendos a seus acionistas. Cabe à União, que recebe a parte do
Leão desses dividendos, dar retorno à sociedade em suas políticas públicas.
Atender a objetivos macroeconômicos e sociais não é tarefa da Petrobras, ao
contrário das ideias defendidas por Magda Chambriard, o próximo poste de Lula na
empresa.
Tebet, um corpo estranho no governo petista
O Estado de S. Paulo
Ministra do Planejamento prepara pacote
racional de corte de gastos para recalibrar o arcabouço e alcançar equilíbrio
fiscal, mas respaldo de Lula e do PT parece improvável
Com apenas nove meses de vigência, o
arcabouço fiscal dá mostras evidentes de não ser capaz de entregar o
crescimento econômico com responsabilidade fiscal que promete, mantidos os
atuais parâmetros para gastos e receitas. Os sinais preocupantes que surgem por
todos os lados mostram que é preciso recalibrar as despesas públicas, que não
tiveram tratamento adequado no regime fiscal do governo Lula da Silva e ameaçam
comprometer o equilíbrio das contas e levar a administração federal à
insolvência, afetando os investimentos públicos.
O roteiro para o necessário corte de despesas
do governo, parte mais sensível e complexa do gerenciamento fiscal, coube ao
Ministério do Planejamento, de Simone Tebet – que, sendo liberal, é um corpo
estranho no governo lulopetista. Tebet assumiu uma solitária batalha que tende
a transformá-la em bode expiatório do PT. Para indignação dos petistas, a
ministra estuda ajustes para tornar viáveis os pagamentos de benefícios
previdenciários e para conciliar os gastos obrigatórios, as despesas
discricionárias e o custeio da máquina pública.
Utilizando projeções do Ministério do
Planejamento obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação, reportagem do
Estadão mostrou que até 2028 os gastos mínimos constitucionais com Saúde e
Educação vão consumir 112% do espaço das despesas não obrigatórias do Orçamento
federal. Os dados corroboram a necessidade de revisão dos pisos
constitucionais, o que já havia sido constatado pelo Tesouro, quando propôs, no
ano passado, a vinculação desses gastos ao crescimento da população, ao PIB per
capita ou ao próprio arcabouço fiscal.
Outra linha mestra do plano de Tebet, a
desindexação dos benefícios previdenciários do modelo de reajuste do salário
mínimo, foi invalidada no nascedouro pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
“Não vejo muito espaço, nessa seara, para discussão da questão do mínimo”,
disse o ministro, em entrevista ao Estadão/Broadcast.
Difícil imaginar uma gestão Lula da Silva
discutindo temas como a desindexação de benefícios da Previdência do salário
mínimo; a vinculação de gastos com saúde e educação aos limites impostos pelo
arcabouço; e a recalibragem da contribuição federal ao Fundeb, um fundo de
natureza contábil voltado à educação básica. Todas compõem o cardápio de
alternativas em estudos no Planejamento. Adotá-las ou não será uma decisão
política do governo. Mas não parece crível esperar avaliação ponderada e
criteriosa de uma administração federal que defende o gasto público irrestrito,
pois, como diz Lula, não se trata de gasto, e sim de “investimento”.
Orgulhosamente desenvolvimentista e
estatista, o PT atacou pesadamente o trabalho em curso no Planejamento. A
presidente do partido, Gleisi Hoffmann, foi ao X para classificar como “muito
ruins” as propostas de Tebet, que, segundo ela, “contrariam o programa de
governo eleito em 2022”. Tratase de uma falácia: com o objetivo de forjar a tal
“frente ampla” para derrotar nas urnas o então presidente Jair Bolsonaro, o
demiurgo petista nunca foi claro sobre o que pretendia fazer na economia, e seu
programa de governo era suficientemente vago para que os incautos acreditassem
que, desta vez, Lula não seria Lula.
