Eleição na França traz tensão ao projeto europeu
O Globo
Eventual vitória da extrema direita lançaria
país em período de instabilidade sem precedentes
Quando os franceses forem às urnas no domingo
eleger os ocupantes das 577 cadeiras da Assembleia Nacional, estará em jogo
mais que o legado das reformas do presidente Emmanuel
Macron. Um Parlamento dominado pelo ultradireitista Reunião Nacional
(RN), seguido pela Nova Frente Popular (NFP), coalizão liderada pela extrema
esquerda, lançaria o país num período de instabilidade sem precedente,
prejudicial ao projeto europeu. O mandato de Macron, líder mais vocal da União
Europeia (UE), acaba em 2027, mas, a depender do resultado, problemas
domésticos o enfraquecerão no bloco.
Se confirmados, os ganhos eleitorais dos extremistas de direita (e de esquerda) aumentarão a erosão dos partidos no centro do espectro político. É verdade que a coalizão liderada pelo centrista Olaf Scholz segue governando a Alemanha, e o Partido Trabalhista, depois de uma guinada ao centro, é favorito nas próximas eleições no Reino Unido. Mas essas conquistas em nada diminuem a insatisfação dos europeus. Entre as décadas de 1960 e 1980, a fatia de votos dos partidos social-democratas se manteve em 34% do total. De lá para cá, houve uma queda de pelo menos 10 pontos percentuais. Na França, os socialistas, representantes da tendência moderada, são coadjuvantes dos extremistas na coalizão de esquerda.
Uma vitória de extremistas na França traria
enormes transtornos. Com uma dívida que equivale a 110% do PIB, o déficit
fiscal francês foi de 5,5% no ano passado. Uma crise econômica imporia novo
teste ao euro e às autoridades financeiras europeias. Populistas de direita e
esquerda prometem cortar impostos e elevar gastos públicos. Uma vez no poder,
ou cometerão estelionato eleitoral, ou semearão o caos. Os radicais de direita
são especialmente críticos à UE e próximos da Rússia de Vladimir Putin. A política
externa é prerrogativa da Presidência, mesmo assim não se pode subestimar a
influência do Parlamento.
As pesquisas dão o RN, de Marine Le Pen, com
35,2% das intenções de voto, a NFP, de Jean-Luc Mélenchon, com 28,3%, e a
coalizão de Macron com apenas 20,1%. Os números devem ser vistos com cautela.
Os próprios institutos destacam as peculiaridades do sistema eleitoral francês.
Os dois (ou três) candidatos mais votados no domingo seguirão para um segundo
turno em 7 de julho. Dada a aversão ao RN em certos círculos, haverá pressão
pelo voto útil contra seus candidatos no segundo turno.
Logo depois de anunciado o resultado da
eleição para o Parlamento europeu, quando ficou evidente a força do RN, Macron
decidiu antecipar o pleito nacional. Até auxiliares mais próximos criticaram
sua aposta. Ele argumentou ser premente ouvir a voz das ruas. Aparentemente,
sua intenção é unir quem não está nos extremos. Até o momento, é incerto o que
ocorrerá. Se obtiver sucesso, Macron será elogiado como uma espécie de salvador
da Quinta República Francesa. Se falhar e pavimentar o caminho para a extrema
direita chegar ao Executivo, ou no futuro à Presidência, terá sido seu algoz.
Brasileiros ignoram como Meta usa seus dados
para treinar modelos de IA
O Globo
Falta de regulamentação eficaz permitiu que
empresa processasse as informações sem autorização explícita
A Meta pretendia
começar a usar, a partir de hoje, dados compartilhados por usuários de Facebook e Instagram na
Europa para treinar seus modelos de inteligência
artificial (IA). Mas, ao informar a intenção, foi alvo de
questionamentos das autoridades europeias e teve de adiar os planos. No Brasil
e nos Estados
Unidos, o desenlace foi diferente. A análise de postagens, fotos e
legendas publicadas pelos usuários já é realidade, e milhões estão no escuro
sobre como suas informações já foram, são ou serão usadas.
