Mensagens de assessores de Moraes são embaraço ao STF
O Globo
Episódio desperta no mínimo controvérsia
jurídica e impõe resgate de ambiente de normalidade
Não resta dúvida sobre o papel fundamental para a defesa da democracia brasileira que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), desempenhou quando presidiu o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições de 2022. Suas decisões contribuíram para garantir o direito ao voto e para repelir uma tentativa de golpe depois das eleições. Causam, portanto, preocupação as mensagens trocadas por seus assessores reveladas nesta semana pelo jornal Folha de S.Paulo.
Para muitos, elas sugerem que ritos jurídicos
foram atropelados ao longo de investigações para debelar a disseminação de
desinformação durante o período eleitoral. Ressaltam que, em algumas, os
próprios assessores manifestam constrangimento diante de atalhos na troca de
informações entre TSE e STF, onde Moraes também comandava inquérito sobre
desinformação. Em resposta, o gabinete dele informou que “todos os
procedimentos foram oficiais, regulares e estão devidamente documentados nos
inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da
Procuradoria-Geral da República”.
Desde já, o episódio desperta uma
controvérsia jurídica a respeito do alcance do poder do TSE durante as
eleições. É verdade que, em nome da agilidade necessária para coibir fraudes, a
Justiça Eleitoral não está sujeita às mesmas exigências processuais que a
Justiça comum. Em tese, um juiz eleitoral pode tomar providências sem ser
provocado pelas partes afetadas, assim que constatar uma irregularidade. Pela
lei, dispõe até de poder de polícia para fazer cessá-la se julgar adequado. Foi
o que defenderam ontem o presidente do STF, Luís Roberto
Barroso, o decano Gilmar Mendes, o procurador-geral Paulo Gonet e o
próprio Moraes.
Os ministros asseveraram que as atitudes
reveladas nas mensagens trocadas pelos assessores não configuram abuso desse
poder e que não há incompatibilidade entre as diferentes funções desempenhadas
por Moraes na ocasião: presidente do TSE e ministro do STF conduzindo
inquéritos correlatos, que ele próprio julgava. “Seria esquizofrênico eu, como
presidente do TSE, me auto-oficiar”, disse Moraes. Não é um argumento
definitivo, porém: a Justiça requer formalidades para ser bem servida.
Seja como for, depois das mensagens, haverá
um debate jurídico salutar sobre se Moraes agiu corretamente ou se usou o poder
de polícia de que dispunha no TSE para dirigir os inquéritos no Supremo contra
seus críticos, misturando indevidamente os papéis de investigador, acusador e
julgador. Os próximos dias deixarão tudo mais claro.
Independentemente dos desdobramentos do
episódio, ele demonstra mais uma vez a necessidade premente de o Judiciário
abandonar seu ímpeto combativo e adotar uma postura de comedimento em suas
ações, de modo a resgatar o clima de normalidade no país. Se cometer exageros
mesmo em nome do combate à ameaça antidemocrática já é condenável, eventuais
abusos se tornam ainda mais perniciosos quando não há mais ameaça alguma.
Graças em boa parte ao papel que o próprio Moraes desempenhou na defesa da
democracia, o momento agora é outro — e ele, mais que ninguém, deveria entender
isso.
Violência contra crianças e jovens exige
atenção maior do Estado
O Globo
Relatório constata um estupro a cada dez
minutos e quase 15 assassinatos por dia na faixa etária até 19 anos
É perturbador o relatório sobre violência
sexual e letal contra crianças e adolescentes de até 19 anos no
Brasil, divulgado na terça-feira pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)
e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Entre 2021 e 2023, o país
registrou 164.199 estupros de jovens e crianças, praticamente um a cada dez
minutos, diz o relatório. E, ainda segundo o estudo, 15.101 brasileiros nessa
faixa etária foram mortos no mesmo período, ou quase 15 por dia. É preciso
conter esse horror.
