sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Bernardo Mello Franco - Saturnino e a honradez

O Globo

“A política é fascinante, mas a literatura é mais saudável”, disse gestor que dirigia o próprio Fusca e decretou a falência do município em 1988

A três dias da eleição municipal, o Rio perdeu seu primeiro prefeito escolhido nas urnas. Roberto Saturnino Braga morreu ontem aos 93 anos. Era um político à moda antiga, que acreditava no debate de ideias e na convivência civilizada com os adversários.

Saturnino se elegeu deputado em 1962, pelo velho PSB. Depois do golpe militar, entrou na mira da ditadura e foi impedido de concorrer à reeleição. Em 1974, candidatou-se ao Senado pelo MDB. Contrariando as próprias expectativas, venceu com folga e se juntou à linha de frente da oposição ao regime.

Com a redemocratização, filiou-se ao PDT de Leonel Brizola e se elegeu prefeito do Rio em 1985. O mandato foi breve e tumultuado. Ele rompeu com o governador, enfrentou uma crise financeira e teve que decretar a falência da cidade. Conhecido como um gestor honesto, que dirigia o próprio Fusca, deixou o cargo com os servidores em greve, sem receber salários. No Jornal do Brasil, Millôr Fernandes cunhou uma frase que o perseguiria até o fim da vida: “O homem que desmoralizou a honradez”.

“A experiência na prefeitura foi uma paulada na cabeça. Não sei como não tive um infarto”, comentou anos depois, em depoimento à Fundação Perseu Abramo. “Sofri o chamado linchamento político. Isso eu senti nitidamente: o desprezo das pessoas”, relembrou.

Em 1996, Saturnino não teve votos para se eleger vereador. Parecia o fim da linha, mas ele deu outra volta por cima e retornou ao Senado dois anos depois. Ao fim do mandato, um acordo político o deixou sem legenda para tentar a reeleição pelo PT. Aos 74 anos, recém-recuperado de um câncer, ele me disse que havia chegado a hora de dar adeus às urnas. “É melhor sair numa boa do que derrotado”, justificou.

O ex-prefeito desceu do palanque, mas não deixou a arena pública. Escreveu livros, organizou seminários, ajudou a formar novos militantes socialistas. Em 2011, confessou que preferia ter escolhido a carreira de escritor. “A política é excitante, fascinante, mas a literatura é mais saudável e compatível com a felicidade. Essa é que é a verdade: a política suga a felicidade”, explicou.

Questionado se sentia falta do Senado, ele disse que sofria ao ter que acompanhar tantas sessões “chatas e idiotas”. “O nível baixou muito”, lamentou. E isso foi antes da chegada dos pastores, ex-jogadores de futebol e generais de pijama eleitos nos últimos anos.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom!