sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Maria Cristina Fernandes - Disputa põe em xeque as bases dos pivôs da polarização e turbina a de seus avalistas

Valor Econômico

Marçal ofusca bolsonarismo e fortalecimento do Centrão pode ameaçar governabilidade de Lula

O avanço da metade à direita do espectro partidário sobre as bases municipais do país é um resultado fora da margem de erro. Convém aguardar o que dizem as urnas de domingo para dimensioná-lo, mas é possível esquadrinhar os caminhos que levam a este desfecho e a viela estreita para que dele se depreendam causa e efeito.

A primeira evidência é que as bases locais da política são tradicionalmente mais conservadoras e a eleição municipal favorece largamente o incumbente. A segunda é a proporção de candidatos lançados por partidos à direita. O PL de Jair Bolsonaro e Valdemar Costa Neto lidera entre as legendas que mais ampliaram o número de candidatos, tirando o Novo, cujo crescimento estratosférico (ver tabela) se deve à pequenez de 2020, agora refastelada, pela primeira vez, no fundo partidário.

A aposta no crescimento do PL levou Bolsonaro a passar a campanha com agenda de cacique partidário pulando de palanque em palanque no país inteiro. Depende da capilaridade municipal e do fortalecimento de seu partido no colégio eleitoral formado pelas cidades com mais de 200 mil eleitores (ver tabela) para turbinar as bancadas no Congresso e dele arrancar sua anistia e o impeachment do ministro do Supremo Alexandre de Moraes.

Com seu jogo dúbio em São Paulo, entre Ricardo Nunes e Pablo Marçal, corre o risco de sair derrotado em quaisquer dos cenários com a perspectiva trazida pelo Datafolha de ultrapassagem do prefeito pelo candidato do PRTB. Um segundo turno entre Marçal e Boulos arrisca levar o bolsonarismo em peso para as hostes de Marçal, que não esconde a ambição de tomar o lugar do ex-presidente. Nem precisaria ganhar no segundo turno para, mais do que a extrema direita, ambicionar a liderança de toda a direita. A perspectiva não afeta apenas os planos de Jair Bolsonaro como também aqueles do governador de São Paulo, Tarcísio Freitas (Republicanos).

O PL está praticamente empatado com o PT do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cujo crescimento de candidatos lançados é um quinto daquele registrado no partido de seu antecessor (ver tabela). A despeito desta equidade de armas entre as duas principais lideranças nacionais, não se registra, na campanha deste ano, a reprodução da polarização de 2022. Quem deve se fortalecer, mais uma vez, é o Centrão.

Além do domínio consolidado, mais facilmente reeleito, e do grande número de candidatos, o tapete que se estendeu para a turma de Arthur Lira (PP) e Davi Alcolumbre (União) foi tecido no controle sobre os efeitos das emendas parlamentares sobre as bases locais de seus partidos. Os prefeitos que disputam a reeleição apoiados por partidos do Centrão dominante no Congresso vão às urnas no domingo montados sobre um caixa de investimentos que há muito não se via, proporcionados, além das emendas e transferências da União, por aumento de receita.

É daí que vem a primeira lei das eleições. Decreta-se, para todos os fins e interesses, que o resultado das disputas locais impacta as eleições para a Câmara dos Deputados e, consequentemente, a governabilidade de quem quer que se eleja à Presidência da República.

A disputa municipal, porém, não afeta as eleições majoritárias subsequentes, sejam as de governador ou presidente, nem mesmo quando o resultado em questão é em São Paulo, cuja eleição é sempre tratada como aquela que determinará os rumos do planeta.

O vice-presidente Geraldo Alckmin voltou ao governo de São Paulo em 2010 depois de ficar em terceiro lugar na disputa pela prefeitura da capital no ano (2008) em que Gilberto Kassab foi reeleito para seu último cargo majoritário. Fernando Henrique Cardoso chegou à Presidência nove anos depois de ter caído da cadeira na disputa paulistana.

Lula também chegou lá, pela primeira vez, dois anos depois de Marta Suplicy conquistar a Prefeitura de São Paulo, mas foi reeleito dois anos depois da derrota da ex-prefeita em sua tentativa de ser reconduzida ao cargo. E voltou, em 2022, depois do desempenho mais acanhado do PT em eleições municipais.

Isso não significa que o destino do presidente seja indiferente ao resultado das eleições. Além da governabilidade mais difícil, cujos ventos já começarão a causar ruídos na volta dos trabalhos legislativos em novembro, fica evidente que o núcleo duro de Lula na política, encurralado pela concorrência da direita nas políticas sociais, tem, nos costumes, um refúgio suicida. Basta ver o quanto a campanha de seu candidato em São Paulo foi fustigada pelo identitarismo e pelas “fake news” de drogas. O que está em jogo numa eleição em que se assiste a uma inédita indefinição sobre os adversários do segundo turno é o risco de a esquerda ficar fora dele na principal cidade do país desde que o instituto foi criado.

