Valor Econômico
Apelidos com que candidatos se apresentam
indicam crise de identidade do brasileiro comum. Propõem uma busca política
fora da política
As eleições municipais do dia 6 de outubro
nos darão indicações atualizadas do estado do Brasil político, no voto da
sociedade local, primeira instância de nossa consciência política.
Nos últimos anos, muita coisa mudou na função
do município na estrutura política do país. Ele passou a ser a antessala dos
governos dos estados e da própria União. Senadores e deputados federais e
estaduais alternam seus mandatos com mandatos municipais, diretamente ou por
meio de parentes. O Brasil se municipalizou em seus 5.569 municípios.
Os mandatos locais e regionais, no município e no estado, transformaram-se em instâncias de espera e de passagem, prefeitos e vereadores aspirando a um mandato na escala superior do poder. O município é hoje lugar da política e de pretexto da política.
Na mera ação de alguns, os mandatos
municipais e estaduais tornaram-se transitórios, até mesmo não completados, o
eleito na expectativa de subir e chegar ao poder dos poderes. Com isso, foram
minimizados e desfiguraram a representação política numa eleição intermediária.
Os eleitores desencantam-se quanto à possibilidade de que os políticos cumpram
o que legalmente deles se espera.
Não é uma surpresa, portanto, que as
campanhas eleitorais reflitam os efeitos do pouco caso das minorias pela função
pública e a desnecessidade de convencer o eleitor de que uma candidatura
representa uma causa social e política.
O voto é de significação coletiva. Mesmo com
os nomes de urna. Tiririca não só se elegeu e reelegeu, como arrastou consigo
candidatos que provavelmente não teriam sido eleitos. É no conjunto dos votos
que a sociedade se faz representar e faz reivindicações. Além do que, os
derrotados legitimam o mandato dos vencedores.
Os eleitores formam um corpo que elege em
nome de quem vota, não importa em quem, e até mesmo de quem não vota. O eleito
não é o dono do voto recebido.
Em princípio deveria perder o direito de
candidatura para outro mandato durante o mandato de eleição anterior. Não perde
porque lhe é assegurada a discutível legalidade de renunciar para aspirar a
outro mandato em outra instância durante mandato ainda não integralmente
cumprido.
Essa facilidade minimiza o eleitor e o torna
cidadão de segunda categoria. O voto não é uma delegação, pois torna-se nessa
possibilidade uma usurpação de vontade política.
Um dos reflexos dessa anomalia aparece também
na possibilidade do candidato se apresentar ao eleitorado como duplo ser. O de
seu nome civil verdadeiro ou o de seu nome de urna.
Há aí um lado interessante de nossa política
esquisita. Os candidatos de duplo nome se apresentem aos eleitores com a
denominação que lhes dá a identidade pela qual são conhecidos face a face e
reconhecidos nas relações sociais cotidianas, as do município. Na figura
jurídica do eleitor, é a sociedade que se manifesta. Mesmo no voto no candidato
alienado, oculto num apelido.
Numerosos candidatos se apresentam ao
eleitorado agregando ao nome a função ocupacional, desde toda a hierarquia
militar e policial (até um general) até toda a hierarquia religiosa das igrejas
evangélicas: pastores e pastoras, bispos e bispas, diáconos, presbíteros.
Em nossas eleições, com os nomes de urna, os
eleitores são acolhidos na sala de votação para escolher um representante que o
representará sob disfarce. Identificam-se aos poucos, e não a todos.
Há um lado político significativo na
possibilidade de uso de nome de urna por candidatos. Os apelidos comumente
dados aos negros, para estigmatizá-los e minimizá-los, são por eles adotados
politicamente para inverter o sentido depreciativo do preconceito. A vítima
legitima o que a militância não considera politicamente correto.
Alguns dos apelidos de urna de candidatos
pretos: Preta Nascimento, Preto de Direita, Nego do Óleo, Preto da Farmácia,
Negro Gando, Neguinho São Rafa, Negão do Povo, Nego do Caldinho. A eleição e o
nome de urna fazem da igualdade jurídica dos candidatos instrumento do efeito
bumerangue das ações. A ação política é aí, ao mesmo tempo, o seu contrário,
luta.
Os nomes de urna indicam crise de identidade
do brasileiro comum, mesmo daquele que tem título universitário. Igualam os
social e culturalmente desiguais. Propõem uma busca política fora da política.
Revelam o poder da ironia. A incerteza quanto ao quem é o candidato, mas também
quem é o eleitor.
Diferentemente do que pressupõe a
Constituição, o candidato se dá a ver por um fator de alteridade, como a
ocupação e a profissão. Ou o estabelecimento comercial ou de serviço em que
trabalha e supostamente o torna conhecido. Alguns com grande originalidade,
como o Marquinho do Pé na Cova, provavelmente um coveiro. Todos precisam dele.
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