O Globo
Integrantes da elite pensante, outrora
conhecida como ‘intelligentsia’, supõem deter a reserva de mercado da
democracia
Os 13 anos de bipartidarismo forçado, durante
a ditadura militar, parecem ter deitado raízes mais profundas em nosso sistema
político (ou na nossa psique) que os 45 de pluralidade partidária que vieram
depois. Tomamos gosto pelo clima de “cara ou coroa”, “par ou ímpar”, “ou isso
ou aquilo”, como se cada eleição majoritária fosse um plebiscito.
Nem a introdução dos dois turnos arrefeceu esse ânimo. A ideia de ter de dialogar com potenciais aliados, repactuar propostas, negociar (no melhor sentido!) e buscar convergências para alcançar maioria numa segunda rodada soa perda de tempo. Por que não resolver a parada logo de cara, deixando aos (muitos) perdedores as batatas? É tentador ganhar no arrastão, sem ter de aprofundar o debate e acolher maior diversidade de ideias.
Com isso, entra eleição, sai eleição, volta à
cena o tal “voto útil”. Como se, em vez da classificação oficial de válidos,
brancos e nulos, houvesse os úteis (no meu candidato) e os inúteis (os que
impedem meu candidato de chegar ao poder).
Seria possível falar em “voto estratégico”,
aquele com que, como no xadrez, se sacrifica uma peça agora para atingir um
objetivo maior mais adiante. Mas este funciona tanto para evitar um segundo
turno quanto para forçá-lo. Poderia fortalecer uma candidatura menor, sem
chances imediatas, porém com potencial a longo prazo. Um voto de confiança, que
apontasse alternativas, investisse em soluções mais moderadas.
Tão inevitável quanto o apelo ao “voto útil”
parece ser o “manifesto de artistas e intelectuais”, à undécima hora, para
tentar iluminar os desprovidos de razão. (De vez em quando, talvez por um
sistema de cotas, entram operários e donas de casa — nunca entre os primeiros
signatários: “Romantismo, sim, mas devagar...”, conforme escreveu Álvaro de
Campos.)
Os integrantes dessa elite pensante (outrora
conhecida como intelligentsia) supõem deter a reserva de mercado da
democracia. Só eles podem garanti-la, só eles a representam (como se sabe, o
que estraga o regime democrático é a existência de oposição).
Na eleição paulistana, uma eventual
preferência do eleitorado por alguém que não o candidato da esquerda
“representaria a consagração, pelo voto popular, da violência política, da
defesa da tortura, do negacionismo científico, da destruição de direitos, do
descaso com os mais pobres, do desprezo com a cultura, com as minorias e com a
democracia além do vasto programa de destruição do meio ambiente”.
A plebe ignara, por não fazer uso do
intelecto, é movida a preocupações mais comezinhas, como segurança pública,
transporte coletivo, água encanada, vaga em creche e pode se sentir tentada a
votar no candidato errado. E “todas as pessoas comprometidas com a empatia, a
democracia, a humanidade e o futuro” sabem que só a esquerda salva — nem que
para isso seja preciso esvaziar uma candidatura mais equilibrada e propositiva,
como a de Tabata Amaral.
Escrevi em 2018, e retomo a cada eleição:
para quem vem de Abba dizendo que “o jogo já acabou”, vou de Cazuza:
— Saiba que ainda estão rolando os dados.
Todo voto é útil. Inútil (e autoritário) é
tentar colocar os interesses de um partido acima das escolhas do eleitor.
Um comentário:
Fechado com Tabata Amaral e com o colunista.
😎
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