O Estado de S. Paulo
Cumpre alterar a Lei 9.605/98, discernindo
entre o que cria perigo à incolumidade humana, animal ou vegetal e o que é mera
desobediência a ditames regulamentares
A crise climática, a irromper no futuro, já
chegou. Para enfrentá-la, proclamam que se deve aumentar a pena dos crimes
ambientais. A questão é mais complexa, pois cumpre alterar grande parte da Lei
n.º 9.605/1998, discernindo entre o que cria perigo à incolumidade humana,
animal ou vegetal e o que se resume a ser mera desobediência a ditames
regulamentares.
Sem dúvida, cabe a intervenção do legislador, sancionando, como medida preventiva, situação propícia a aflorar perigo ao meio ambiente. Muitas dessas ações constituem infrações obstáculo, de cunho administrativo e não penal, precauções para impedir atividade prévia à ofensa ao meio ambiente.
Erradamente, o legislador optou por
criminalizar tais infrações, ou seja, o mero desrespeito ao constante de
portaria ou decreto, sem exigir o surgimento de situação perigosa à
incolumidade humana, animal ou vegetal. Tal opção afronta o princípio da intervenção
mínima, segundo o qual reserva-se o caráter penal apenas às condutas gravemente
lesivas ao bem jurídico.
Lembro, então, alguns tipos de crime
consistentes em simples desobediência:
“Artigo 51. Comercializar motosserra ou
utilizá-la em florestas e nas demais formas de vegetação, sem licença ou
registro da autoridade competente.
“Artigo 56. Produzir, processar, embalar,
importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar,
ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à
saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas
em leis ou nos seus regulamentos. Pena: reclusão, de um a quatro anos, e
multa.”
No parágrafo, estende-se a incriminação ao
fato de se abandonar substância tóxica, em desacordo com as normas ambientais,
ou manipular ou acondicionar resíduos perigosos de forma diversa da
estabelecida em lei ou regulamento. Prevê-se, também, a forma culposa,
configurando-se como crime, por exemplo, o esquecimento no pasto de frasco de
agrotóxico.
Dando, igualmente, relevo à desobediência ao
determinado em portaria, no artigo 60, prevê-se como crime fazer funcionar
serviços potencialmente poluidores, contrariando as normas legais e
regulamentares pertinentes.
Por outra parte, comportamentos que infringem
normas ambientais vêm a ser, conforme o artigo 70 da lei, infração
administrativa, sendo obrigatório se promover sua apuração imediata, pelo que
seria desnecessário elevar-se tais condutas à categoria de crime.
O maior despropósito na incriminação de
conduta de fraca lesividade ao meio ambiente está no artigo 49 da lei:
“Artigo 49. Destruir, danificar, lesar ou
maltratar, por qualquer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros
públicos ou em propriedade privada alheia. Pena: detenção, de três meses a um
ano. Parágrafo único: no crime culposo, a pena é de um a seis meses.”
Na Lei 9.605/98, torna-se crime contra o meio
ambiente, portanto, a ação de maltratar planta ornamental alheia, sendo
espantosa a previsão da forma culposa. Dessa maneira, se alguém escorregar e
pisar no canteiro de begônias do jardim vizinho, tipifica-se crime ambiental.
Mas, em evidente contraste, a lei exige,
todavia, para a configuração do crime de poluição, fato nuclear contra o meio
ambiente, a causação de dano de monta, ou seja, a produção de resultado
concreto de elevada nocividade. Diz, então, o artigo 54 relativo ao crime de
poluição:
“Artigo 54. Causar poluição de qualquer
natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde
humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa
da flora. Pena: reclusão, de um a quatro anos, e multa.”
Note-se que para tão danosa conduta a pena é
idêntica a quem apenas tem em depósito substância tóxica, por exemplo. Além do
mais, relevante no plano penal vem a ser a poluição de qualquer natureza em
“níveis tais” (em linguagem coloquial), que possa causar mortandade de animais
ou destruição significativa da flora. Restringe-se a figura penal da poluição a
casos excepcionais, pois só configurarão crime as ações causadoras de
resultados extraordinários.
Integrei em 1984, com ilustres penalistas,
comissão que elaborou proposta de Parte Especial do Código Penal, cabendo a mim
relatar o capítulo dos crimes ambientais. Primeiramente, o texto foi publicado
para críticas, gerando versão revista com quatro figuras relativas à água,
solo, subsolo e ar, com circunstâncias qualificadoras próprias de cada
elemento.
Na proposta, este foi o tipo penal da
poluição: “Causar indevidamente poluição de águas (ar, solo, subsolo) expondo a
perigo a incolumidade humana, animal ou vegetal, ou tornando mais grave a
situação de perigo existente”.
A poluição, portanto, consiste na criação,
nos elementos da natureza, de situação perigosa à incolumidade, a justificar a
incriminação, mas sem requerer produção de dano gravíssimo, como veio a
requerer a lei penal ambiental.
Relembro esse trabalho, composto por 16
artigos, para ser tomado como ponto de partida visando a uma revisão da atual
lei, adaptando-a às condições da grande crise ambiental.
Um comentário:
O início é interessante, mas o final é ruim: as "quatro figuras relativas à água, solo, subsolo e ar" são totalmente insuficientes na questão de crimes ambientais, que deve incluir obrigatoriamente vegetação (e suas plantas), fauna (e as espécies animais) e o próprio homem, além dos 4 elementos físicos do ecossistema que foram explicitados pelo autor.
Postar um comentário