A empresa argumenta que já existe autorização
de uso, pois há muitos anos a IA governa seus sistemas de segurança e
integridade. E diz que, a qualquer momento, os usuários podem se opor a
fornecer os dados. É verdade que os brasileiros têm a opção de bloquear o
acesso a eles, como garante a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), mas o
procedimento é trabalhoso e pouco intuitivo.
O fundador da Meta, Mark
Zuckerberg, anunciou no início do mês que um assistente de
inteligência artificial em português será integrado aos serviços da empresa a
partir de julho. Os recursos começarão pelas caixas de busca de Instagram,
Facebook e WhatsApp.
Está previsto também um site semelhante ao ChatGPT, alimentado pelo modelo da
Meta, o Llama. Mas Zuckerberg não deixou claro que os serviços seriam
precedidos por mudanças nos termos de uso. No dia 16, uma mudança na política
de privacidade facilitou a análise de dados capturados dos brasileiros.
Para os desenvolvedores de IA, dados são
matéria-prima básica. Os grandes modelos de linguagem (LLMs) usados nas
ferramentas de IA como Llama, ChatGPT ou Google Gemini são treinados por
quantidades colossais de conteúdo produzido por seres humanos. Dos livros e
acervos de jornais às informações disponíveis na internet. O “aprendizado” das
máquinas se dá a partir da análise de um oceano interminável de bits. O GPT-4
foi treinado com uma quantidade de textos que um ser humano levaria 20 mil anos
para ler.
Em comunicado oficial, a Meta reconhece suas
intenções: “Como é necessária uma quantidade grande de dados para treinar
modelos eficazes, uma combinação de fontes é usada para treinamento”. Porém a
empresa peca na falta de transparência. Ao jornal The New York Times, um
porta-voz não explicou como as informações dos usuários são tratadas. Preferiu
ser evasivo, afirmando que são usadas “para construir e melhorar as
experiências de IA”.
O contraste com a Europa mostra a falta que
faz uma regulação mais eficaz das redes sociais tanto nos Estados Unidos como
no Brasil. Dado o histórico da Meta no que diz respeito à privacidade, é
aconselhável que as autoridades fiquem atentas. O lançamento de uma ferramenta
de IA tem potencial de maravilhar o público com as novidades e recursos que
oferece. Os benefícios são bem-vindos. A opacidade no relacionamento com os
usuários não é.
Ata do Copom traça cenário desfavorável para
a inflação
Valor Econômico
Incertezas externas e domésticas desenharam um quadro que deu ao diagnóstico do Copom um tom mais duro sobre o futuro da política monetária do que os documentos anteriores recentes
A decisão do Comitê de Política Monetária de
pôr fim ao ciclo de queda de juros se baseia em motivos mais amplos do que a
leniência fiscal do governo Lula, embora estejam estreitamente ligados a ela.
Para o Banco Central (BC), a economia já cresce marginalmente acima do seu
potencial, o que faz com que a inflação resista a convergir para a meta, apesar
de um juro real muito alto, de 6%. As incertezas externas, que estão levando à
desvalorização do real, e as domésticas, entre as quais se encontram pressões possíveis
de preços decorrentes da tragédia no Rio Grande do Sul, desenharam um quadro
que deu ao diagnóstico atual do Copom um tom muito mais duro sobre o futuro da
política monetária do que os documentos anteriores recentes.
As projeções para a inflação futura pioraram
com o avanço da desvalorização do real, constatação nova em relação à ata de
maio. O câmbio considerado no cenário de referência do BC entre as duas
reuniões evoluiu de R$ 5,15 para R$ 5,30, enquanto a previsão sobre o
comportamento dos preços administrados melhorou para este ano e o próximo. No
prognóstico anterior, situavam-se respectivamente em 4,8% e 4%, e agora em 4,4%
e 4%. Como apontou ontem o diretor de Política Monetária, Gabriel Galípolo, o
Copom se reuniu em 7 e 8 de maio com o dólar valendo R$ 5,03 e fez o encontro
seguinte em 18 e 19 de junho com ele a R$ 5,47.
