O Globo
Pleitear igualdade moral para os animais
ainda soa absurdo para muitos. Afinal, os ‘Homo sapiens’ seriam superiores por
direito divino
Em 2022, Bolsonaro autorizou que os
brasileiros repatriados da Ucrânia trouxessem
consigo, nos aviões da FAB, seus animais de estimação. Um ano depois, Lula fez
o mesmo em relação aos cidadãos resgatados de Gaza. Diferentes em
(quase) tudo, os dois presidentes estiveram de acordo ao reconhecer os vínculos
entre os humanos e seus companheiros de outras espécies. Não se cogitou deixar
ninguém para trás.
A história se repete, agora, no Rio Grande do Sul. Cerca de 11 mil animais — entre domésticos e silvestres — foram salvos e levados para abrigos (isso sem contar os milhares de resgates feitos por prefeituras, ONGs e voluntários). Um hospital veterinário de campanha foi montado em Porto Alegre. Reencontros de cães e seus tutores renderam momentos emocionantes. O cavalo impassível sobre uma improvável ilhota metálica, que um dia fora um telhado, se tornou símbolo ao mesmo tempo de vulnerabilidade e resistência. Do frágil equilíbrio em que estamos todos — e da esperança que não podemos perder.
Tem sido assim nos recentes desastres
ambientais: mutirões prestando socorro a aves cobertas de óleo, à fauna
atingida por queimadas, secas, inundações. Mas é uma compaixão seletiva.
Animais escravizados em circos já estão
proibidos na maioria dos estados (falta uma lei nacional). Dezenas de milhares,
entretanto, permanecem cativos em zoológicos e aquários — os freak shows do
nosso tempo —, onde continuam a ser usados para entretenimento e lucro. Há
santuários e instituições que cuidam da preservação de espécies ameaçadas, mas
esses são minoria. Caiu no esquecimento o escândalo das 18 girafas retiradas de
seu hábitat, na África, para viver confinadas no Rio de Janeiro. Quatro já morreram.
Ainda convivemos com o conceito de “carga
viva”, cujo transporte requer cuidados para que “a mercadoria chegue a seu
destino da maneira esperada”. Sim: “mercadoria” é o termo usado para seres que
sentem dor e prazer; experimentam medo, raiva, solidão; sofrem traumas e
estresse. Quem já visitou um abrigo de animais à espera de adoção, esteve em um
matadouro ou viu a cachorrinha que continuava “nadando no ar” mesmo depois de
salva das águas saberá bem do que se trata.
Joca, o cão que a companhia aérea Gol tratou
como carga — e deixou morrer de calor — , dá nome ao Projeto de Lei que proíbe
o transporte de pets em porões e bagageiros. É mais um passo numa longuíssima
maratona. Enquanto nos comovemos com Joca e Caramelo, 34 milhões de bovinos, 57
milhões de suínos e mais de 6 bilhões de aves são mortos por ano no Brasil.
Todos igualmente sencientes — mas, para eles, o artigo 225 da Constituição (que
veda submeter animais a práticas cruéis) é letra morta. Lembrando: proteína
animal pode ser necessária; crueldade nunca é.
Desde Darwin já se sabe que há uma
continuidade entre as espécies e que a mente do ser humano e a dos outros
animais superiores (peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos) difere apenas
em grau, não em tipo. No entanto pleitear igualdade moral para os animais ainda
soa absurdo para muitos. Afinal, os Homo sapiens seriam superiores por direito
divino — tanto quanto dizem os sexistas em relação ao sexo oposto; os racistas
que desumanizam os de outra origem étnica; os homofóbicos, para quem só seu
desejo é lícito etc.
Devagar, vamos nos dando conta de que tudo o
que é vivo importa. A próxima revolução — a dos bichos — já começou.
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