Tão preocupante quanto os números é o fato de
os crimes sexuais crescerem. Em 2021, foram registrados 46.863 estupros; em
2022, 53.906; no ano passado, 63.430. Em 2023, o aumento aconteceu em todas as
faixas etárias, mas foi mais significativo nas mais vulneráveis, que reúnem
crianças de até 4 anos (23,5%) e entre 5 e 9 anos (17,3%). Tais crianças, diz o
relatório, são muitas vezes incapazes de compreender a violência cometida.
Mais chocante é saber que os números
representam apenas parte da realidade, uma vez que a subnotificação de crimes
sexuais costuma ser alta, por vergonha, por medo de denunciar ou de ameaças. O
próprio relatório cita estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea) segundo a qual apenas 8,5% das ocorrências de estupro são levadas às
autoridades.
Também em relação às mortes violentas
envolvendo crianças, adolescentes e jovens, os dados são desanimadores. O fato
de ter havido ligeira redução entre 2022 e 2023 (de 5.354 mortes para 4.944)
não torna o panorama melhor. Diferentemente do que acontece nos casos de
estupro, que atingem crianças mais novas, quase todas as mortes violentas
afetam adolescentes de 15 a 19 anos (92%). São principalmente meninos (90%) e
negros (83%). “A criança negra corre mais risco de ser vítima de homicídio
desde que nasce, em comparação com a criança branca”, disse ao GLOBO a diretora
executiva do FBSP, Samira Bueno. Também chama a atenção que 16% dessas mortes
violentas tenham acontecido em ação das forças policiais.
Os números vergonhosos sobre a violência que
atinge crianças e adolescentes deveriam levar autoridades públicas a agir. A
maior parte dos casos de estupro acontece dentro de casa, e em geral os autores
fazem parte do círculo íntimo das vítimas. Mas o Estado não pode se omitir na
tarefa de proteger os vulneráveis. Mais do que nunca, é preciso estender-lhes a
mão. E não pode fazer vista grossa para a calamidade dos jovens perdidos para a
violência. É uma lástima ver o futuro do Brasil ter esse fim.
Consumo fraco e risco de deflação desafiam a
China
Valor Econômico
Crescimento não está ameaçado a curto prazo, mas se a deflação se instalar, Pequim terá um dos problemas mais sérios que já teve de enfrentar
A China tem a meta de crescer 5% este ano,
pode não atingi-la por pouco e mesmo assim continuará sendo um dos países de
maior expansão do mundo. Os líderes chineses, no entanto, sabem que a economia
enfrenta problemas nada triviais. O país enfrenta uma espiral negativa de
crédito, consumo, ingresso de capital externo e valor dos imóveis. Vários
setores estão com excesso de capacidade de produção, e o índice de preços ao
consumidor ruma para a deflação - foi de -0,2% em junho na comparação com o
mesmo mês de 2023.
O Comitê Central do PC chinês fez sua
plenária quinquenal em meados de julho e traçou diretrizes para o futuro, que
seguirão a orientação do líder supremo Xi Jinping, de buscar “novas forças
produtivas de qualidade”, o que significa perseguir a modernização industrial
para subir na escala tecnológica. Ainda assim, os 363 membros do comitê
dirigente não deixaram de apontar que a China corre “riscos em áreas chaves: no
setor imobiliário, na debilidade dos governos locais e nas instituições
financeiras de pequeno e médio porte”. Há um fio condutor dessas dificuldades:
o estouro da bolha imobiliária, que afetou um setor no passado responsável por
um quarto do PIB de US$ 17,7 trilhões.
Os preços de novos imóveis continuam caindo -
em junho declinaram 4,5%, a construção de residências caiu 10,1% no primeiro
semestre e os investimentos no setor encolheram 23,7%. Os governos locais
sentiram forte impacto por deixarem de contar com uma de suas maiores fontes de
receita, a venda de terrenos para as incorporadoras - as maiores faliram ou
encontram-se em sérias dificuldades. Um dos planos postos em prática por Pequim
foi financiar a compra dos imóveis encalhados pelos governos locais - US$ 40 bilhões
foram alocados em maio recentemente com essa finalidade -, mas isso não surtiu
muito efeito, pelo menos até agora. Analistas chineses e externos dizem que os
estímulos dados até agora são muito tímidos para fazer a diferença.