O avanço do dólar diante do real é a
interface entre dois cenários que prejudicam o combate à inflação. O cenário
externo, que o BC qualifica como muito adverso, em função da “incerteza elevada
e persistente sobre a flexibilização da política monetária nos EUA”, modificou
os preços dos ativos, desfavorecendo os de maior risco, como os brasileiros.
Com isso, os investidores estrangeiros retiraram R$ 43 bilhões da bolsa até
segunda-feira, pressionando o real. As apostas contra a moeda brasileira também
subiram no mercado de derivativos, com as posições compradas em dólar atingindo
US$ 78,3 bilhões (Valor, ontem).
A outra parte dessa história tem a ver com a
deterioração das perspectivas fiscais domésticas. Ela implica gastos maiores da
União, que estimularam uma economia já ao redor do pleno emprego. O resultado é
que as atividades econômicas estão “mais fortes” no ano, em um ritmo que não
auxilia a queda da inflação. Esta é outra mudança do comunicado relevante. No
Relatório de Inflação de março, o BC apontava um crescimento da economia cerca
de 0,6% abaixo de seu potencial. Isso mudou. “O Comitê avalia que o hiato do
produto, que se encontrava levemente negativo na última avaliação divulgada,
está agora em torno da neutralidade”, registra a ata.
O Copom avaliou que as surpresas pelo lado da
maior atividade foram a formação bruta de capital fixo (investimentos) e o
consumo das famílias, além de um mercado de trabalho apertado. Com isso, apesar
de a inflação cheia apresentar arrefecimento, as medidas de inflação subjacente
permanecem acima da meta de inflação (3%). Aumento da renda e emprego fizeram
com que o componente mais instável da inflação, a evolução do nível de preços
dos serviços, que tem maior inércia, assumisse “papel preponderante na dinâmica
desinflacionária no estágio atual”.
O Copom modificou outra variável importante
em sua estratégia, a taxa neutra de juros, que tem causado debate recorrente
nas últimas reuniões. Como a situação fiscal só piorou, havia a suspeita de que
essa taxa, a partir da qual se calibra se a política monetária está sendo
suficientemente contracionista ou relaxada, poderia ser maior do que aquela com
a qual o BC trabalhava. Os economistas do Itaú, por exemplo, calcularam o juro
neutro de seis formas diferentes e concluíram que ele varia de 4% a 5%. O Copom,
por outro lado, o elevou “marginalmente” de 4,5% para 4,75% depois de sublinhar
que ela “não é uma variável que deve ser atualizada em frequência alta e que
tampouco deveria ter movimentos abruptos”. Um significado da mudança é que os
juros são menos inibidores do que pareciam ser, embora a taxa real seja
bastante alta sob qualquer medida.
Tudo somado, foi a vez de o Copom discutir se
o balanço de riscos, que pesa as possibilidades de a inflação subir ou cair,
não havia se deslocado do nível equilibrado para o altista, uma discussão
também feita na reunião anterior. Um argumento utilizado foi que o hiato do
produto havia se fechado, e a inflação de alimentos, se mostrado persistente. A
conclusão foi que parte desses fatores já havia sido incorporada e não
alteraria a avaliação.
Dessa forma, o cenário prospectivo para a inflação piorou, tanto pelo aumento da atividade, desancoragem das expectativas, fechamento do hiato do produto, maior resistência inflacionária, pressão da valorização do dólar e piora da situação fiscal. Há sinais puramente sazonais de deterioração. Junho e julho de 2023 tiveram um IPCA muito baixo, o que não deve ocorrer agora. Com isso, o índice em 12 meses pode ultrapassar provisoriamente a meta de 4,5%, alerta a consultoria Macrométrica. Mas o cenário alternativo elaborado pelo BC, outra novidade da ata, indica que a manutenção da Selic em 10,5% é capaz de levar o IPCA a atingir praticamente a meta - 3,1% em 2025.
Hora de agir para estabilizar a finança
Folha de S. Paulo
Lula pode combater deterioração se determinar
contingenciamento no Orçamento e antecipar nome reputado para o BC
Esgota-se a margem para a retórica
presidencial na condução da política econômica. Aproxima-se o momento de o
governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) deixar de lado as bravatas e mostrar com ações se preserva algum
compromisso com a estabilização da finança.