A mesma Gleisi que hoje critica a
inobservância à ortodoxia petista garantiu aos partidos da suposta frente ampla
que o governo, uma vez eleito, governaria com todos. O embarque de Tebet na
candidatura de Lula em 2022 foi parte do processo que convenceu muitos
eleitores de centro de que valia a pena correr o risco de votar no PT contra
Bolsonaro porque Lula levaria em conta a visão de quem não era petista. Não é
exagero dizer, aliás, que foi isso o que decidiu a eleição a favor de Lula na
apertadíssima disputa contra Bolsonaro.
A equipe do Planejamento está embasando as
implicações do crescimento das despesas na economia. A correção no ritmo dos
gastos será a alternativa proposta a soluções paliativas ou malajambradas do
passado, como a contabilidade criativa da gestão Dilma Rousseff, que gerou
grave crise econômica. O governo será leviano se fugir ao debate. Simone Tebet
está sentindo na pele o que é defender racionalidade dentro de um governo
petista.
Molecagem
O Estado de S. Paulo
Para Guilherme Boulos, vale tudo para livrar
um aliado da cassação por suspeita de ‘rachadinha’
O deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP)
foi uma das vozes mais estridentes do País a denunciar o clã Bolsonaro, não sem
razão, pela prática da famigerada “rachadinha”. O problema é que, para o sr.
Boulos, parece haver “rachadinhas” e “rachadinhas”. Quando a prática criminosa
– tecnicamente, uma modalidade de peculato – é cometida por seus adversários
políticos, sobre eles recai toda a fúria vestal do notório líder do MTST. Já
quando o suspeito é um aliado, então prevalecem a hipocrisia, a condescendência
e até a molecagem.
Pois foi molecagem, não há outra forma de
dizer, o que o sr. Boulos fez, na condição de relator do processo de cassação
do mandato do colega André Janones (Avante-MG), para livrar a barra do parceiro
do dito “campo progressista” no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, no
dia 15 passado. Mais do que ignorar, o psolista distorceu uma decisão do
Supremo Tribunal Federal (STF) desfavorável a Janones e ignorou olimpicamente
os fortes indícios de prática de “rachadinha” que pesam contra o colega.
Esse papelão a que se prestou o deputado
paulista tinha o objetivo de matar na origem o processo político contra aquele
que é tido como “herói” pela esquerda por supostamente ter “salvado” a campanha
de Lula da Silva nas redes sociais na eleição passada. Ademais, para sustentar
sua tibieza, Guilherme Boulos tomou como verdadeira em seu relatório uma
autodeclaração de inocência, ora vejam, do próprio André Janones.
À guisa de lustrar com um verniz de
tecnicalidade o que não passa de reles acobertamento, pura e simplesmente, o
relator do processo de cassação, ao votar para que o caso fosse arquivado,
justificou que uma gravação na qual Janones pede a seus assessores que devolvam
parte dos salários a ele teria ocorrido antes da assunção do mandato federal.
“Antes de tudo, é preciso trazer à baila que a representação do PL (contra
André Janones) traz fatos ocorridos antes do início do mandato de deputado
federal do representado (em fevereiro de 2019). O próprio representado afirma
isso”, disse Boulos ao votar pelo arquivamento do processo. Eis a molecagem.
A referida gravação – que revela
explicitamente que Janones, de fato, pediu que seus assessores de gabinete o
ajudassem a “recompor o patrimônio”, que teria sido dilapidado em função dos
gastos de uma fracassada campanha nas eleições de 2016 – ocorreu quando o
mineiro já era deputado federal. No áudio, como deixou claro o ministro do STF
Luiz Fux ao autorizar a abertura de inquérito pedida pela Procuradoria-Geral da
República, Janones apenas fazia menção aos gastos de 2016 que teriam de ser
cobertos. Não se trata, portanto, do marco temporal da possível prática de
“rachadinha”, como o sr. Boulos, ardilosamente, deu a entender.
Guilherme Boulos é caso perdido e só mostrou que para livrar um aliado político da cassação vale tudo, até ofender a inteligência alheia. Espera-se que seus pares no Conselho de Ética sejam mais respeitosos com os fatos e com a sociedade.