A arma tradicionalmente usada para combater
crises pela China são as grandes injeções de liquidez, que agora, no entanto, o
governo reluta em fazer, para não dar sobrevida a uma bolha indesejada no setor
imobiliário e seu surgimento em outros setores. O governo tem impedido a ruína
de incorporadoras saudáveis, com apoio seletivo e crédito renovado por bancos
estatais, e tem agido, com redução dos juros de hipotecas, para incentivar as
compras, que continuam caindo. Pelo menos dois terços da poupança dos lares
chineses está nos imóveis, e sua derrocada provocou outra, a da confiança dos
consumidores.
Depois da plenária, o Politburo, núcleo
dirigente do partido e do Estado, sob comando de Xi, indicou que há mais
medidas de reativação por vir. O diagnóstico é que a demanda doméstica é
“insuficiente” e que “o foco da política econômica tem de mudar para beneficiar
o povo e promover o consumo”. O caminho é “aumentar a renda do povo por
múltiplos canais”.
A China cresceu 4,7% no segundo trimestre,
abaixo da meta, e há mais sinais de fraqueza na economia. A média quinquenal de
crescimento será de 4,64% ao fim de 2024, ante 6,7% em 2019. As vendas no
varejo fraquejaram em junho e atingiram 2%. A demanda doméstica fraca deu
enorme impulso às exportações - US$ 900 bilhões no segundo trimestre, mais de
50% acima do período pré-pandemia - e derrubou importações (-2,3%). Como
reflexo da desaceleração econômica, os novos empréstimos bancários em julho
declinaram ao mais baixo nível em 11 anos.
Com os preços ao produtor em queda por meses
a fio (-0,8% em julho), e capacidade de produção acima da demanda atual, a
China tem exportado deflação para o resto do mundo. Não é uma má notícia para o
combate à inflação empreendido pelos bancos centrais ao redor do mundo, mas
está sendo recebida com uma saraivada de sobretarifas em vários produtos, de
carros elétricos na Europa e Estados Unidos a aço no Brasil. O ritmo das
exportações, com isso, está desacelerando.
Além disso, a China enfrenta um desafio mais
grave, sua disputa com os EUA pela hegemonia tecnológica. As tarifas
generalizadas impostas no governo Trump foram mantidas ou ampliadas por Joe
Biden, e as exportações chinesas para os EUA, que chegaram a 25% do total
comprado pelos americanos, caíram a pouco mais da metade.
A modernização industrial pretendida
aumentará a oferta, mas o país tem deficiência de consumo. Com excesso de
oferta e baixa procura, os preços estão caindo, elevando os riscos de deflação.
A pressão baixista atingiu os bônus do país, que rendem 2,1% (o de 10 anos).
Xi pretendia mudar o modelo exportador e de
alta taxa de investimentos (e alta poupança) por outro de fortalecimento de
mercado e consumo domésticos. A crise dos imóveis dificultou a tarefa, não
consumada até agora. Os juros foram reduzidos e é possível que mais estímulos
para melhorar as condições sociais e de crédito para as camadas médias e pobres
estejam a caminho. O crescimento não está gravemente ameaçado a curto prazo,
mas se a deflação se instalar, Pequim terá um dos problemas mais sérios que já
teve de enfrentar.
Ordem informal fere devido processo legal
Folha de S. Paulo
Moraes e estafe eram origem não explícita de
ordens para TSE investigar alvos que seriam objeto de sanção do magistrado
As revelações
desta Folha acerca de procedimentos informais envolvendo
o ministro Alexandre de
Moraes e seu estafe em investigações presididas por ele
deveriam merecer rigorosa atenção pública.
Trata-se de um desdobramento da inaudita
concentração de poder em um mesmo magistrado, como ocorre no heterodoxo e
interminável inquérito das fake news.