A ata da última reunião do Comitê de Política
Monetária confirmou não haver discordância de diagnóstico entre os diretores
do Banco Central sobre
a elevação do risco inflacionário. A grande incerteza doméstica é saber se o
governo federal cumprirá suas obrigações na regra fiscal em vigor.
Não se trata de cobrar nenhum
"austericídio" do Executivo, muito pelo contrário. O marco aprovado
em 2023, na esteira de uma das maiores expansões de despesa já registradas,
permite uma nova elevação dos gastos em 2024, correspondente a 70% da alta da
receita e limitada a 2,5% acima da inflação.
Pois essa norma generosa caminha para ser
desrespeitada. De janeiro a maio de 2024, ante 2023, a arrecadação cresceu 8,7%
acima da inflação, em boa parte devido a medidas patrocinadas pela Fazenda.
Tal é a sanha gastadora da gestão petista que
nem sequer a disparada arrecadatória bastará para assegurar o cumprimento da
meta de aproximar o Orçamento do equilíbrio neste ano.
O dispêndio com benefícios previdenciários e
outros vinculados ao salário mínimo aumenta muito acima do limite global de
2,5% reais. Algo parecido ocorre com os desembolsos em saúde e educação, que
voltaram a ser atrelados a percentuais da receita.
O remédio imediato para essa sangria é o
contingenciamento de despesas discricionárias. Uma suspensão de gastos em
rubricas de custeio e investimento —que incluem
emendas parlamentares—
de R$ 15 bilhões, nas contas mais otimistas, precisará ser anunciada já em
julho sob o risco de arruinar-se de vez a regra fiscal.
Se decretasse o contingenciamento necessário,
Lula retiraria um pouco da pressão
extraordinária sobre câmbio e juros, que impulsiona as expectativas
da inflação futura e deprime as perspectivas de crescimento econômico.
Outra medida ao alcance do chefe de Estado
para ajudar na estabilização financeira seria antecipar a indicação de um nome
de boa reputação para suceder a Roberto
Campos Neto no Banco Central.
As bobagens
reiteradas pelo presidente da República sobre juros, BC e
equilíbrio fiscal estão prejudicando o seu próprio governo. Para Lula, seria
tomar um risco político e eleitoral considerável flertar com um surto
inflacionário ou mesmo recessivo na metade final do seu mandato. Há, afinal,
uma oposição competitiva pronta para arrebatar-lhe o Planalto em 2026.
Metas sem lastro
Folha de S. Paulo
Fiasco do plano de ensino mostra que
objetivos devem ser factíveis e monitorados
Toda política pública deve conter metas e
prazos, mas não basta estipulá-los. É preciso que os objetivos sejam factíveis,
que haja fontes para os recursos, que os responsáveis sejam claramente
designados e que haja monitoramento para identificar problemas e buscar
soluções durante o processo.
Tudo indica que o Plano Nacional de Educação (PNE)
falhou nesses quesitos. Desenvolvido pelo Executivo e aprovado pelo Congresso
Nacional em junho de 2014, o PNE determinou objetivos que
deveriam ser alcançados até este junho.
Passados os dez anos, contudo, das 20 metas
estabelecidas, só 4 foram parcialmente cumpridas, segundo relatório da ONG Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Entre elas: hoje 75% dos docentes do ensino
superior têm título de mestre ou doutor, mas a rede
privada não alcançou o mínimo de 35% de doutores; a rede pública
respondeu por metade da expansão das matrículas do ensino técnico de nível
médio, mas elas não triplicaram; chegou-se a 60 mil mestres titulados
anualmente, mas não se formaram 25 mil doutores.
Ademais, o avanço no aprendizado exigido para
todas as etapas da educação, a partir das notas do Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (Ideb), só foi alcançado nos anos iniciais do ensino
fundamental (do 1º ao 5º). Nos anos finais, a pontuação manteve-se próxima à
meta, mas no ensino médio houve piora.
