sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Paulo Sotero - Trump, uma ameaça à democracia

O Estado de S. Paulo

Teatro de absurdos não respeita fronteiras nacionais. Ex-presidente é um exemplo a ser repudiado por seus vizinhos nas Américas

Alucinado ante a perspectiva de perder a eleição presidencial de novembro para a vice-presidente Kamala Harris, filha de pai jamaicano e mãe indiana, o ex-presidente Donald Trump vem dando crescentes sinais de instabilidade emocional e descontrole. Desorientado pela solene surra que levou da ex-senadora e ex-secretária da Justiça da Califórnia no primeiro e único debate da campanha, na semana passada, Trump entrou na reta final da disputa diminuído por sua incapacidade de manter uma postura condizente com a dignidade do cargo que pleiteia.

Um mal disfarçado racista, o ex-presidente parece ter-se convencido de que será salvo por seu conhecido talento para falsear fatos, inventar realidades e partir para a ignorância. Seu mais recente alvo, revelado no debate com Kamala, são imigrantes haitianos recebidos legalmente há mais de três anos em Springfield, Ohio, para trabalhar na indústria, comércio e serviços e contribuir para o bem-estar da comunidade local. Sem apresentar provas, Trump acusou-os no debate com Harris de estar roubando os gatos dos vizinhos e os gansos de um parque da cidade para comer. As autoridades locais, a maioria composta por republicanos, disseram não ter conhecimento de tais fatos. Mas isso não impediu que uma milícia de extrema direita, os Proud Boys, aparecesse em Springfield na última quartafeira desfraldando bandeiras trumpistas ou que o próprio Trump anunciasse uma visita à cidade proximamente.

Esse teatro de absurdos não respeita fronteiras nacionais. No pacato Canadá, o outrora festejado primeiro-ministro Justin Trudeau, filho e herdeiro do mais influente governante do país no século passado, perdeu o rumo e deve perder as próximas eleições em outubro do ano que vem, se durar até lá. Seu eleitorado se cansou, depois de nove anos de governo.

No México, o popular presidente Andrés Manuel López Obrador passará o posto no mês que vem para sua protegida e sucessora, Claudia Sheinbaum Pardo, ex-governadora do Distrito Federal e primeira mulher eleita presidente de um país de forte cultura machista. Mas Sheinbaum terá que lidar com um presente de grego deixado pelo seu tutor. Decidido a manter sua influência, o quase ex-presidente propôs semanas antes de deixar o cargo uma reforma radical do sistema judiciário, promovendo a eleição popular de juízes federais, e embaralhou as cartas.

A Venezuela continua a afundar depois da eleição presidencial ganha pela oposição, mas descaradamente tungada pelo ditador Nicolás Maduro. Sobre a Argentina do histriônico Javier Milei, melhor não falar.

E no Brasil, salvo da catástrofe deixada pelo despreparado Jair Bolsonaro graças ao retorno de Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto, o futuro não é promissor. Faltam ainda dois anos para a próxima eleição presidencial, mas o governo Lula, determinado a ressuscitar seus delirantes planos de liderança internacional, enfrenta oposição de um Congresso Nacional aberto ao aluguel de legendas, resistência num Judiciário mais interessado nos privilégios reservados aos seus membros e o personalismo de membros do Supremo Tribunal Federal.

O primeiro debate entre candidatos à Prefeitura de São Paulo, a maior e mais rica cidade do País, desandou numa inusitada baixaria que teve cadeiras voando no palco e palavrões trocados entre dois candidatos inviáveis – um ex-radialista especializado em explorar crimes e escândalos e um falastrão que se autoinventou na internet sem jamais explicar a que veio.

Nos EUA, a presença de Trump na disputa é garantia de continuação da baixaria, ainda mais se as pesquisas de opinião continuarem a sinalizar o favoritismo de sua rival democrata. Se as eleições fossem hoje, a vice de Joe Biden levaria a melhor tanto na contagem do sufrágio popular quanto na dos 538 votos no Colégio Eleitoral — relíquia herdada dos fundadores do país, quando os Estados Unidos eram apenas 13, e não meia centena como hoje, a comunicação dependia da velocidade dos cavalos e fazia sentido conferir peso maior aos Estados menos povoados.

Isso posto, salvo uma vitória retumbante de Kamala, desejável mas improvável, o pleito ficará vulnerável a contestações que podem extravasar para as ruas e arruinar a reputação dos EUA como democracia multirracial estável e confiável. Mas há uma alternativa diferente, na qual as vozes moderadas e mais sensatas dos dois partidos e dos líderes dos estamentos empresarial, acadêmico e militar sejam ouvidas e convençam a maioria dos americanos a arquivar o trumpismo e seguir na construção de “uma união mais perfeita”, como prometeram os fundadores do país no documento em que declararam a independência dos EUA do império britânico. Conto da carochinha? Pode ser, mas foi com base nesse conto e nos valores humanistas e liberais que o inspiraram que os Estados Unidos se tornaram o mais poderoso país do planeta e foco de atração de povos oriundos de todos os cantos do mundo em busca de prosperidade, progresso e felicidade. É isso o que está em jogo nas eleições de 5 de novembro.

 

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