O Datafolha desta quinta feira, que traz Guilherme Boulos na liderança, reduz essa perspectiva e pode deixar o segundo turno do jeito que o PT queria. Uma disputa contra Marçal é o único cenário que possibilita vitória, fora da margem de erro, de Boulos. A perspectiva não apenas pode trazer Lula com mais frequência a São Paulo do que o fez no primeiro turno, como o levou a remarcar, para a noite desta quinta, a “live” com o candidato do PSol. O encontro virtual estava previsto para o dia anterior e foi cancelado pelo atraso na volta do presidente do México.

A eleição de São Paulo importa porque a cidade lança moda. A deste ano chama-se Pablo Marçal, a ameaça mais patente que se avizinha ao domínio bolsonarista sobre a extrema direita, tanto na divisão do PL quanto no fascínio que exerce sobre o Centrão. Uma importante liderança do PP, certo de que o candidato do PRTB à Prefeitura de São Paulo perderá a eleição, já sondou seu interesse em ingressar no partido, de olho no seu potencial de puxador de votos. Marçal, desnecessário dizer, recomendou que ele fosse plantar gabiroba muito antes de as pesquisas indicarem sua competitividade.

Como vai sair mais rico e mais conhecido desta campanha, seja qual for o resultado do domingo, Marçal terá dado início à formação de um grupo político com o que há de mais radical no bolsonarismo, como os deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e Ricardo Salles (PL-SP). Não custará a ampliá-lo. Ninguém sabe em que direção esta nau desgovernada se encaminhará, mas é certo que Marçal foi o único a circular pela campanha paulistana com séquito de “pop star”.

Para se constatar que o ícone do dinheiro fácil incorporado por Marçal não é um fenômeno isolado na cidade de São Paulo, basta passar o olho na tabela desta página que mostra as ocupações que mais cresceram entre os candidatos a prefeito deste ano.

É verdade que a base era baixíssima (foi de um para cinco), mas nunca houve tantos garimpeiros candidatos a prefeito, nem quando um ex-militante da causa, Jair Bolsonaro, estava na Presidência. Somados aos técnicos de mineração, terceira ocupação que mais cresceu, já perfazem uma bancada de nove candidatos.

A profissão com a qual Marçal entrou na vida adulta e na cadeia foi a segunda que mais cresceu, programador de computador. Como o questionário de ocupações do TSE, aparentemente, não tem “influencer” ou “coach”, é possível que ainda haja clones do candidato do PRTB espalhados por candidaturas dos mais diversos profissionais Brasil afora.

O entrelaçamento deste novo apelo do dinheiro fácil com o que há de mais velho na política fica evidente quando se bate o olho nas principais ocupações dos candidatos (ver tabela). Caíram os médicos, comerciantes, professores, servidores, advogados, engenheiros. A única, entre as 20 ocupações mais frequentes dos candidatos a prefeito, a subir foi a de “produtor agropecuário”.

Marçal não é apenas o “arquétipo”, expressão que ele costuma usar, do dinheiro fácil. É a contaminação da política pelo “auto-cuidado”. Sai o Estado de bem-estar social e sua utopia das oportunidades, e entra o cuidado com o corpo e a mente que já dominava as redes sociais enquanto a política se distraía com a polarização. Nos vídeos da reta final de sua campanha, Marçal define o pós-bolsonarismo: enquanto dá conselhos para uma eleitora gordinha tomar as rédeas de sua vida “que valem tanto para o mendigo quanto para o milionário”, Bolsonaro come “boules” com leite condensado.

O Judiciário não ficou fora dessa. A ameaça da inteligência artificial não se concretizou como esperado, em parte porque o Tribunal Superior Eleitoral cuidou de endurecer a regulamentação previamente. Mais do que a IA, o problema foi a estupidez natural que ganha curso na propaganda eleitoral que buscou refúgio na clandestinidade do compartilhamento de cortes de vídeos. De que adianta obrigar apresentadores de TV, como José Luis Datena, a se licenciar de seu trabalho, se seu concorrente supera, na casa dos milhões, sua audiência nas redes? Só podia dar em cadeirada. Com a perspectiva de Marçal conseguir um bilhete para o segundo turno, fica em aberto o comportamento da Justiça Eleitoral em relação às diversas representações contra o candidato.

A eleição também marcou o início de um novo embate entre o Judiciário e a política. Depois de passar os últimos anos enfraquecendo a Lei da Ficha Limpa e as limitações trazidas pela improbidade administrativa aos candidatos, os parlamentares acompanham de perto o uso pioneiro da “vida pregressa” dos candidatos para barrar seu acesso às urnas.

Assim como a Ficha Limpa, este é um movimento que nasceu no Rio, onde a aliança entre o crime e a política primeiro foi escancarada. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio excluiu candidatos condenados em uma única instância da disputa, contrariando a Ficha Limpa mas valendo-se da Constituição em seus acórdãos.

Está lá no nono parágrafo do artigo 14 que a lei deve proteger a livre escolha dos eleitores da improbidade e da imoralidade da vida pregressa dos candidatos e da influência do poder econômico e do abuso de funções públicas. É o movimento mais audacioso do Judiciário para conter o avanço irrefreável do crime organizado sobre o Estado. Na condição de regulador dos serviços municipais, as prefeituras são sua porta de entrada. Por isso são a nova fronteira do embate entre a política e o Judiciário. Resta ao eleitor deste domingo se impor sobre o desfecho.

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