sexta-feira, 31 de maio de 2024

Entrevista | Sérgio Abranches: Presidencialismo de coalizão chegou ao ‘pior dos mundos’

Por Fabio Murakawa / Valor Econômico

Para sociólogo, ante a atual fragmentação partidária, nenhum governo conseguirá formar uma maioria “minimamente coesa” para apoiá-lo

Sociólogo, cientista político pós-doutorado pela Universidade Cornell, nos EUA, foi Sérgio Abranches que, em 1988, cunhou o termo “presidencialismo de coalizão” para definir o modelo político que se desenhava na recém-nascida democracia do Brasil.

À época em que escreveu o artigo, o país escrevia a Constituição que vigora até hoje. Abranches percebeu, na composição da Assembleia Constituinte, três características que tornavam o modelo brasileiro diferente do de qualquer outro país do mundo: “Além de combinar a proporcionalidade, o multipartidarismo e o ‘presidencialismo imperial’, organiza o Executivo com base em grandes coalizões”.

“A esse traço peculiar da institucionalidade concreta brasileira chamarei, à falta de melhor nome, ‘presidencialismo de coalizão’”, escreveu à época.

Mais de 35 anos depois, esse modelo está sob questão, sobretudo com o controle cada vez maior do Orçamento público pelo Congresso. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já chegou a defender a criação de um sistema “semipresidencialilsta”, para abandonar o atual modelo.

Nesta entrevista ao Valor, Abranches diz que o presidencialismo de coalizão vive uma crise, à medida que, ante a atual fragmentação partidária, nenhum governo conseguirá formar uma maioria “minimamente coesa” para apoiá-lo.

Eu me arriscaria a dizer que 90% dos deputados brasileiros não sobreviveriam ao parlamentarismo”

Para Abranches, o modelo está no “pior dos mundos”, em que os parlamentares alocam uma parcela substancial do Orçamento”, via emendas, sem o ônus de serem responsabilizados pelos eventuais fracassos das políticas públicas.

A seguir os principais trechos:

Valor: O presidencialismo de coalizão acabou?

Sérgio Abranches: O presidencialismo de coalizão só acaba quando for mudado o regime constitucional. O que pode acontecer com ele é ser transformado internamente, ou desfigurado, ou se tornar mais instável, em crise. Hoje, o que nós temos é uma crise do presidencialismo de coalizão, no sentido de que não tem condições na atual configuração partidária da Câmara dos Deputados, em particular, para formar uma coalizão majoritária minimamente coesa para apoiar o governo. Isso se reflete em uma maior dificuldade do governo para aprovar os projetos. Então, ele já faz uma autofiltragem daquilo que é mais prioritário e que tem mais chance de negociar com o Congresso.

Valor: No caso do governo do PT, as pautas identitárias, que não passam de jeito nenhum...

Abranches: Não é só na área identitária. A “saidinha” envolve uma percepção social da questão da segurança. Mesmo em questões fundamentais, como Educação e Saúde, o governo tem dificuldade hoje. A gente reclamava muito sempre que partidos brasileiros não têm nenhuma visão programática, mas eles tinham pelo menos alguns compromissos políticos, uma certa preocupação com o nacional e de âmbito estadual. Hoje a visão dominante no Congresso é municipalista, é o reduto eleitoral do deputado e não muito mais do que isso. Tanto que o Arthur Lira chama o novo sistema orçamentário de “municipalista”.

Valor: Com essa fragmentação partidária no Congresso, é diferente ser presidente hoje do que era em décadas anteriores?

Abranches: O FHC [Fernando Henrique Cardoso] tinha maioria com dois partidos, PSDB e PFL. Com o PMDB, que se uniu a eles, com três partidos ele tinha 70% dos votos, era tranquilo. Tinha muito pouca divergência, se a gente pensar bem, entre PSDB, PFL e PMDB. Eram partidos contíguos do ponto de vista político e ideológico. O Lula [entre 2003 e 2010] conseguia fazer maioria com seis partidos: os partidos da esquerda mais o PMDB. A Dilma, quando se defendeu do impeachment, fez essa comparação. Ela disse: “Eu precisava de 17 partidos para fazer a maioria, então era ingovernável”. Ela tinha razão. Com o domínio do Centrão, você tem uma política exclusivamente do “toma-lá-dá-cá”. E mais a influência da extrema-direita e dos evangélicos. Isso aí dá uma mistura que torna qualquer possibilidade de um programa governamental negociado com o Congresso difícil. Houve, de fato, uma deterioração progressiva do presidencialismo brasileiro.

As condições pelas quais foi possível o Bolsonaro articular o golpe não sumiram. Foi um golpe inacabado”

Valor: O Brasil está rumando para um parlamentarismo?

Abranches: Eu me arriscaria a dizer que 90% dos deputados brasileiros não sobreviveriam ao parlamentarismo. O nosso problema hoje é que a gente está no pior dos mundos. Quer dizer, eles [deputados] alocam uma parcela substancial do Orçamento sem responsabilidade perante o eleitor, a não ser o seu eleitor específico lá, do seu reduto, quando no parlamentarismo isso produziria claramente uma quebra da confiança. E, nas eleições parlamentares, certamente haveria uma varrida desses deputados que não têm um mínimo de visão nacional. Essa ação irresponsável, no sentido de que não tem custo para as injustiças que cometem, isso aí é insustentável em um regime de tipo parlamentar. Porque o resultado é o aumento da desigualdade. Isso dá um resultado nacional negativo. E esse resultado negativo nacional derrubaria o Parlamento.

