sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Fernando Abrucio - Debate é a antessala do novo governo

Valor Econômico

Falta de um processo mais amplo de educação política na sociedade, que deve ser prévia aos processos eleitorais

Quem acompanha a eleição na cidade de São Paulo geralmente não tem dúvida de que os debates atuais têm sido os piores de todos os tempos. O nível de violência física e verbal foi inédito. Um dos candidatos, Pablo Marçal, veio para confundir, não para explicar, buscando desmoralizar a democracia. O descrédito da discussão foi ampliado pelo uso recorrente de pegadinhas sobre a trajetória dos candidatos, tentando colocar todos na mesma vala, o que é uma mentira. No fim, faltou responder o principal: como seria o governo de cada um deles? Esta é a pergunta que deveria estar no centro dos debates.

Se a utilidade dos debates pudesse ser definida em poucas palavras, a melhor definição é a produção de informação para definição do voto de acordo com o que se espera do exercício do cargo público em questão. Numa eleição municipal, o debate tem de servir para que os eleitores saibam como deverá ser o governo de cada um dos concorrentes a prefeito. Há outros elementos que podem ser julgados, porém, eles serão secundários frente ao conhecimento da agenda prioritária, das soluções para as políticas públicas e do modo de governar que será adotado.

Entre os aspectos que estão em jogo, faz muito sentido a crença de que o confronto entre os candidatos poderia elucidar melhor a qualidade de suas ideias. Uma decisão mais consistente supõe a comparação de candidaturas, pois isso gera mais elementos para saber o quanto cada um diz é verdadeiro e factível. Claro que o debate envolve a capacidade de oratória e até uma teatralidade, mas fiar-se apenas na performance não é, necessariamente, escolher o que está mais preparado para ser prefeito.

Não há como fugir por completo da avaliação da forma de se apresentar dos concorrentes, mas é preciso ter cuidado para não se enganar pelas aparências. Há performances muito bem treinadas pelos marqueteiros, aqueles que seguem a psicologia dos coaches - com suas frases de livro de autoajuda e visual de mauricinho com a academia em dia - e, ainda, os que constroem a persona política do ogro, tão atraente numa época em que pessoas buscam um “malvado favorito” para ser seu líder político.

O fato é que boa parte dos eleitores é convencida pelas características performáticas dos candidatos, que podem ter um peso maior na escolha eleitoral do que a consistência dos programas e das estratégias de governabilidade.

O problema é que quando se ganha a eleição, o que importa no dia seguinte é saber governar. Por um tempo se pode continuar no modelo político do entretenimento, ao estilo Milei, mas uma hora chega a conta dos atos como governante. Foi assim com Collor, quando o povo se cansou de vê-lo andando de jet ski. Também ocorreu com Bolsonaro, pois embora os seus seguidores acreditassem no sentido mágico da cloroquina, a maioria do eleitorado deixou de apoiá-lo quando ele não soube governar diante de uma pandemia.

É preciso ter cuidado também com outra artimanha dos debates. São as pegadinhas, que envolvem armadilhas sobre atributos pessoais, trajetórias de vida e até conhecimentos sobre a Bíblia! Uma coisa é questionar atos que tenham a ver com a vida pública ou o descumprimento de leis. Bem diferente é procurar fatos na vida pessoal que não tenham nenhuma vinculação com as qualidades requeridas de um prefeito ou prefeita.

Um bom governante tem de ser honesto, tomar as decisões certas no campo das políticas públicas e construir consensos com políticos que pensam diferente dele, mas tais qualidades não têm nenhuma relação necessária com o número de vezes que se foi à missa ou ao culto, nem com o gênero ou idade do político.

Há algo ainda pior neste campo da rinha pessoal: a produção de mentiras sobre políticos para queimá-los por razões morais junto ao eleitorado, como a insinuação de Pablo Marçal acerca do uso de drogas por Boulos ou, ainda mais nojento, sobre a responsabilidade de Tabata Amaral em relação ao suicídio de seu pai. Se parte do eleitorado está sancionando esse comportamento calhorda, constata-se o quão doente politicamente está parte da população paulistana.

Tomado como um jogo em busca da destruição da reputação moral dos candidatos, o debate produz, ao fim e ao cabo, uma desmoralização da política democrática. Isso transforma todos os candidatos em seres agressivos em potencial e com menos tempo para discutir como seriam efetivamente seus futuros governos.