Mudanças climáticas exigem políticas de
Estado
Correio Braziliense
O atual cenário climático requer políticas
continuadas, para ultrapassar a economia de carbono, defender as florestas e
mudar o padrão de ocupação e construção das cidades
Ninguém pode ignorar a imediata, enérgica e
eficiente ação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para apoiar o governador
do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e os prefeitos da região no socorro aos
atingidos pelas enchentes, mas o foco de suas ações deve ser objetivo quanto às
necessidades da população e da economia gaúcha, e não aos eventuais. interesses
eleitorais envolvidos.
O presidente Lula, prontamente, conseguiu
aprovar uma lei no Congresso que suspendeu por três anos o pagamento da dívida
do estado, num montante de R$ 23 bilhões. O auxílio emergencial de R$ 5,1 mil e
outras medidas diretamente destinadas às famílias atingidas dispensam palavras
para explicitar a preocupação efetiva do governo com os gaúchos flagelados.
Ontem, o governo anunciou uma parcela extra do Fundo de Participação dos
Municípios, no montante de R$ 192 milhões, para ajudar os prefeitos nessa emergência.
A criação de uma secretaria extraordinária,
em nível ministerial, para controlar e agilizar os esforços federais era mesmo
necessária. A nomeação para o cargo do ministro Paulo Pimenta, porém, foi
polêmica; é vista como uma partidarização da atuação governamental. O que
confirmará ou não essa interpretação será o comportamento do ministro
extraordinário.
Numa democracia, toda ação administrativa tem
impacto eleitoral, mas isso ocorre pelos seus resultados efetivos, e não em
decorrência apenas do proselitismo ou da instrumentalização dessas ações. No
caso das enchentes gaúchas, não será diferente. A politização do socorro aos
gaúchos com propósitos eleitorais pode até ter um efeito bumerangue e se voltar
contra seus autores, ainda mais em uma situação de destruição da envergadura
que estamos presenciando. Até porque a plena recuperação do Rio Grande do Sul exigirá
a atuação de vários governos e pode exigir o esforço de uma geração.
É importante destacar que a tragédia
provocada pelas chuvas no Rio Grande Sul não tem precedentes, vai muito além
das enchentes de 1941. Ela é reflexo de uma mudança significativa no regime de
circulação das águas do Atlântico, provocada pelo aquecimento global. São
mudanças que exigem um novo olhar dos governantes e o combate sistemático ao
negacionismo ambiental.
Ou seja, requer políticas de Estado,
continuadas, para ultrapassar a economia de carbono, defender as florestas e
mudar o padrão de ocupação e construção das cidades. Segundo um artigo
publicado em fevereiro na revista Science Advances, o braço atlântico da grande
circulação oceânica que circunda os continentes está mais fraco devido ao
derretimento da calota polar. Isso provoca anomalias no atual regime de chuvas
e no padrão das temperaturas deste século.
O Hemisfério Norte ficará mais frio nas
próximas décadas, em especial na América do Norte e no norte da Europa; e o
Hemisfério Sul, mais quente. Há evidências científicas de que a Circulação de
Revolvimento Meridional do Atlântico (Amoc), nome técnico do sistema, perdeu
15% de sua intensidade nas últimas duas décadas e se encontra, hoje, em seu
momento mais fraco do milênio.
Essa circulação é importante para a manutenção do equilíbrio térmico do planeta. Observando as mudanças ao redor do paralelo 34,5° Sul, que passa pelo município de Chuí, no Rio Grande do Sul, e pela Cidade do Cabo, na África do Sul, o projeto captou indícios de mudança de temperatura em águas profundas na região. O Atlântico Sul está cerca de 1,6°C mais quente na faixa tropical e 1°C no restante. Pode parecer pouco, mas tem um impacto colossal: o aumento da velocidade e da potência dos ciclones e anticiclones, por exemplo. Ciclones extratropicais são geradores de tempestades. Por isso, as tempestades maiores e mais intensas no Sul, algumas no Sudeste, e as secas no Norte e Nordeste. E o aumento da temperatura das ondas e dos bolsões de calor, principalmente no centro do país.
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