Valor: Aonde a crise do presidencialismo de coalizão desaguará?

Abranches: Ela pode produzir uma baita crise econômico-social em algum momento, ou pode produzir uma reação da sociedade que se traduza em um novo padrão de voto também. Até agora, ela tem produzido um padrão de voto niilista, quer dizer, antipolítica, antidemocracia, a favor de qualquer aventureiro que seja capaz de dizer três ou quatro ofensas mais agudas ao sistema, como aconteceu com [Jair] Bolsonaro.

Valor: Como Lula está se saindo à frente de um Executivo enfraquecido ante um Congresso tão forte?

Abranches: Eu imagino que o Lula de vez em quando deva ficar surpreso com o que está acontecendo, porque para ele é uma situação muito diferente. O Lula governou durante dois mandatos com muita popularidade e muito apoio social, portanto, uma enorme força sobre o Congresso. E de repente ele se vê com baixa popularidade, sem capacidade de manejar no Congresso, com um novo padrão de negociação com o qual ele não está acostumado, e questões com as quais não tem nenhuma afinidade.

Valor: Que questões?

Abranches: A gente vê as contradições, por exemplo, do Lula na questão ambiental. Ele tem a antena que permite perceber que essa é uma questão global fundamental, mas quando olha para dentro do país, ela bate na sua concepção superada de desenvolvimento. E ele fala: “Mas eu não posso sacrificar a Petrobras, eu tenho que fazer mais petróleo”, “Eu tenho que atender a indústria automobilística velha, não posso ficar pensando só no carro elétrico”. Essas contradições mostram um descompasso entre a visão dele e a percepção que ele tem de que tem questões novas que precisam ser enfrentadas pelo governo. Eu acho que é um governo mais contraditório, menos bem definido, política e programaticamente, do que foram os outros governos do Lula. E com muito mais dificuldade política.

Valor: O Arthur Lira, nesse processo, é uma figura do seu tempo?

Abranches: O Arthur Lira expressa exatamente essa nova correlação de forças. Ele nasce do Centrão do Congresso, ele faz parte da política oligárquica brasileira, e assume a presidência da Câmara num momento em que tem um presidente muito fraco, incapaz de lidar com o processo político, e que abdica disso para o Congresso, que foi o Bolsonaro - aquele poder enorme com um Orçamento Secreto, que ele [Lira] chama de municipalista. E com isso ele consegue um grau de poder para além dos recursos de poder que o presidente da Câmara tradicionalmente tem, que são muitos. Ele consegue centralizar as decisões, ele consegue definir, junto com um pequeno grupo do colégio de líderes. O maior poder de agenda hoje no Brasil é o do Arthur Lira.

Valor: Todo esse poder tende a derivar para o sucessor do Lira?

Abranches: Eu acho que é difícil o mesmo poder de controle de agenda que o Lira tem, porque na verdade ele nasceu de uma circunstância ainda mais favorável, que era quando tinha Orçamento Secreto. Ao mesmo tempo, conseguiu uma relação de confiança com os parlamentares que o elegeram, que dá a ele muita autoridade. Eu não vejo entre os candidatos ninguém com esse perfil. Por outro lado, não há possibilidade efetiva, ali no chão do plenário, de reverter recursos para o Executivo. Eu diria que talvez dê mais jogo, mas pode ser também que fique mais desorganizado o processo. Um presidente com menos pulso, com essa menor capacidade de controle de agenda, pode, na verdade, fazer com que haja mais paralisia no processo legislativo.

Valor: Como o resultado das eleições municipais pode se refletir no humor em Brasília?

Abranches: A eleição tem o efeito que resulta da interpretação do resultado. Se as manchetes dos jornais forem “PT derrota bolsonarismo”, isso tem um efeito político sobre aqueles que tendem a buscar o poder, de alinhar-se ao governo. Se for o contrário, a atração muda de lado. Se ficar claro que o governo ganhou as eleições, e o que vai definir isso vai ser evidentemente a disputa em São Paulo e em algumas capitais visíveis, isso pode ter um efeito positivo na popularidade do Lula, que por sua vez rebate nas relações com o Congresso.

Valor: O que o 8 de Janeiro diz sobre a nossa democracia?

Abranches: Eu acabei de entregar à editora um livro no qual eu faço uma detalhada análise do 8 de Janeiro, e eu chamei de “Golpe Inacabado”. Não um golpe frustrado ou fracassado, mas inacabado. Primeiro, porque as condições pelas quais foi possível o Bolsonaro articular o golpe não desapareceram. A gente ainda tem o mesmo estatuto legal para a convocação das forças militares. A gente continua não tendo mecanismos adequados de responsabilização do presidente pelos seus atos que não sejam impeachment, o que é um problema. Nós não temos também uma lei moderna contemporânea adequada de impeachment, a nossa legislação é de 1950, com duas jurisprudências diferentes, a da época do Collor e a da época da Dilma. E a segunda razão pela qual eu considero um golpe inacabado é porque os articuladores, os líderes e os financiadores do golpe não foram punidos ainda. Enquanto não houver a punição adequada, a gente continua tendo um problema democrático não resolvido.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Exatamente!