As mensagens obtidas pela reportagem mostram
um fluxo alheio às formalidades exigidas na comunicação estratégica entre o
gabinete de Moraes no STF e o
órgão do Tribunal Superior Eleitoral responsável pelo combate à desinformação.
Em nome do ministro, por um aplicativo de
mensagens, um de seus assessores no Supremo fazia demandas ao chefe do serviço
do TSE sobre
aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), alvos do inquérito que tramita,
sob a chefia do ministro, na corte constitucional.
O servidor da Justiça
Eleitoral então confeccionava relatórios que, remetidos ao
Supremo, sustentaram medidas de força decretadas por Moraes, como bloqueios de
contas em redes sociais e multas. A verdadeira origem dos pedidos de
investigação —o próprio gabinete de Moraes— não consta dos laudos produzidos no
TSE. Não foram investigações espontâneas, e isso deveria estar claro nos autos.
O caráter esdrúxulo do mecanismo informal não
escapou aos interlocutores. Numa conversa, o assessor do STF sugere mudar a
conduta para que a manobra não soasse descarada. Tampouco se disfarçou o
incômodo diante de pedidos específicos do ministro que não eram encontrados nas
redes. A orientação
para um desses casos foi a de recorrer à criatividade.
Não estão em questão a boa-fé de Alexandre de
Moraes nem a obtusidade da ala do bolsonarismo que flertou com a ruptura
institucional. Discutem-se os meios utilizados para enfrentar a ameaça, real.
À diferença das autocracias, o Estado
democrático de Direito não pode abrir mão do caminho regular e transparente
para perseguir os seus objetivos. Não deveria haver poder nas sombras,
ilimitado.
A imagem de um juiz que, mediante ordens
informais, escolhe os alvos que depois serão atingidos pela sua caneta conflita
com o cânone clássico das liberdades civis.
É uma pena que, por espírito de corpo,
colegas de Moraes tenham se apressado a conceder-lhe um novo salvo-conduto. Há
acusados e investigados que poderão, com base nas informações que vêm sendo
levantadas pelo jornalismo profissional,
solicitar a nulidade de provas ou a reversão de decisões.
Já sabem que contarão com a antipatia do
tribunal que deveria zelar pelas prerrogativas fundamentais dos brasileiros,
entre as quais fulgura o devido processo legal.
Presentes na lei
Folha de S. Paulo
Norma para bens dados a presidentes deve ser
mais objetiva para evitar casuísmos
É correto que o recebimento de presentes por
servidores públicos seja regulado. Estão em jogo um eventual viés em decisões
tomadas e a credibilidade das instituições. Como a proverbial mulher de César,
o funcionário do Estado precisa ser e parecer honesto.
No Executivo federal, a normatização se dá
pelas leis 8.112/1990, que estabelece o regime jurídico dos servidores civis, e
12.813/2013, que disciplina conflitos de interesse, além de decretos e
resoluções que as regulamentam.
Em relação à Presidência da República, apesar
de o diploma 8.394 de 1991 —que foi
reformulado posteriormente por outros governos e por acórdão do
Tribunal de Contas da União— reger o tema, ainda há interpretações
conflitantes.
Exemplo disso são os casos do relógio de ouro
recebido por Luiz Inácio Lula da
Silva (PT)
em 2005 e das joias dadas a
Jair Bolsonaro (PL) pela Arábia Saudita —e omitidas à Receita Federal—
em 2021.
O TCU determinou
a devolução das joias sauditas à Secretaria-Geral da Presidência da República
em março de 2023. No começo deste mês, entretanto, decidiu que
Lula pode ficar com o relógio.
Segundo resolução do tribunal de 2016,
presentes recebidos em cerimônias com chefes de Estado constituem patrimônio
público, exceto itens considerados de natureza personalíssima. As joias não
foram enquadradas nessa exceção, mas o relógio, sim.
Não à toa, na segunda (12), a defesa de
Bolsonaro entrou com pedido de arquivamento do caso das joias no Supremo
Tribunal Federal.
A lei é clara ao estipular que servidores
públicos só podem receber presentes no valor de até R$ 100 e desde que sejam
oferecidos somente uma vez a cada 12 meses.
