sábado, 5 de outubro de 2024

Pablo Ortellado - Mão pesada contra as crianças

O Globo

Precisamos fazer o balanço crítico de excessos na resposta do Estado brasileiro a ataques a escolas

Uma reportagem publicada na semana passada pelo jornal The New York Times mostrou que, depois de um atentado numa escola no estado americano da Georgia, mais de 700 crianças foram presas por fazer ameaças —inclusive ameaças não críveis, como trotes.

No dia 4 de setembro, um adolescente de 14 anos invadiu uma escola na área metropolitana de Atlanta e atirou em mais de 11 pessoas . Dois estudantes e dois professores foram mortos. O crime chocou os Estados Unidos. Como costuma acontecer nesses casos, o atentado foi seguido de uma explosão de novas ameaças. Devido ao “efeito contágio” — o estímulo a novos ataques gerado por um atentado bem-sucedido —, as autoridades foram obrigadas a levar cada ameaça a sério e a investigá-las.

A reportagem do New York Times mostrou que, nesse esforço investigativo e repressivo, muitos excessos foram cometidos contra crianças que aparentemente apenas passavam trotes. Um menino no estado de Ohio, de apenas 10 anos, enviou uma mensagem pelo Snapchat dizendo que haveria tiroteios em escolas próximas. Foi preso enquanto estava na escola por provocar pânico e ficou num centro de detenção juvenil por dez dias, sem entender o que estava acontecendo. Não foi a única criança presa por passar um trote. As operações policiais nos Estados Unidos levaram à prisão de 700 — 10% delas com menos de 12 anos.

Os excessos da polícia relatados pelo jornal deveriam acender o alerta no Brasil para o que pode ter acontecido no país quando vivemos situação semelhante. Após uma onda de atentados em escolas no Brasil, em abril de 2023, mais de 1.600 crianças, adolescentes e adultos foram detidos, levando a mais de 400 prisões e apreensões, segundo balanço do Ministério da Justiça. Quantos desses detidos e presos tinham menos de 12 anos? Quantos deles fizeram ameaças que poderiam ser consideradas apenas trotes? E como essas centenas de crianças foram tratadas pela polícia?

Não seria descabido supor que, se houve excesso nos Estados Unidos, o excesso deve ter sido maior por aqui. Isso se deve não apenas ao fato de nossa polícia ser mais violenta, mas também de o Ministério da Justiça ter politizado o caso, tratando os ataques à escola como uma forma de “bolsonarismo” (segundo o então ministro Flávio Dino, porque vinham de uma mesma “matriz”). Essa associação dos ataques às escolas ao bolsonarismo pode ter afrouxado o controle de eventuais excessos da polícia ao lidar com as ameaças.

Não há dúvida de que, numa situação como a que vivemos em abril do ano passado, com famílias extremamente assustadas pelos ataques, os trotes precisavam ser punidos. Mas a punição por um trote não pode ser a prisão, especialmente se falamos de crianças. É muito improvável que os 400 presos, ou mesmo a maioria deles, estivessem preparando ataques a escolas. Nessa época, o monitoramento das comunidades que incentivavam ataques a escolas mostrava no máximo poucas dezenas de adolescentes próximos de fazer alguma besteira.

Precisamos estabelecer um protocolo cuidadoso, mas eficaz, segundo o qual ameaças de ataques são respondidas com uma visita de policiais que advertem a criança e alertam pais e escolas. Isso deve ser suficiente para prevenir os ataques (acabando com o efeito surpresa) e desestimular os trotes — sem qualquer tipo de excesso.

Precisamos fazer o balanço crítico de eventuais excessos na resposta do Estado brasileiro à série de ataques a escolas de 2023. E temos de fazer isso rápido, de maneira a aprender com os erros. Quando a próxima onda de ataques vier — e ela provavelmente virá —, precisamos estar mais bem preparados. Se não agirmos prontamente para revisar e corrigir esses excessos, correremos o risco de repetir os mesmos erros, com consequências graves para as crianças.


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