Houve retrocesso também em garantir que 100%
da população de 6 a 14 anos tenha acesso ao ensino fundamental —a taxa caiu de
97,2% em 2014 para 95,7%, em 2023.
Gargalos crônicos não foram eliminados, como
se vê na frustração da meta de ter 100% das crianças alfabetizadas no 3º ano
fundamental ou na de que 95% dos
alunos concluam o fundamental na idade adequada. O ensino integral,
que deveria estar em no mínimo 50% das escolas, chegou a só 27% em 2022 (último
dado disponível).
O governo federal ainda não enviou o novo PNE ao Congresso. Se mais uma vez ficar limitado a objetivos sem lastro, o plano tende a não fazer muita diferença para melhorar os indicadores sofríveis da educação brasileira.
Assimetria de informação na reforma
tributária
O Estado de S. Paulo
Enquanto grupos de trabalho fingiam se
dedicar à regulamentação da reforma, os debates mais relevantes sobre o tema
ocorriam a portas fechadas, sem a participação dos contribuintes
Os grupos de trabalho que discutem a
regulamentação da reforma tributária preveem apresentar o parecer final no dia
3 de julho. Falta, portanto, uma semana para que a sociedade saiba os detalhes
sobre o funcionamento dos futuros impostos que incidirão sobre bens e serviços
e do Comitê Gestor que fará a distribuição das receitas arrecadadas entre
Estados e municípios.
O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL),
havia se comprometido a apreciar os textos em plenário até o fim do primeiro
semestre. Depois do dia 17 de julho, o Congresso entrará formalmente em recesso
e, a partir de agosto, os deputados deverão se dedicar às eleições municipais.
A boa notícia é que o prazo para concluir a
discussão das propostas na Câmara será cumprido, o que é essencial para que a
reforma possa entrar na fase de transição, que começa em 2026. A ruim é que
isso ocorrerá sem que tenha havido o mínimo de transparência sobre o conteúdo
das propostas.
Os grupos de trabalho formados para debater
os textos o fizeram de maneira pro forma. Nada de relevante aconteceu por
lá. Eles foram formalmente instalados em maio, mas a fase de audiências
públicas já está praticamente encerrada. Nesta semana, os parlamentares foram
dispensados de comparecer em Brasília para não perderem as festividades de São
João em seus municípios e participar da já tradicional feira anual do turismo
institucional promovida pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal
Federal, em Lisboa.
Lira não definiu relatores. A previsão é que
os 14 membros dos dois grupos de trabalho devam assinar e ler os pareceres de
maneira conjunta. Convenientemente, ninguém deixará sua digital na proposta.
Não que os debates sobre os textos não tenham ocorrido. As discussões mais
relevantes foram feitas em reuniões pretensamente técnicas – portanto, fechadas
– entre os deputados, o governo e as partes interessadas, cujo teor certamente
era de conhecimento dos líderes partidários.
Só quem não sabe o que virá na próxima semana
é o contribuinte, que não foi convidado a participar das conversas. O pouco que
se sabe se deve à imprensa. Nesta semana, por exemplo, o Estadão revelou
que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic)
defende taxar carros elétricos com o chamado “imposto do pecado”, que incidirá
sobre produtos e atividades que causem danos à saúde e ao meio ambiente.
Já se sabia que a ideia do governo era
sobretaxar automóveis leves, vans e veículos de carga com o Imposto Seletivo,
mas o detalhe é que, diferentemente deles, os carros elétricos não emitem
poluentes, o que – em tese – os isentaria desse imposto. O Mdic, no entanto,
pensa diferente, e alega que as baterias dos veículos elétricos são fabricadas
na China, a partir de fontes de energia suja.
Para o coordenador do Observatório Brasileiro
do Sistema Tributário, Francisco Mata Machado Tavares, a lógica do governo de
sobretaxar as atividades, e não a emissão de carbono em si, é ultrapassada.
“Parece que criamos um tributo dos anos 1970 para enfrentar problemas do século
21″, afirmou, no que tem toda a razão. Para o vice-presidente da Anfavea, Luiz
Carlos Moraes, a medida parece ter fim meramente arrecadatório, no que também
tem toda a razão.
