O Estado de S. Paulo
Se as instituições e os eleitores acordarem para os riscos que inexoravelmente teremos de enfrentar no médio prazo, já será alguma coisa
Meus caros amigos e amigas leitores por certo
se lembram do Brasil, um país que em certa época chegou a ter bons governos e
progredir.
Pois é, aquele país parece estar
desaparecendo. A continuar como está, o que se pode entrever é que cedo ou
tarde ele se renderá à jogatina, à ferocidade de certas indústrias e ao
banditismo propriamente dito.
Mesmo no nível municipal, guardamos na
memória algumas boas campanhas e autoridades dignas dos cargos que vieram a
ocupar. Neste ano da graça de 2024, se o voto não fosse obrigatório, com
certeza teríamos uma baixa recorde no comparecimento.
A parte pensante de nossas elites, notadamente os economistas, tem feito incontáveis alertas sobre a gravidade da crise que se delineia no horizonte. Se tal tendência não for contida por líderes de maior calibre e de forma ousada, a situação de médio prazo não será para almas frágeis. Num rápido apanhado, creio ser necessário destacar dois pontos: a eleição presidencial de 2026 e a Constituição de 1988.
No que toca à eleição de 2026, a questão não
é tanto a preferência por um ou outro dos dois candidatos mais falados, mas o
fato de que, ipso facto, eles corporificam uma polarização política perigosa e
paralisante. Ambos se tornariam credores da gratidão nacional se, reconhecendo
que são bombas-relógio ambulantes, se afastassem definitivamente da política.
Não é uma hipótese plausível. O que teremos, se a polarização se repetir em
2026, é o mesmo que temos tido desde o fim do século 20: estagnação, ou retrocesso.
Quanto à Carta, só os muito obtusos não percebem seu caráter adstringente no que toca à retomada do crescimento econômico. Adstringente e virtualmente irreformável, pela singela razão de que a elaboração de uma nova Carta requer a convocação do “poder constituinte originário”, ou seja, a eleição de uma nova Assembleia Constituinte. Salta aos olhos que os atuais deputados federais e senadores não farão isso. Supondo que o façam, é lógico que antes quererão assegurar sua própria participação nela, descartando a preferência da sociedade por uma Constituinte exclusiva. Nesse caso, teremos mais do mesmo, ou, como muitos supõem, algo muito pior, uma vez que esse novo “poder originário” tratará de “entrincheirar” no novo texto as diversas formas de dilapidar o erário que aprenderam na vigência da Carta de 1988.
Existe saída? Na imaginação, sim, e a
imaginação tem a vantagem de não ser fato gerador de imposto. Mas como vencer a
previsível resistência do Congresso à convocação de uma Constituinte exclusiva?
No imaginário, podemos conceber uma fórmula quase revolucionária: levar a
Brasília uma lista com 10 milhões de assinaturas, colhidas em todo o País e com
a devida identificação dos subscritores. Esse ato demonstraria com suficiente
nitidez que a soberania popular não adormeceu nem foi abolida. É nela que reside
a legitimidade em última instância do sistema político, relembrando a ideia do
“contrato”, quando o Estado se inclina pela supressão da legitimidade popular,
ou se mostra inapetente ou inidôneo no cumprimento de seus deveres, é ele, o
Estado, não a sociedade, que rompe o pacto, postando-se em estado de rebelião
(do latim rebellare, voltar ao estado de guerra).
Uma vez demonstrada a ativa presença da
soberania popular, qual seria a mensagem (melhor dizendo, a exigência) a ser
enviada ao Congresso? Aqui chegamos a outro espinhoso entroncamento. Tal
mensagem só poderia ser a convocação de um plebiscito, a fim de aprovar (ou
não) um projeto constitucional previamente elaborado, completo. Caberia a esse
texto indicar a forma e demais providências práticas para a eleição dos futuros
governantes e congressistas. Mas até aqui ainda estamos patinando. A quem
competiria elaborar o novo texto constitucional? A única resposta minimamente
sensata seria uma comissão de, digamos, 30 cidadãos indiscutivelmente idôneos e
intelectualmente qualificados, comissão que obviamente excluiria qualquer
indivíduo atualmente investido em alguma função pública. A estes, repetindo,
incumbiria elaborar, em determinado prazo, um texto completo.
É viável esse caminho? Creio que não; ou, melhor dizendo, na realidade atual, com os dados que hoje temos sobre a mesa, creio que não. Nossas instituições – ou seja, nossos Três Poderes – parecem fadadas a se tornar contrafações, resvalando perigosamente para o que a teoria contratualista identificou como “estado de guerra”. Parecem, mas ainda não chegaram lá. Mesmo na lamentável condição em que se encontram, juridicamente elas ainda encarnam a soberania popular. Se elas, no tocante à Constituição, e os eleitores, no tocante ao estado geral do País, acordarem para os riscos que inexoravelmente teremos de enfrentar no médio prazo, se demonstrarem ousadia, lucidez e tirocínio, já será alguma coisa. Continuaremos a ser o povo escassamente politizado que somos, mas pelo menos nos manteremos capazes de equacionar nossas divergências por meio da política, em vez de mergulhar no caos.
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