Folha de S. Paulo
A reação do senso comum ao perigo inclui
sempre os animais
Ainda corre mundo, comovendo, a foto
de Caramelo quatro dias equilibrado no telhado de uma construção
submersa em Canoas, na calamidade
gaúcha. No Vale
do Taquari, uma mãe agarrou-se a seu bebê num telhado durante o mesmo
tempo. Mas a imagem do animal, valente resiliência, circula como símbolo do
desespero assim como do afeto em meio à catástrofe.
A reação do senso comum ao perigo inclui sempre os animais. Há bases materiais e emocionais: mais de 60% das famílias brasileiras possuem pets. Cada vez mais se recorre a cães e cavalos para terapias psicológicas de idosos e crianças excepcionais. No âmbito dos jovens, pertence ao folclore roqueiro dos anos 1970 a imagem do gótico Alice Cooper vestido apenas por sua jiboia de estimação.
É que todo animal, além da emoção doméstica,
provoca pensamento. Primeiro porque resiste, mais do que o ser humano, ao
artificialismo tornado padrão de referência para qualquer forma de existência.
Cada um tende a ser apreciado por seu ajustamento aos costumes do capital,
disso escapa o animal. Na China, apesar de
Xi Jinping e todo o racionalismo doutrinário, o culto taoísta exalta a
incorporação do macaco rei pelo devoto, que então comunga com formas
suprassensíveis de pensar. Na Índia, os bovinos permanecem sacralizados.
Dias atrás, na rede, um visitante de
zoológico atraía a atenção de um gorila, imitando gestos de macaco. Quando
terminou, o símio aplaudiu. Surpreendente, mas compreensível, porque a
proximidade cada vez maior entre humanos e animais, embora consiga manter a
diferença, diminui a radicalidade da distinção. No culto de si exacerbado pelas
máquinas, em que tanto a solidão quanto a presença do outro parece
insuportável, animal é fetiche de alteridade: nem gente, nem coisa, um ser vivo
confortável. O cão, filosofa uma tabuleta de loja de pets, já nasce amando o
dono.
Calígula fez do cavalo Incitatus senador
romano. Caramelo não
destoaria em Brasília, mas prevalece como imagem forte do gaúcho nos pampas, a
mesma da crônica nativista das peleias entre maragatos, chimangos e pica-paus,
sempre a cavalo com suas lâminas. O que pouco ou nada se diz é que a destreza
com montaria, lanças e boleadeiras era apanágio dos haussás, heróis da Revolução
Farroupilha no Batalhão dos Lanceiros, composto de escravos.
O pano de fundo dos brasões tradicionalistas
gaúchos é afro, 20% da população é negra. Na dignidade da reconstrução, há de
se ressignificar o racismo contra
"pelos duros" e peles escuras como um contrassenso. No telhado, a
tenacidade evocativa de resiliência da memória, uma ironia objetiva do
antirracismo, "desmonta filáucias de altos brasões esboroados entre moscas
defuntórias" (Drummond, "Os dois vigários"). Caramelo, tchê, é
civilidade.
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