Não há motivo para que a regulamentação do
alto escalão, como a Presidência, ainda seja passível de interpretações
subjetivas.
O Brasil não vai acabar com a troca de
presentes entre chefes de Estado —prática que remonta à Antiguidade. Mas é
necessário definir de forma objetiva (com valores ou procedimentos fixados) e
estável (sem mudanças casuísticas de entendimento) o que é bem público e o que
pertence ao mandatário.
A cisma de Moraes é a tragédia da República
O Estado de S. Paulo
As encomendas do ministro ao TSE expõem o
voluntarismo que tem sido naturalizado no STF em nome da defesa da democracia.
Os inquéritos intermináveis e secretos precisam ser encerrados
Segundo mensagens de funcionários do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF) obtidas pela Folha
de S.Paulo, o ministro do STF e à época presidente do TSE, Alexandre de Moraes,
teria ordenado extraoficialmente a produção de relatórios por parte do TSE para
embasar suas decisões no Inquérito das Fake News. As mensagens sugerem ainda
que Moraes teria pedido ajustes nos relatórios. É prudente aguardar a
divulgação integral das mensagens antes de tirar conclusões definitivas. Mas esse
tipo de heterodoxia procedimental é compatível com as irregularidades que
maculam os inquéritos das fake news e milícias digitais conduzidos
por Moraes.
Inquéritos têm de ter prazo para acabar, ser
transparentes e ter objeto determinado. Mas esses conduzidos por Moraes são
prorrogados há anos. Sob a justificativa da excepcionalidade e interpretações
extravagantes sobre a competência da Corte, eles já motivaram censuras,
bloqueios de contas, quebras de sigilos, multas exorbitantes e prisões
preventivas cuja legalidade não pôde ser verificada, porque correm sob sigilo.
Além de secretos e intermináveis, os inquéritos são tentaculares, e já foram
empregados para fins tão disparatados como a censura a empresas durante a
tramitação do Projeto de Lei das Fake News até a investigação da falsificação
do cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro.
A propósito dos relatórios do TSE, em
princípio não há ilegalidade no fato de um de seus juízes tomar providências
investigativas, mesmo sem ser provocado, uma vez que o Tribunal tem poder de
polícia. No entanto, alguns dos relatórios não tinham relação direta com as
eleições e foram produzidos fora do período eleitoral. Em outros momentos no
decorrer dos inquéritos, houve irregularidade flagrante na acumulação por
Moraes das funções de investigador, acusador, juiz e vítima, como quando abriu
inquérito contra Elon Musk com base em críticas do empresário.
As encomendas ao TSE, se não são ilegais, são
no mínimo esquisitas. Por que ignorar os ritos para, aparentemente, simular uma
provocação espontânea por parte do Tribunal? O desconforto dos envolvidos é
evidente. “Formalmente, se alguém for questionar, vai ficar uma coisa muito
descarada”, diz o juiz instrutor do gabinete de Moraes no STF, Airton Moreira,
ao chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação, Eduardo
Tagliaferro. “Como um juiz instrutor do Supremo manda (um pedido) pra alguém lotado
no TSE e esse alguém, sem mais nem menos, obedece e manda um relatório,
entendeu? Ficaria chato.”
O que ficou mais “chato” foram os objetos das
denúncias. Uma delas inclui duas postagens do jornalista Rodrigo Constantino.
“O que se passava na cabeça de Gilmar Mendes na festa da impunidade ontem,
festejando a nomeação de Lula pelo sistema?”, diz uma. E a outra: “É a primeira
vez na história do crime organizado que as vítimas assistem, em tempo real, a
quadrilha se preparando para lhes roubar, conhecem os criminosos, e não podem
fazer nada porque a Justiça a quem poderiam recorrer faz parte da quadrilha”.