Muitas outras discussões estranhas ocorreram
nos grupos de trabalho. Reportagens deste jornal revelaram uma silenciosa
investida de Estados e municípios para tentar reforçar a arrecadação por meio
de mudanças em impostos como IPVA, IPTU, ITBI e ITCMD e de taxas como a Cosip,
que nada tinham a ver com a reforma sobre bens e serviços.
Enquanto os grupos de trabalho fingiam
trabalhar, a Câmara se dedicava a acelerar todo tipo de assunto neste mês, da
anistia às multas aplicadas aos partidos pela Justiça Eleitoral à proibição de
delações premiadas por presos, passando pela lei que equipara o aborto após 22
semanas ao crime de homicídio, mesmo em caso de gestação resultante de estupro.
Não deixa de ser simbólico que um tema que
afetará o dia a dia das empresas e do consumidor e, por óbvio, o próprio
crescimento da economia tenha sido tratado de forma tão opaca pelos deputados.
Na foto de Lula com FHC, só há um estadista
O Estado de S. Paulo
Lula teve mais uma chance de se redimir das
injustas críticas que fez ao Plano Real e a FHC – que, recorde-se, lhe deu
apoio na eleição –, mas preferiu ser fiel à sua natureza incorrigível
O presidente Lula da Silva visitou o
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, num encontro do qual
saiu com uma comovente foto estampando o cumprimento de ambos. Os dois líderes
que um dia representaram as principais forças políticas do País demonstraram
mais uma vez civilidade, carinho e amizade. Como ocorreu outras vezes quando se
encontraram pessoalmente, a imagem despertou em muita gente de boa vontade
certo saudosismo de quando a polarização se organizava dentro dos marcos
razoáveis de convivência, diálogo e divergência. A grandeza da foto, contudo,
tirada no exato dia em que a Fundação Fernando Henrique Cardoso realizou um
evento em comemoração aos 30 anos do Plano Real, esconde a constrangedora
discrepância na estatura política dos dois personagens. Só superficialmente a
visita de Lula pode ser vista como um gesto de magnificência efetiva. Quando
observada em profundidade e à luz da história, constata-se a pequenez
lulopetista.
Mais uma vez Lula desperdiçou uma
providencial oportunidade de reconhecer o valor e o papel de Fernando Henrique
Cardoso. Não haveria momento mais conveniente para tanto, a começar pelo
aniversário do Plano Real, do qual FHC foi o principal arquiteto político, ao
não só unir o mais impressionante time de economistas dispostos a debelar a
hiperinflação, como também ter a sabedoria de que a boa técnica não prescinde
da boa política. FHC negociou exaustivamente com um Congresso que conhecia por
dentro e preferiu o uso público da razão à demagogia salvacionista. Mas, ao
registrar o momento em suas redes, Lula optou por unir a imagem com FHC com o
registro de outros três encontros: com o ex-presidente José Sarney, o escritor
Raduan Nassar e o jornalista Mino Carta. Foi como se preferisse evitar dar a
FHC o protagonismo que este merecia, sobretudo na semana comemorativa do Real.
Ou como se não conseguisse superar o histórico e mal resolvido desconforto do
PT com o Plano e seus artífices. E assim Lula mostrou seu verdadeiro tamanho,
minúsculo perto de FHC.
Teria sido uma ótima oportunidade para um
gesto de reconhecimento, por exemplo, ao apoio que FHC lhe deu no segundo turno
da eleição presidencial de 2022. Naquele ano, mal iniciada a renhida disputa
entre Lula e Jair Bolsonaro, o tucano não hesitou em anunciar: “Neste segundo
turno, voto por uma história de luta pela democracia e inclusão social. Voto em
Luiz Inácio Lula da Silva”. Ali FHC emprestava a Lula apoio incondicional em
nome da democracia. Com seu apoio viriam outros, capazes de assegurar a frente
ampla de que o petista precisava para superar Bolsonaro nas urnas e evitar o
pior. Exceto por raros momentos de dor pessoal – como no caso da morte da
ex-primeira-dama Ruth Cardoso – e pelo apoio dado na primeira eleição de FHC,
como senador, em 1978, é difícil imaginar grandeza semelhante por parte do
atual presidente.
