O Estado de S. Paulo
Sem atacar a questão dos gastos mandatórios, o encontro com a crise será inevitável. Lula acelera esse desfecho, em vez de mobilizar a sociedade e a classe política em favor das reformas necessárias
Nenhum país minimamente relevante terá
promovido a destruição do Orçamento como o Brasil. Para isso contribuiu uma
maioria com poder de criar privilégios e tratamentos diferenciados. Além disso,
o presidente Lula da Silva deseduca a sociedade com sua ideia equivocada,
repetida continuadamente, de que gasto em educação e saúde não é gasto, mas
investimento. Na verdade, qualquer despesa está sujeita ao princípio da
restrição orçamentária, isto é, há limites para o seu crescimento.
O Orçamento é a lei econômica mais importante de uma nação. Suas origens remontam ao Egito antigo, à Babilônia e ao Império Romano. Credita-se ao rei Henrique I da Inglaterra, que governou de 1100 a 1135, o primeiro Orçamento moderno, mas sua relevância nasceu das três revoluções do Ocidente: a Revolução Gloriosa inglesa (1688), a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789).
O propósito dessas revoluções era conter a
extravagância dos reis e assegurar o direito da sociedade de influir em
decisões sobre as finanças do governo. A insurgência contra o poder absoluto
dos monarcas associou o processo orçamentário à democracia, tanto pela cobrança
de impostos (no taxation without representation) quanto pela definição das
despesas públicas.
O Orçamento define ano a ano as prioridades,
seja na forma de arrecadar tributos – incluindo a progressividade sobre a renda
e o patrimônio –, seja na escolha de ações em prol do desenvolvimento,
incluindo o combate à desigualdade e à pobreza. É equivocado fixar prioridades
eternas como as de vincular receitas a despesas de educação e saúde, como aqui.
Não há isso em países que levam a sério o Orçamento.
Outra heresia é vincular o salário mínimo a
benefícios previdenciários. No mundo, eles costumam ser reajustados pela
inflação, sem considerar ganhos de produtividade, que são inerentes a quem
trabalha. A regra foi revogada no governo anterior, mas restabelecida na atual
administração. Os ministros da Fazenda e do Planejamento defenderam a
desvinculação, mas Lula e o PT a rejeitaram. Como já citei neste espaço, com
base em declarações da ministra Simone Tebet, em dez anos essa desastrosa
política acarretará gastos adicionais de R$ 1,3 trilhão, superando as economias
obtidas com a reforma da Previdência de 2019 (R$ 800 bilhões).
A consequência desses desatinos fiscais é a
expansão ininterrupta das despesas mandatórias (as que não se submetem a
controles). Somos talvez o único país em que aumentos de arrecadação,
planejados ou aleatórios, geram automaticamente despesas de educação e saúde.
Nessas duas áreas, governantes brasileiros cometem crime se gastarem menos do
que o determinado pelas vinculações. Na maioria dos casos, se as avaliações
desses programas indicarem a necessidade de cortes, as respectivas economias
precisam ser reaplicadas em atividades dos mesmos setores. Uma aberração.
Por tudo isso, quando computados os
investimentos (aos quais Lula atribui alta prioridade), as despesas primárias
mandatórias corresponderão, neste exercício, a 96% dos gastos primários da
União. Quando se consideram os valores nominais das despesas, que incluem os
gastos financeiros (7,6% do PIB), a situação é mais dramática. Comparadas com a
receita do governo federal, as despesas nominais (totais) equivalem a 139% da
arrecadação. Dado que os gastos obrigatórios crescem em ritmo superior ao das
despesas discricionárias (as que são controláveis), a tendência é de completa
exaustão da margem para financiar gastos relativos à pesquisa, ciência,
tecnologia, cultura, Forças Armadas e outros, incluindo o custeio da máquina
administrativa.
O País assistiria, assim, à morte do
Orçamento da União, pois tudo estaria predefinido. Tudo seria mandatório. As
despesas primárias obrigatórias superariam as receitas. Como essa doida
realidade resultaria em crescentes déficits primários, a relação entre a dívida
pública e o PIB adquiriria trajetória explosiva. Em algum momento, entraríamos
em regime de dominância fiscal, aquele em que o Banco Central fica tolhido em
sua capacidade de gerir a política monetária, pois aumentos da taxa básica de
juros, a Selic, agravariam o quadro fiscal.
Antes de essa tragédia se instalar, os
mercados antecipariam seus efeitos. Chegaríamos ao chamado momento Minsky, que
se caracteriza pelo colapso das expectativas. Haveria fuga de capitais para
ativos reais e para o exterior. A inflação fugiria do controle, provocando
recessão e desemprego. Não é possível dizer se e quando isso aconteceria, mas
sem atacar a questão dos gastos mandatórios, incluindo o absurdo volume de
emendas parlamentares, o encontro com a crise será inevitável. Lula acelera
esse desfecho, em vez de mobilizar a sociedade e a classe política em favor de
reformas necessárias a evitar a catástrofe.
Como em outros momentos, a crise poderá levar
a sociedade e o sistema político a apoiar as reformas necessárias a
restabelecer o Orçamento.
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