Moraes ordenou a quebra de sigilo bancário de
Constantino e o cancelamento de seu passaporte, bloqueio de suas redes sociais
e intimações para que fosse ouvido pela Polícia Federal. De fato, como disse o
ministro em sua nota, o TSE “tem competência para a realização de relatórios
sobre atividades ilícitas, como desinformação, discursos de ódio eleitoral,
tentativa de golpe de Estado e atentado à Democracia e às Instituições”. Mas é
esse tipo de crítica a políticos e juízes, plenamente assegurada pela Constituição,
que o ministro entende por “atentado”?
Quem mais está sendo investigado nos
inquéritos e por quê? Ninguém sabe, e o País não pode ficar a depender de
áudios vazados para saber. A julgar pelas mensagens dos assessores de Moraes,
somos todos autorizados a crer que a justificativa para essas investigações é a
sua “cisma”. Já passou da hora de esses inquéritos virem a público e serem
encerrados. Não se defende o Estado Democrático de Direito fazendo pouco-caso
das regras e dos ritos do Estado Democrático de Direito.
Muito emprego, pouca produtividade
O Estado de S. Paulo
Bom momento do mercado de trabalho precisa
ser acompanhado por ganho de produtividade, que em 2023 foi de R$ 41 por hora
trabalhada, mesmo valor de 2012; paralisia impede crescimento
Em 2023 a produtividade no Brasil se traduziu
em R$ 41 por hora gerados por cada trabalhador, exatamente o mesmo valor de
2012, como constatou o Observatório da Produtividade Regis Bonelli, da Fundação
Getulio Vargas (FGV). Essa paralisia explica por que os bons resultados
recentes do mercado de trabalho – a começar pela taxa de desemprego de 6,9% no
trimestre encerrado em junho, a mais baixa em 10 anos – ganham destaque mais
como ameaça inflacionária do que como um sinal de crescimento econômico.
Desde o fim do ano passado o mercado de
trabalho brasileiro acumula boas notícias, com recorde da população ocupada,
que já passa de 101 milhões, recuo histórico de desocupados e aumento do
rendimento e do emprego com carteira assinada. Os monitoramentos do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério do Trabalho
mostram os ganhos, resultado de inúmeros fatores, como a reforma trabalhista,
que facilitou a terceirização, mas ainda sem um equivalente avanço da
produtividade.
De 2012 a 2023 houve leves flutuações no
valor/hora da produtividade nacional, como a queda verificada até a recessão de
2015-2016 e a recuperação que veio logo a seguir. Mas durante todo esse período
o Brasil patinou, sem conseguir mudar de patamar. A única grande variação, um
salto isolado em 2020, ocorreu como consequência deplorável da pandemia, quando
trabalhadores menos qualificados foram excluídos do mercado e setores menos
produtivos sofreram baixas significativas. O resultado da equação foi o aumento
artificial da produtividade.
Ao longo das últimas décadas, o aumento da
escolarização tem contribuído para elevar o padrão no mercado de trabalho. Nos
anos 1990, dois terços da mão de obra não tinham sequer o fundamental completo;
hoje, dois terços têm nível médio e superior incompleto. Mas a evolução tem
sido lenta demais para as necessidades do País. Sem contar que esse é apenas um
dos aspectos definidores da produtividade.
A produtividade está relacionada à
eficiência, tempo de produção e qualidade do que é produzido, fatores que são
afetados diretamente pela competição no mercado interno e externo. A visão
protecionista que predomina em políticas setoriais de distribuição de subsídios
e reserva de mercado, por exemplo, tende a premiar a ineficiência e reduzir a
competitividade.
Medidas protecionistas são relativamente
comuns no mundo, mas, quando chegam a ponto de emperrar a competição, resultam
em economias fechadas e com baixa produtividade, como ocorre no Brasil. A
reprovável política de conteúdo local, tão ao gosto do atual governo, é um
exemplo de como minar a capacidade nacional de competir. O aumento de
produtividade requer escala, conhecimento, qualificação e segurança para
investir.
Sendo assim, cabe destacar o quanto a
política fiscal pesa também na produtividade das empresas. A incerteza em
relação às contas públicas deteriora o ambiente de negócios a ponto de
comprometer o crescimento. A mudança do teto de gastos pelo arcabouço fiscal,
cercada de desconfianças no começo, foi ao final bem recebida, mas o novo
regime para as contas federais, mal completou um ano, exibe fragilidades que
afastam o investimento.
