quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Assis Moreira - Superávit com os EUA e pressões à frente

Valor Econômico

No confronto entre Kamala Harris e Donald Trump não há muita margem de dúvida de que o próximo ocupante da Casa Branca continuará com ações unilaterais; republicanos e democratas adotaram posturas mais protecionistas em relação ao comércio nos últimos anos

O Brasil caminha para ter neste ano o primeiro superávit comercial com os Estados Unidos desde 2009. Entre janeiro e julho, as exportações de bens para o mercado americano cresceram 12,3% e as importações aumentaram apenas 0,3%. O déficit brasileiro na balança comercial bilateral caiu para US$ 323,8 milhões no período, alimentando expectativa de uma revirada até dezembro. Nos últimos 14 anos (2009-2023), o Brasil comprou dos EUA US$ 88 bilhões a mais do que vendeu para os americanos (sem levar em conta o setor de serviços). Os EUA só conseguiam ter algum saldo comercial importante com Austrália, Holanda, Hong Kong e Brasil.

Agora o provável resultado positivo para o Brasil vai coincidir com a campanha eleitoral nos EUA e com tempos preocupantes para o comércio global. Em meio às tensões geopolíticas e ao pano de fundo da crise climática, “vemos um aumento do protecionismo e medidas políticas unilaterais”, constata a diretora-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Ngozi Okonjo-Iweala. “Os dados sugerem que, após anos de conversas sobre ‘decoupling’, o comércio pode estar começando a se fragmentar ao longo de linhas geopolíticas.”

No confronto entre Kamala Harris e Donald Trump não há muita margem de dúvida de que o próximo ocupante da Casa Branca continuará com ações unilaterais. Republicanos e democratas adotaram posturas mais protecionistas em relação ao comércio nos últimos anos. Está distante o tempo em que político americano defendia “livre-comércio”. Washington alega que não há um campo nivelado de jogo. Reclama que alguns países subsidiam fortemente sua produção, a começar pela China. E que parceiros não dão reciprocidade ao que considera abertura comercial americana, que suas tarifas de importação são muito baixas enquanto as de países como o Brasil e a Índia e são muito altas. E a maneira de equilibrar o jogo é impor barreiras. Em meio à noção de classe média sob pressão, menor qualidade do emprego, remuneração mais baixa, o foco é trazer de volta a produção para os EUA, talvez um pouco para os vizinhos Canadá e México, mas com controle.

A política comercial americana foi uma das áreas que tiveram menos inflexão na passagem de Trump para Biden na Casa Branca. Biden ampliou certas tarifas contra a China e turbinou a política industrial com centenas de bilhões de dólares de subsídios, que têm efeito no resto do mundo.

A expectativa em círculos do governo, em Brasília, é que, se Kamala ganhar a eleição, dará continuidade à política comercial de Biden. Pode ir mais longe na vinculação entre políticas comerciais e climáticas, reforçando o protecionismo por esse lado.

No caso de vitória de Trump haverá um evidente acirramento do protecionismo e das tensões comerciais. Quando ocupou a Casa Branca, Trump impôs o maior aumento nas tarifas dos EUA desde a Grande Depressão, atingindo a China, o Canadá, a União Europeia, o México, a Índia e outros governos, numa ação que sofreu retaliação dos parceiros. Agora, promete aumentar ainda mais sua guerra comercial. Segundo o jornal “The New York Times”, o republicano prevê tributar talvez dez vezes mais as importações do que fez durante seu primeiro mandato, podendo desencadear uma nova guerra comercial que aumentaria os preços já altos e mergulharia os EUA em uma recessão.

Durante sua Presidência, Trump falava de reciprocidade e comparava a tarifa de 2,5% sobre veículos nos EUA às taxas de 10% na União Europeia e de 25% na China. Mas a reciprocidade que ele parece querer agora não é que os outros baixem alíquotas, e sim que os EUA aumentem as suas. Para o republicano, tarifa de importação é coisa boa por três motivos: aumenta a arrecadação do governo, é excelente maneira de negociar e promove os empregos nos EUA. Ignora efeitos pesados, como a inflação.

O diretor do Departamento de Política Comercial do Itamaraty, embaixador Fernando Pimentel, monitora propostas de políticas comerciais em vista tanto do impacto bilateral, como também dos efeitos colaterais que podem ter sobre importações brasileiras de terceiros mercados.

Basta ver que o comércio bilateral entre os EUA e a China cresceu 30% mais lentamente desde 2018 do que seu comércio com o resto do mundo. Uma preocupação é com o potencial impacto de pressão de importações para o Brasil à medida que grandes mercados como os EUA se fecham mais. Isso aumenta a pressão da China e outros exportadores asiáticos em busca de mercados que estão mais ou menos abertos, para vender mais aço, veículos elétricos, têxteis e outros.

Além disso, uma “política transacional” de Trump, forma de coação americana para que os parceiros comprem mais produtos americanos e evitem sanções unilaterais, pode deslocar produtos agrícolas brasileiros em outros mercados, com parceiros se comprometendo a privilegiar produtos americanos a fim de preservar certo acesso ao mercado dos EUA.

E se o superávit comercial do Brasil com os EUA se confirmar nos próximos meses, mantê-lo vai ser um desafio adicional, em meio a mais pressões para abrir mais seu mercado. Washington já não cessa de cobrar de Brasília eliminar a tarifa de 20% na importação de etanol, por exemplo.

Para Roberto Azevêdo, ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), as agendas climática e ambiental podem sofrer ajustes e estar sujeitas a ruídos, mas sobreviverão aos ciclos eleitorais. Sem regras internacionalmente acordadas sobre esses temas e sem foros intergovernamentais efetivos, o unilateralismo seguirá proliferando, diz ele. Azevêdo vê um cenário desafiador para o Brasil em meio a mais protecionismo na cena global, mas também oportunidades. Acha que o país pode ter papel-chave na descarbonização global. E que tudo dependerá de visão estratégica consensuada entre os setores público e privado e políticas públicas que incentivem e viabilizem os investimentos necessários.

 

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