João Vitor Costa, Madson Gama e Maria Fortuna / O Globo
Jornalista e escritor, que morreu na manhã deste domingo, também foi Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado
Sérgio Cabral nasceu em Cascadura, no
subúrbio do Rio. Mas em um bairro vizinho, Cavalcanti, que moldou sua
personalidade, onde aprendeu a soltar pipa e a jogar bola. De lá, a bordo dos
trens da chamada “linha auxiliar”, atual ramal de Belford Roxo, ele balançava
pelos trilhos para desbravar a cidade. Vascaíno e mangueirense, mas com apreço
pela Portela, ganhou o país como jornalista, escritor, compositor e
pesquisador. Empregou sua verve e seu intelecto para se tornar um defensor
(ferrenho!) da cultura carioca, além de um guardião da memória da Música
Popular Brasileira.
A carreira de jornalista começou em 1957,
como estagiário do Diário da Noite. O “foca” (como são chamados os repórteres
iniciantes) chamou a atenção ao resolver um problema. O então redator-chefe
João Rocha sofria para reduzir a chamada de uma matéria sobre a liberação de
verba do então presidente Juscelino Kubitschek para uma cidade de Minas Gerais,
após fortes chuvas. Escondido, Cabral fez o título “JK promete dar o que
temporal tirou” e colocou na mesa do chefe.
“Sou jornalista graças a este título”, relembrou ele em uma entrevista à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em 2008. “Ele (João Rocha) olhou aquilo espantado e perguntou quem tinha feito o título. Quando respondi que tinha sido eu, ele virou-se imediatamente para o Geraldo de Barros, secretário de redação, e indagou: ‘O Sérgio Cabral já foi registrado?’ Com a resposta negativa, sentenciou: ‘Então, registra amanhã!’”, contou Cabral à ABI.
O Sambista
O brilhantismo — que expressava com um jeitão
humorado e boêmio — estava evidente desde o começo. Um dos fundadores do jornal
O Pasquim, ele também trabalhou em veículos como o Jornal do Brasil e a Última
Hora. No GLOBO, entre as décadas de 1970 e 1980, assinou colunas e foi jurado
do Estandarte de Ouro. Sua relação com as escolas de samba, aliás, foi das mais
fiéis de suas muitas paixões. Era folião, mas também um estudioso que ajudou a
jogar luz sobre a manifestação popular. “Escolas de samba do Rio de Janeiro”
foi o primeiro de seus livros.
— Ele se dispôs a escutar grandes mestres da
oralidade, que construíram a história do carnaval e das escolas de samba, e
registrou tudo. Entrevistou grandes nomes que deram origem a tudo isso, como
Ismael Silva, Cartola, Silas de Oliveira, Bide e Mano Décio. O livro é crucial
— afirma o escritor e historiador Luiz Antônio Simas.
Não por acaso, Cabral viu a agremiação de seu
bairro, a Em Cima da Hora, homenageá-lo, em 1997. “Sérgio Cabral, a cara do
Rio” era o enredo, título que também nomeou um documentário sobre a vida dele,
de 2008. Amigo de Cabral, o músico e pesquisador Luiz Filipe de Lima lembra
ainda outra contribuição de seu parceiro em diversos trabalhos: foi um
incentivador da união dos diferentes segmentos do samba.
Luiz Filipe foi diretor artístico do musical
“Sassaricando – E o Rio Inventou a Marchinha”, que Cabral escreveu junto com a
historiadora Rosa Maria Araujo. Ele recorda bem do dia em que foi apresentado
ao projeto.
— Foi depois de almoçarmos no Esch Café, que
ficava na Rua do Rosário, no Centro. Ele amava fumar charuto. E, então, fumamos
durante a reunião, em que também estava Rosa Maria — relata. — Sérgio era um
cara muito festeiro, que recebia muita gente em casa. Fazia reuniões de
trabalho que sempre terminavam com comes e bebes. Piadista, no melhor sentido,
era capaz de extrair humor de situações não tão positivas.
Com esse estilo próprio, Cabral foi de amante
da música a compositor. Virou compositor de discos a convite de Martinho da
Vila. E foi autor de canções com parceiros como Rildo Hora. Juntos, os dois
escreveram músicas como “Janelas Azuis”, “Visgo de Jaca”, “Velha-Guarda da
Portela” e “Os Meninos da Mangueira”.
O biógrafo
Já como escritor, virou um dos mais
respeitados memorialistas da MPB. Publicou biografias como as de Tom Jobim,
Pixinguinha, Nara Leão, Grande Otelo, Ataulfo Alves e Elizeth Cardoso. Parte
das relíquias que acumulou ao longo da vida ele doou para o acervo do Museu da
Imagem e do Som (MIS). São impressionantes 61 mil itens, incluindo quatro mil
fotografias, muitas com registros do percurso da música brasileira no século
XX, do choro ao jazz, passando por invenções cariocas como o partido-alto.
Enquanto circulava por salões e outros
redutos da música — e muito antes de seu filho, que também carrega o nome
Sérgio Cabral, tornar-se governador do Estado do Rio — , Cabral, o pai, também
mergulhou na política. Ele se candidatou para cargos eletivos na década de
1980. Foi vereador na capital fluminense entre 1983 e 1993, pelos partidos PSDB
e MDB. Depois, ocupou o cargo de conselheiro do Tribunal de Contas do Município
do Rio, onde permaneceu até 2007.
Já fora da vida política, na década seguinte,
Cabral não gostava de falar sobre os escândalos de corrupção relacionados a seu
filho.
— Ele se fechou muito com relação a isso e
não comentava nada. E os amigos, evidentemente, não tinham interesse em
reverberar esse tipo de assunto com ele — revela Luiz Filipe de Lima.
Com Alzheimer, há três meses Sérgio Cabral estava internado na Clínica São Vicente, na Zona Sul do Rio. Com complicações de um enfisema pulmonar, ele não resistiu e morreu ontem. “Peço que orem por ele, pela alma dele. Por tudo o que ele fez no Rio de Janeiro e no Brasil. Pela música e pelo futebol, pela família linda que ele construiu”, escreveu Sérgio Cabral, o filho, nas redes sociais. Ele deixa outros dois filhos e a esposa, Magaly Cabral. O velório acontecerá hoje, na sede náutica do Vasco da Gama, na Lagoa, das 8h às 12h, informou a família.
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