O ganho de escala favorece a produtividade,
mas para investir no crescimento é preciso um mínimo de previsibilidade
econômica. Em 2023, de acordo com dados do Observatório da Produtividade da
FGV, a produtividade por hora trabalhada inverteu a queda de 2022, mas foi um
ganho concentrado nos recordes do agronegócio, o que sugere que pode ter sido
temporário. A formalização dos postos de trabalho pode trazer ganhos
duradouros.
Para que a economia não continue avançando de
forma errática, é preciso combinar o bom momento do mercado de trabalho com
medidas que, de fato, proporcionem segurança para o investimento. A anunciada
Nova Indústria Brasil, defendida pelo governo, pode ser um instrumento, desde
que não se baseie em premissas que tão somente atendam a lobbies poderosos nem
em proteção desmedida que dispense a busca por mais produtividade.
Benefício social deve ser revisto
O Estado de S. Paulo
Pente-fino no BPC seria mais eficiente se
acompanhado de mudanças no reajuste do benefício
Um dos principais fatores de pressão que
levaram ao bloqueio orçamentário neste ano, o Benefício de Prestação Continuada
(BPC), pago a idosos pobres e pessoas de qualquer idade com deficiência grave,
está passando por rigoroso pente-fino para detectar irregularidades. O governo
estima que a correção de eventuais desvios leve a uma economia de gastos de R$
47,3 bilhões de 2025 a 2028 e de R$ 6,6 bilhões já no Orçamento de 2025. Mesmo
assim, as despesas com o benefício devem chegar a R$ 112,8 bilhões no ano que
vem e a R$ 140,8 bilhões em 2028, pelas projeções oficiais.
As cifras vultosas expõem o peso alcançado
pelo BPC nos gastos públicos e alertam para a urgência de duas providências
básicas. A primeira é a que já está sendo tomada, de elevar o controle sobre a
concessão do benefício para evitar fraudes ou mesmo erros de avaliação. E que
não sejam operações circunstanciais, como a do pente-fino atual, mas um
monitoramento regular e sistemático para garantir que o direito seja concedido
a quem realmente faz jus.
A segunda diligência, mais delicada e árdua,
é adotar para o BPC uma política de reajuste diferente da usada para a
aposentadoria do INSS, desvinculando-o da fórmula de reajuste do salário
mínimo. Não se trata de crueldade, mas de bom senso – afinal, BPC não é
aposentadoria, mas um direito constitucional para garantir o sustento de
pessoas acima de 65 anos em situação de vulnerabilidade, ainda que não tenham
contribuído para a Previdência ou mesmo que não tenham exercido nenhuma
atividade remunerada.
Até por uma questão de justiça com quem
contribuiu durante toda a vida economicamente ativa, seria prudente a
diferenciação entre o BPC e a aposentadoria, inclusive como forma de estimular
o pagamento de tributos previdenciários. Ademais, como qualquer benefício não
contributivo, a ampliação da base de beneficiários do BPC pressiona de forma
ainda mais intensa o descompasso entre receitas e despesas.
E o que tem sido constatado nos últimos anos
é o aumento acelerado de beneficiários do BPC, tanto idosos quanto pessoas com
deficiência. Como mostrou o economista Raul Velloso, especialista em contas
públicas, em artigo recente publicado no Estadão, a média móvel do número
de requerimentos para idosos saltou de 20 mil em 2020 para um pouco acima de 40
mil mensais em 2024. No caso dos requerimentos para pessoas com deficiência, as
médias móveis também começaram a crescer em 2021, mas já estão ao redor de 40 mil,
chegando a 120 mil. Ambas são progressões difíceis de explicar.