O fato é que Lula e o PT nunca entenderam o
Plano Real. Economistas do partido apostavam no fracasso do Plano, enquanto, no
front político, com a campanha no horizonte daquele ano de 1994, os petistas só
enxergavam interesses eleitorais rasteiros quando, na verdade, se estava diante
de um divisor de águas na história nacional. Os eleitores perceberam o
descompasso e garantiram a FHC a mais indiscutível vitória dada a um candidato
a presidente. Inconformados, os morubixabas petistas lideraram uma inclemente oposição
ao governo tucano. Uma oposição por vezes violenta, que passava tanto pela
demonização do presidente quanto por uma espécie de novo udenismo, com a
denúncia estridente do que diziam ser grandes “escândalos de corrupção”.
Depois, quando assumiram o poder, os petistas acusaram FHC de lhes deixar uma
“herança maldita”, expressão inventada por Lula que até hoje anima a militância
e da qual o demiurgo nunca recuou, a despeito de sua flagrante injustiça.
Por isso, a visita de Lula a FHC e a imagem
cheia de cordialidade entre ambos provam que FHC continua um estadista, capaz
de superar as inúmeras grosserias que os petistas cometeram e ainda cometem
contra ele. Já Lula mostrou que jamais será o estadista que julga ser.
A dor do parto na Argentina
O Estado de S. Paulo
País entra em recessão, consequência do
ajuste que vai testar o governo de Javier Milei
A semana passada foi a melhor do governo de
Javier Milei em seis meses, e a mais intensa. No Congresso argentino, o Senado
aprovou reformas ambiciosas; fora, ativistas queimavam carros e atiravam
pedras. Um retrato da tensão que pode quebrar seu governo ou romper a hegemonia
peronista.
Após décadas de estatismo, protecionismo e
clientelismo, é difícil superestimar a disfuncionalidade da economia argentina.
Com sistemas de controle de preços insustentáveis e incontinência fiscal
alimentada por dinheiro impresso pelo Banco Central, o país bateu recordes de
recessão, hiperinflação e calotes. As reservas internacionais evaporaram.
Para seu crédito, Milei não apelou ao crônico
vício no pensamento mágico. “No hay plata”, disse em sua posse. Em outros
países, sua grosseira “motosserra” seria uma irresponsabilidade. Na Argentina
era uma necessidade. O corte de gastos foi brutal. Milei tirou da tomada a
máquina de imprimir dinheiro e depreciou o peso. Seguiram-se o superávit e a
queda da inflação, mas também a recessão.
O pacote aprovado no Senado contém medidas de
liberalização, incentivos a investimentos estrangeiros, privatizações, aumento
de receita e poderes extraordinários para cortar gastos, eliminar regulações e
flexibilizar regimes trabalhistas. É bem menos do que Milei queria e ainda
voltará à Câmara para revisão. Mas foi sua maior vitória política e mostrou que
“El Loco” é capaz de negociar com o establishment.
A primeira fase do governo terminou com
relativo sucesso. Mas o desafio maior está por vir. Milei precisa decidir o
futuro do Banco Central (que prometeu fechar) e do peso (que prometeu
substituir pelo dólar). Há indícios de que o peso esteja de novo sobrevalorizado,
o que afasta turistas, encarece exportações e dissuade investidores. Milei se
inclina ao que chama de “dolarização endógena”: fixar limites para a oferta de
pesos e apostar que os argentinos tirarão seus dólares do colchão quando a
economia precisar. Essa heterodoxia dificultaria mais empréstimos do FMI, que,
assim como a equipe econômica de Milei, favorece um sistema similar ao peruano
de “competição de moedas”, em que os dólares coexistem com uma moeda cuja
oferta é ajustada pelo Banco Central.
Por ora, permanece a incerteza. Mas o maior
desafio é político: manter o apoio de centristas e da oposição moderada. Cerca
de metade dos argentinos ainda apoia Milei. Mas até quando tolerarão as dores
da austeridade e da recessão?