O diálogo entre políticos concorrentes deveria captar o que de melhor eles têm a oferecer à sociedade. Só que na lógica da política como entretenimento que tem predominado, até os melhores e mais capacitados políticos têm abandonado a discussão de ideias e sua viabilização, entrando no ringue para brigar com os que não têm a mínima noção de como resolverão problemas de uma megacidade extremamente complexa como São Paulo.

A ideia de que o debate é uma disputa performática torna-se verdadeira até em setores mais comprometidos com a melhora da qualidade da democracia. Boa parte da imprensa, por exemplo, tem valorizado aspectos laterais vinculados à capacidade de provocar o outro ou usar melhor o tempo, mesmo que seja para dizer nada relevante para o futuro da cidade.

A mídia deve ser vigilante com todos os governos, mas deveria desde as eleições cobrar o que é essencial para o sucesso das políticas públicas. Lembrando das perguntas clássicas que movem as matérias jornalísticas, o que é central são quatro coisas: 1) qual é o diagnóstico de cidade que orienta o candidato? 2) quais políticas públicas serão escolhidas para enfrentar os problemas encontrados? 3) de que maneira tais soluções serão implementadas? e 4) com quem e de que maneira o prefeito eleito governará?

Com base nestas questões, e por meio da comparação das respostas dos competidores, os debates seriam mais úteis como antessala do futuro governo. Do ponto de vista da imprensa ou de organizações da sociedade civil, na maior parte dos casos há informações e evidências científicas que podem ser utilizadas para avaliação das propostas em disputa.

É verdade que alguns temas supõem controvérsias ideológicas e mais de uma resposta possível. Parte do sucesso de um governante está ligado a preferências sociais dominantes ou a inovações que encontram caminhos que não eram conhecidos na época da eleição. Mesmo assim, um cardápio de possibilidades governativas poderia ser o principal instrumento de aferição do sucesso nos debates, em vez de questões performáticas laterais.

O conhecimento sobre a factibilidade das propostas de governo não resolve um problema central das democracias: como traduzir para o cidadão comum questões muito técnicas e/ou só conhecidas por quem acompanha a política diariamente? Duas soluções seriam válidas aqui. Uma é chamar os eleitores para fazer perguntas aos candidatos, como é comum nos Estados Unidos e que o debate do Flow realizou com boa qualidade. Ver como os políticos apresentam o que será seu futuro governo para uma pergunta popular é um teste mais interessante do que a troca de xingamento no nível do quinto ano escolar que marcou boa parte da eleição paulistana.

Além disso, o processo democrático se fortalece quando os debates se orientam por questões que tornam comparáveis pelo menos duas propostas de governo e seus modelos de governabilidade - isto é, como serão implementadas, com quais alianças e formas de negociação.

É politicamente muito mais produtivo colocar uma mesma pergunta para dois ou mais concorrentes, ouvir separadamente suas respostas e deixar um espaço para que cada um comente a proposta do outro sem fugir do tema. Ninguém precisa definir quem está certo se não o próprio eleitor que está assistindo ao debate, mas ele terá elementos mais consistentes para tomar suas decisões.

Uma das causas de desperdiçarmos debates que fogem do essencial e valorizarmos elementos performáticos secundários - por vezes até premiando com exposição e votos propostas estapafúrdias ou enganadoras de seus verdadeiros objetivos - está na falta de um processo mais amplo de educação política na sociedade, que deve ser prévia aos processos eleitorais. As escolas deveriam ensinar que as discussões sobre temas coletivos são um meio para resolver adequadamente os problemas. Exercícios práticos para equacionar dificuldades do ambiente escolar seriam uma forma de realizar isso.

A educação política, no entanto, não deve caber apenas às escolas. Igrejas, empresas e outros ambientes coletivos poderiam construir processos decisórios que valorizassem o debate capaz de resolver problemas. Afinal, uma empresa quer soluções efetivas e não deveria nunca apostar em ideias absurdas e/ou lideranças que se destacam apenas porque são performáticas. Embora o respeito à diversidade de pessoas tenha muitos defensores na sociedade, por que então candidatos preconceituosos são aclamados após debates eleitorais?

No fundo, se os debates têm tido má qualidade em São Paulo, a causa disso não está apenas nos candidatos. O que temos medo de enfrentar é que parte do problema está na sociedade e nos valores de parcela relevante da população. Tão triste quanto o aplauso a comportamentos deploráveis é a incapacidade de perceber que a mentira agressiva nunca produzirá bons governos.

Bom voto a todos e todas no domingo.

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