Valor Econômico
Em “Vamos comprar um poeta”, romance que
“viralizou” no ano passado pelo boca-a-boca, as pessoas não têm nomes, são
identificadas por números. Como se no mundo dos algoritmos, nos reduzíssemos
aos nossos Certificados de Pessoas Físicas (CPFs).
No livro, a quantidade de números e vírgulas
confere status ao “nome”. Em um trecho, a personagem cita “uma das amigas da
BB9,2”, a “N7468,1734”, que tem um nome pomposo porque “depois da vírgula,
seguem-se quatro algarismos”.
Em um diálogo, a filha pede aos pais que lhe comprem um poeta. O pai reflete e pergunta por que não um artista plástico. A mãe reage: “Nem pensar, fazem muita porcaria, a senhora 5638,2 tem um e despende três a quatro horas por dia a limpar a sujidade que ele faz com as tintas nos objetos brancos”.
Com características de realismo fantástico, a
obra do português Afonso Cruz dialoga, de certa forma, com a campanha
eleitoral, principalmente, com as candidaturas proporcionais de vereadores.
Cada vez mais, os candidatos transformam-se em números de partidos que o
eleitor não conhece.
Na propaganda eleitoral no rádio e na
televisão, os jingles das campanhas martelam à exaustão os números que o
eleitor terá de digitar na urna. Nos flyers e banners, os números dividem o
espaço com a foto do (a) candidato (a), enquanto o nome da legenda espreme-se
em um canto da propaganda.
É hora de refletir se essa realidade se deve
ao descrédito progressivo do eleitor com o sistema político tradicional, sendo
que o empresário Pablo Marçal é o melhor exemplo desse sentimento na campanha
atual. Ou se decorre de uma combinação de fatores, onde se inclui o pragmatismo
evidente de que o eleitor precisa memorizar o número do candidato.
O cientista político Leonardo Barreto
observou, em conversa com a coluna, que o Brasil, historicamente, tem um
sistema de eleição que inibe a identificação partidária, principalmente em
relação aos cargos proporcionais (deputados estaduais, federais e vereadores).
Em nosso modelo de eleições, o partido reúne
o maior número possível de candidatos, fecha uma lista depois da votação, e ao
fim, somam-se os votos para conferir se atingiu o determinado coeficiente
eleitoral. Esse índice definirá o espaço do partido na Câmara dos Deputados, no
plano federal, nas assembleias legislativas e nas câmaras municipais.
Internamente, os candidatos de determinada sigla disputam entre si quem será
mais bem votado, o que definirá os espaços internos no partido, bem como no
parlamento - presidências de comissões, lideranças, relatorias.
“É um sistema personalista, é a nossa cultura
politica em estado bruto, com raras exceções”, avaliou Barreto, que é doutor em
Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB). “Esse modelo estimula uma
concorrência intrapartidária: se você está concorrendo com outra pessoa do seu
partido, tem pouco incentivo para falar da legenda, vai falar das suas
características pessoais”, completou.
Um exemplo claro desse embate interno nas
legendas foi a eleição para deputado federal em 2022, quando coube a Eduardo
Bolsonaro, que buscaria a reeleição, o número 2222 que havia sido de Tiririca
nas eleições passadas. Isso porque o presidente do PL, Valdemar Costa Neto,
sempre reservou esse número aos “puxadores de votos”. Naquele mesmo pleito, em
Minas Gerais, o 2222 ficou com Nikolas Ferreira, fenômeno das redes sociais,
que se consagrou como o deputado mais votado do país.
Leonardo Barreto argumenta que, nessa
conjuntura de descrédito com o sistema partidário, outras instituições acabam
cumprindo o papel de intermediação dos votos que caberia a eles, como
sindicatos e igrejas. E na esteira da digitalização do processo político, as
redes sociais, que forjaram personagens como Marçal, Nikolas, e o goiano
Gustavo Gayer, também do PL.
Nesse cenário, cabe a reflexão de como o
fenômeno Marçal e seus descalabros contribuem para desacreditar o sistema
partidário. Para disputar a Prefeitura de São Paulo, ele buscou o Partido
Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), que no passado deu guarida ao
ex-presidente Fernando Collor de Mello quando ele concorreu ao Senado em 2006.
Eleito, logo depois da posse, Collor trocou a sigla pelo PTB.
Por falar em PTB - o ex-partido de Roberto
Jefferson, aquele que lançou granadas contra agentes da Polícia Federal, e do
Padre Kelmon -, a sigla não existe mais. Em 2022, não atingiu a cláusula de
desempenho, e para não perder benesses como fundo partidário e horário
eleitoral, fundiu-se ao Patriota e deu origem ao Partido Renovação Democrática
(PRD).
Por sua vez, quem ingressou no PRD foi o
ex-senador do PT Delcídio Amaral, delator na Lava-Jato, cassado em 2016, que
agora tenta se eleger prefeito de Corumbá (MS) em uma coligação de direita,
vejam só, com Podemos e Avante.
A eleição atual já é a terceira desde a
reforma política de 2017, que colocou fim às coligações proporcionais com o
objetivo de reduzir o grande número de legendas no país. Já houve mais de 40,
hoje são 29 - o último registro foi o do PRD.
Barreto ressalta que um dos problemas do
sistema eram muitas “certidões de nascimento” de partidos, e nenhuma “certidão
de óbito”. Se a reforma prosperar, com a diminuição das legendas, é preciso
oferecer menos “sopa de letrinhas” e de números ao eleitor, e mais compromisso
programático e ideológico.
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