sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Flávia Oliveira - O Bolsa Família e as bets

O Globo

É importante que beneficiários não sejam estigmatizados, criminalizados ou prejudicados

O Banco Central (BC), a pedido do senador Omar Aziz (PSD-AM), produziu estudo preliminar sobre o mercado de apostas on-line e jogos de azar no Brasil que é ouro puro. Técnicos de diferentes áreas da autoridade monetária analisaram transferências via Pix para empresas do setor e descobriram volume de R$ 18 bilhões a R$ 21 bilhões depositados a cada mês por brasileiros pessoas físicas. Identificaram 24 milhões de apostadores, 5 milhões deles beneficiários do Bolsa Família, entre titulares e familiares. Ativaram, assim, uma onda de desconfiança que o levantamento não foi capaz de comprovar.

Nas três páginas do estudo, o BC afirma que 17% dos cadastrados no programa oficial de transferência de renda em fins de 2023 apostaram em bets. Somente em agosto, afirma o relatório, enviaram R$ 3 bilhões via Pix a empresas de jogos. Embora o texto não afirme isso, muita gente entendeu que um quinto dos recursos destinados mensalmente pelo governo ao programa tenha ido parar em apostas, em vez de cobrir despesas de subsistência das famílias abaixo da linha da pobreza. Por precipitada, é conclusão equivocada.

Em setembro, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) destinou R$ 14,1 bilhões a 20,7 milhões de famílias. O benefício médio foi de R$ 684,27; 83,5% dos responsáveis pelos lares são mulheres. No documento endereçado ao senador Aziz, o BC informa a mediana, não a média de recursos destinados pelos beneficiários do Bolsa Família às bets. Em média (R$ 3 bilhões divididos por 5 milhões de pessoas) seriam R$ 600, quase o valor integral do repasse mensal. Já a mediana foi de R$ 100.

A mediana é uma conta que estabelece uma espécie de fronteira entre um conjunto de dados. Se o valor de cada aposta for agrupado numa fila imaginária, a mediana seria o número a dividir a primeira da segunda metade. O BC calculou em R$ 100 a mediana dos recursos destinados a apostas por beneficiários do Bolsa Família. Significa que metade dessas pessoas transferiu até R$ 100; a outra metade, mais que isso.

Até aqui, o BC ainda não é capaz de responder se o dinheiro destinado às bets saiu, de fato, do valor depositado pelo programa ou de outra fonte de renda dos beneficiários. Também não dá para cravar, até aqui, se foram eles mesmos que jogaram ou se seus CPFs foram usados por criminosos em operações indevidas para lavagem de dinheiro. Não é incomum ver dados de beneficiários de programas sociais em registros de imóveis, empresas e até doações eleitorais. Muitas vezes, sem que eles saibam. É importante que não sejam estigmatizados, criminalizados ou prejudicados por ser vítimas de vício ou do crime.

A Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (Senarc), responsável pelo Bolsa Família no MDS, solicitou informações adicionais ao BC. O ministro Wellington Dias respondeu que, a pedido do presidente Lula, trabalha com as pastas da Fazenda e da Saúde para melhorar as regras que inibem o uso de dinheiro da área social em jogos. Fernando Haddad, titular da Fazenda, disse que, em janeiro, quando a regulamentação do mercado de apostas entrar em vigor, todos os CPFs serão monitorados. No início de outubro, empresas e sites irregulares sairão do ar. O governo já acionou a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

O BC, no estudo, identificou arrecadação de recursos para loterias da Caixa e transferências via Pix a empresas de apostas já registradas (520 CNPJs) e outras 56 que não se identificam com o código de atividade das bets, mas operam no segmento. Este último grupo recebeu, apenas em agosto, R$ 20,8 bilhões, mais de dez vezes o valor arrecadado pelas loterias (R$ 1,9 bi) e quase 70 vezes o volume de Pix das empresas de jogos e apostas corretamente classificadas (R$ 300 milhões).

Essa meia centena de empresas foi identificada a partir do cruzamento de informações de nomes-fantasia na internet com operações típicas de apostas, entre as quais número de transações, tíquete médio e concentração de transferências em horários específicos, provavelmente de partidas de futebol. É forma eficiente de monitorar tentativas de lavagem de dinheiro por meio de um mercado em via de regulamentação. Operações atípicas podem ser detectadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), ligado ao BC, e reportadas à Receita Federal para investigação.

As conclusões do BC estão em linha com pesquisas e levantamentos que se multiplicaram nos últimos meses sobre o mercado das bets. Os apostadores são, predominantemente, homens, jovens, das classes C,D e E. Costumam jogar novamente parte ou todo o prêmio apurado. Já perderam dinheiro com apostas; tiraram dinheiro de outras despesas para jogar; reduziram gastos com lazer, entretenimento, roupas e até serviços essenciais para apostar. Muitos encaram a aventura como ofício, por acreditarem entender de futebol; outros como alternativa de investimento financeiro. A epidemia das bets é mazela gravíssima no Brasil, porque ameaça, de uma vez, saúde financeira, física, emocional. Não pode ser usada para demonizar política social, nem os que dela dependem.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Qualquer vício é muito triste!