Velloso chama a atenção de que, para idosos, o BPC “é um benefício tão fácil de ser concedido como de ser fraudado”, o que não deveria ocorrer com os benefícios por deficiência física ou mental, cuja concessão segue uma burocracia mais complexa. Diante da evolução vertiginosa dos números de pedidos, a revisão promovida pelo INSS parece tardia. Ainda que seja notório o envelhecimento da população brasileira, nem uma explosão demográfica explicaria tamanho crescimento na concessão dos benefícios.
Violência ameaça o futuro do Brasil
Correio Braziliense
Não há como banalizar as agressões e mortes
da parcela da sociedade — crianças e adolescentes — que tanto é decantada como
a geração do futuro. Mantido o atual compasso, o futuro da nação está sob grave
ameaça
A barbárie não é obra exclusiva do crime
organizado, dos milicianos ou daqueles que tentam eliminar, ou subjugar os
menos favorecidos. Crianças e adolescentes têm sido vítimas constantes da
violência no Brasil tanto das quadrilhas quanto das forças de segurança pública
e de integrantes das famílias. Mais uma vez, pretos e pardos são os mais
agredidos e mortos.
Nos últimos três anos, 165 mil brasileiros
entre 0 e 19 anos, de ambos os sexos, foram vítimas de violência sexual. Na
mesma faixa etária, 15 mil tiveram a vida ceifada de forma violenta em igual
período. Os dados, divulgados nesta terça-feira, são do relatório
Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil,
elaborado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Em 2023, a cada oito minutos, uma criança ou
adolescente foi vítima de estupro. As crianças (bebês) com menos de um a
9 anos somaram mais de 35% das agredidas — no ano passado, nessa faixa
etária, 22.930 pequeninos foram violentados. Os abusadores não poupam os
meninos. Entre 2021 e 2023, 20.575 crianças e adolescentes do sexo masculino
foram estuprados no país.
No recorte raça/cor, o racismo se destaca no
cenário da violência letal. Nos últimos três anos, 91,6% das vítimas eram
jovens entre 15 e 19 anos. Desse total, 82,9% eram pretos e pardos, sendo 90%
do sexo masculino. Ainda no mesmo período, as intervenções policiais elevaram o
número de óbitos de crianças e adolescentes de 10 a 19 anos por meio violento.
Em 2021, as ações da polícia foram responsáveis por 14% das mortes; em 2022,
17,1%; e, em 2023, 18,6%. Resultado: uma em cada cinco crianças e adolescentes foi
morta nas intervenções policiais.
Para a socióloga Samira Bueno,
diretora-executiva do FBSP , "é importante que haja um protocolo mais
claro das abordagens e do uso da força pelas polícias, tendo em vista que os
principais alvos são os jovens pretos e pobres da periferia". Em
relação à violência sexual contra crianças e adolescentes dentro de casa,
ela cobra do Estado investimento em educação sexual e criação de espaços
"para proteger essas crianças e defendê-las de seus
agressores".
O estudo oferece ao poder público e à
sociedade um receituário de providências que pode ser adotado para prevenir,
enfrentar e conter as diversas formas de violência. Convicta de que cada vida
de criança e adolescente é importante, qualquer pessoa que presenciar ou
suspeitar de que eles foram agredidos ou correm risco de morte deve denunciar
às autoridades, indica o texto. Em relação à agressividade policial, o
relatório sugere que haja protocolos, treinamento destinados à proteção de
meninos e meninas e maior rigor no controle do comércio e acesso de armas pelos
civis. Essa necessidade urge diante do aumento de morte de crianças e
adolescentes por arma de fogo, mas também para conter os feminicídios dentro
dos lares.
O quadro desenhado pelo relatório está incompleto. A solicitação de informações feita pelo FBSP às secretarias de segurança pública dos 27 estados não foram atendidas plenamente por Bahia, Minas Gerais, Goiás, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Ainda que haja lacunas a serem preenchidas, o panorama da violência no Brasil impõe aos governos federal, estadual e municipal ações mais efetivas e urgentes. Não há como banalizar as agressões e mortes da parcela da sociedade que tanto é decantada como a geração do futuro. Mantido o atual compasso, o futuro da nação está sob grave ameaça.
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