As eleições mostraram que os argentinos queriam mudanças dramáticas. E conseguiram. As dúvidas são se aguentarão o tranco, se Milei optará pelo pragmatismo ao invés da ideologia e se conseguirá negociar com a comunidade política e mobilizar a sociedade para viabilizar as reformas necessárias. O caminho é longo, mas o tempo é curto. As eleições de 2025 podem marcar o endosso ou a rejeição. No último caso, Milei será constrangido a escolher entre combater, sem força, por uma agenda liberalizante ou acomodar interesses de setores que se beneficiaram de uma economia disfuncional, ou seja, optar entre a estabilidade política e a sanidade econômica.
O exemplo que veio do Plano Real
Correio Braziliense
O que deve ser cobrado é uma maior eficiência
nos gastos — e não apenas do Executivo —, para que se saiba o que efetivamente
está sendo desembolsado e para qual finalidade
O grande e inegável mérito do Plano Real,
prestes a completar 30 anos, foi debelar uma inflação de taxas astronômicas,
que chegaram a mais de 80% no início dos anos de 1990. Naquele momento,
iniciaram-se várias tentativas frustradas para controlar a subida dos preços,
incorporada ao dia a dia dos brasileiros com as máquinas de remarcação sempre
em operação no varejo, e o overnight dos bancos, garantindo a correção
monetária do dinheiro que perdia poder de compra diariamente. Depois de vários
planos, foi o Real que finalmente assegurou o controle da inflação, que caiu
drasticamente de 916% em 1994, ano do lançamento pelo presidente Itamar Franco,
para 22% em 1995 e 9,56% em 1996.
Para se ter uma dimensão do êxito do programa
de estabilização monetária, nos últimos 30 anos, a inflação anual no Brasil
ficou acima de dois dígitos em três ocasiões: em 2022, quando fechou em 12,53%;
em 2015, 10,67%; e em 2021, 10,06% — todos anos de crise. Debelada a inflação,
convenhamos que ninguém mais vai ser leniente com o risco de uma escalada dos
preços, mas o Brasil ainda convive com outros problemas, como baixo
crescimento, gritante desigualdade de renda e dificuldade para aprovar reformas
ou se tirar privilégios tributários de grupos atendidos em uma situação
emergencial (o que deveria ser temporário se tornou permanente).
Todos os problemas esbarram no controle das
contas públicas para que o endividamento não seja elevado a um nível que
ofereça aos investimentos em títulos do Brasil risco de inadimplência — ou
default, para usar um termo técnico do mercado financeiro. Aqui, há uma
complexidade tão grande quanto há 30 anos em relação à inflação. É um erro
imaginar que a responsabilidade sobre as contas públicas seja exclusiva do
Executivo, quando, na realidade, ela tem a ver também com o Legislativo, que
cria despesas a partir de benesses concedidas a grupos específicos ou impondo
ao Executivo um custo altíssimo da própria existência, com R$ 53 bilhões
destinados a emendas parlamentares, fora o orçamento do próprio Congresso
Nacional.
No Judiciário, por sua vez, há regalias que
não são dadas a nenhuma outra categoria de trabalhador da União. Fala-se em
cortar gastos quase como um mantra para um governo federal que tem orçamento
engessado por gastos obrigatórios e constitucionais e que, para reduzir
despesas, tem de diminuir de tamanho. Mas reduzir o Estado em uma sociedade com
alta desigualdade social é condenar uma parcela da sociedade a sobreviver com
menos recursos e serviços públicos.
O que deve ser cobrado é maior eficiência nos gastos — e não apenas do Executivo —, para que se saiba o que efetivamente está sendo desembolsado e para qual finalidade. Mais controle e mais transparência sobre esses gastos em um esforço, que é preciso repetir, não deve ser apenas do Executivo, mas de toda a União, incluindo os outros dois Poderes, de estados e municípios. É preciso que, assim como houve consenso para debelar a inflação, com benefício geral e custos apenas para alguns setores que se acostumaram a ganhar muito dinheiro com o giro do capital, todos estejam imbuídos no mesmo propósito.
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