O Globo
É preciso encontrar um equilíbrio mais saudável entre a autonomia da administração pública e a fiscalização
A redemocratização brasileira gerou grandes
transformações institucionais, corporificadas na Constituição de 1988. O
objetivo do novo pacto constitucional era construir um Estado mais republicano
e voltado ao combate das enormes desigualdades sociais do país. Nesse processo,
houve o fortalecimento do controle e a ampliação das políticas públicas para
garantir os direitos de cidadania. Esses dois elementos se tornaram peça-chave
do sistema político-administrativo, mas está em jogo hoje o relacionamento entre
eles.
É inegável que o Brasil melhorou muito nas últimas décadas graças ao controle e às políticas públicas. De um lado, o Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público, os Tribunais de Contas e a Controladoria-Geral da União, cada qual de seu modo, foram fundamentais para combater a corrupção e aumentar a transparência da administração pública. De outro, a construção de um amplo Estado de Bem-Estar Social, com ramificação institucional nos três entes federativos, garantiu direitos que nunca tinham chegado à maioria dos brasileiros, como a universalização do ensino fundamental, a melhoria de vários indicadores básicos de saúde e a redução da pobreza.
Mas também há ainda vários desafios para
melhorar o sistema de controle e as políticas públicas. Um deles passa pela
relação entre estes dois polos, analisado por nós no livro “A batalha entre
controle e políticas públicas” (Amanuense, 2024). A atuação dos órgãos
controladores produz muitas vezes o que chamamos de “apagão das canetas”. Nele,
há dois efeitos: a paralisia decisória de quem é responsável pelos principais
programas governamentais e, como consequência mais profunda, a criação de um
caminho que só reforça e pune as baixas capacidades estatais de todos os níveis
de governo, especialmente no plano municipal.
Cria-se, assim, um círculo vicioso baseado na
assimetria de poder entre controle e políticas públicas, que ao final piora a
capacidade de os governos produzirem melhores resultados para os cidadãos. Os
mecanismos de controle que mais contribuem para esse fenômeno são a
judicialização excessiva e a proliferação de procedimentos que aumentam a
complexidade de processos burocráticos sem levar em conta as capacidades
instaladas em cada órgão ou nível de governo. Gera-se um punitivismo que não
muda estruturalmente a prática das políticas públicas.
Obviamente é preciso combater a corrupção e
tudo o que lese a sociedade. Porém, por muitas vezes, o controle torna-se mais
caro e ineficiente que os seus resultados positivos, sufocando a inovação
gerencial e tornando ainda mais difícil o caminho de quem tem poucas
capacidades estatais.
É preciso encontrar um equilíbrio mais
saudável entre a autonomia da administração pública e a fiscalização, de modo
que os gestores públicos possam atuar com mais confiança e efetividade sem
deixar de ser responsabilizados por seus atos. Isso envolve um modelo em que os
órgãos de controle ajam mais preventivamente, ajudando na construção de
capacidades estatais. O controle deve se nortear pela ideia de uma gestão
pública baseada em evidências, focando principalmente na avaliação de políticas
públicas como mecanismo de orientação de políticos e burocratas.
Uma mudança mais sólida das relações entre
controle e políticas públicas passa pela criação de canais de diálogo e
aprendizado mútuo, tornando a fiscalização um instrumento para aperfeiçoar a
prestação dos serviços públicos, em vez de ser um empecilho meramente
burocrático. O exemplo recente do Tribunal de Contas de Rondônia, que atuou para
fortalecer as capacidades estatais dos municípios no campo educacional, mostra
que é possível controlar e aprimorar as políticas públicas ao mesmo tempo, por
meio de uma relação mais parceira do que assimétrica, voltada ao objetivo comum
de todas as instituições: melhorar a vida dos cidadãos.
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