O Globo
Quando vaticinou-se que a corrida municipal
de 2024 seria nacionalizada, parecia somente a redução, paulistana sobretudo,
do embate Lula x
Bolsonaro de 2022. Quem imaginaria que, a duas semanas do primeiro turno do
pleito que elegerá prefeitos e vereadores país afora, a nação inteira estaria
comentando com repulsa, perplexidade e doses cavalares de humor os ataques
entre prefeitáveis da maior, mais rica e mais importante cidade brasileira?
Muita gente. Afinal, não é de hoje que o Brasil é território de muita, muita
mesmo, violência política.
Era questão de tempo para a brutalidade, que começou nas redes sociais e avançou por sabatinas, culminar na cadeirada de José Luiz Datena (PSDB) em Pablo Marçal (PRTB), ao vivo, em pleno debate. Não há como fingir surpresa, já que ofensas, injúrias, agressões e até tentativa de assassinato estão cada vez mais integradas ao cardápio de campanhas assentadas em lacres e likes nas redes sociais, na criminalização de adversários, na vitimização de si mesmo, se dividendos render.
A violência política é regra, não exceção no
Brasil. Atravessa gerações de políticos. Ganhou estardalhaço na era das big
techs, que do ódio arrancam lucros e doutrinação ideológica. É impulsionada
pelo espalhamento de partidos e líderes da extrema direita, sempre empenhados
em fustigar minorias e semear xenofobia, racismo, misoginia, toda sorte de
discriminação.
Parece maior, aos olhos de quem aterrissa num
debate tarde da noite de domingo, mas sempre esteve por aí. Desde 2019, um
grupo de pesquisadores da UniRio, com apoio da Faperj e do CNPq, acompanha
episódios de violência contra líderes políticos registrados pela imprensa. Em
quase cinco anos de atividade, o Observatório de Violência Política e Eleitoral
registrou 2.113 casos. Apenas entre abril e junho de 2024, trimestre que
antecede a campanha municipal, foram computadas 128 situações em 23 unidades da
Federação. Houve de ameaças (47) a agressões (42), de atentados (11) a
homicídios (22). O Sudeste, região de maior concentração populacional,
apresentou o maior número de casos, 47. O Estado de São Paulo, de Marçal e
Datena e Ricardo Nunes (MDB)
e Guilherme
Boulos (PSOL),
lidera, seguido de Rio de Janeiro e Bahia, ambos com 15. No território
fluminense houve, em três meses, seis homicídios por motivação política, o
maior número do país.
O boletim relaciona o aumento dos episódios
de violência política à proximidade do ciclo eleitoral, uma vez que “parte
significativa dos casos foram contra pré-candidatos a cargos locais”. A série
histórica não deixa dúvida da correlação. O maior número de registros se deu em
período de eleições: 236 no quarto trimestre de 2020, do pleito de calendário
alterado pela pandemia da Covid-19; 213 entre julho e setembro de 2022, de
eleições para presidente, governadores, senadores, deputados federais e estaduais.
Ainda anteontem, em Campos dos
Goytacazes (RJ), o vereador Bruno Fernando Santos de Azevedo,
conhecido como Bruno Pezão, candidato à reeleição, foi preso como suspeito de
assassinar o cabo eleitoral Aparecido Oliveira de Moraes. No início de agosto,
em Teresina, o prefeito Dr. Pessoa (PRD) agrediu, com uma cabeçada, o
adversário Francinaldo Leão (PSOL), durante o primeiro debate entre os
candidatos na capital piauiense. Não precisou de cadeira.
O que a Quaest sugeria
na quarta-feira, o Datafolha de ontem confirmou. A agressão física de Datena em
Marçal, após uma saraivada de insultos recebidos do ex-coach, em nada afetou as
intenções de voto de ambos. O primeiro repetiu os 6% do levantamento anterior;
o segundo, os mesmos 19%. A violência política no país é banalizada, como são
todas as outras formas de violação. A profusão de memes que varreram a internet
na noite de domingo, nos primeiros minutos após a cadeirada, confirma.
Um candidato foi expulso do debate, outro foi
de ambulância para um hospital. Dois dias depois, um novo debate foi realizado
com banquetas aparafusadas ao chão, um segurança diante de cada púlpito. Nos
blocos iniciais, as provocações correram soltas. Domestica-se o ambiente, não
os candidatos.
Era de esperar que um país tão aberto ao
punitivismo, em que políticos morrem (ou quase) em decorrência das disputas
eleitorais, não relativizasse as situações de brutalidade, sejam verbais, sejam
físicas. No entanto calúnias e injúrias são disparadas aos borbotões, e o
eleitorado segue impávido. Um colosso.
— O Brasil é um país violento, assim como
o México,
e essa dinâmica se dá também em todas as áreas. A violência política é tolerada
além do razoável, porque é assim também na sociedade — sublinha a cientista
política Débora Thomé, pesquisadora na FGV/Cepesp e coautora, com Malu Gatto,
de “Candidatas: os primeiros passos das mulheres na política”, dedicado à
violência política de gênero.
No debate de domingo, as candidatas Tabata Amaral (PSB)
e Marina Helena (Novo) condenaram fortemente os ataques protagonizados pelos
homens. Usaram palavras como deprimente, lamentável, inaceitável; condenaram o
comportamento imaturo e a postura de figuras que pretendem governar uma cidade
da importância de São Paulo. Débora Thomé não discorda da dimensão de gênero,
mas chama a atenção para a hegemonia masculina, que distorce:
— São homens 88% dos prefeitos, 83% do
Congresso Nacional. Não há sequer uma vereadora em quase mil municípios
brasileiros. O mundo da política é muito masculino e, hoje, o fazer política
das mulheres é dócil, menos violento. É o que se espera delas. Não há como
garantir que não teriam o mesmo comportamento, se houvesse mais equilíbrio.
Raciocínio assemelhado vale para a representatividade étnico-racial. Uma mulher que xingasse ou lançasse qualquer objeto num adversário que a insultasse sairia, no mínimo, como histérica ou descontrolada. Um negro, provavelmente preso. Há que refletir sobre quanto uns e umas são escaneados e punidos, enquanto a outros tudo é permitido, absolutamente natural.
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