terça-feira, 22 de outubro de 2024

Ricardo José de Azevedo Marinho* - O último decênio em perspectiva

A história recente do último decênio exige uma avaliação contundente dos sentidos políticos de um conjunto de eventos que nem sempre são discutidos com o rigor que necessitam o que acaba por gerar a incompreensão de nossa experiência. Muito se escreveu e falou, por exemplo, sobre os acontecimentos de junho de 2013, com interpretações ora entusiastas, ora apocalípticas, que viram na sequência de protestos que sacudiram a cena do país, com o redespertar da nossa geografia política. Ao consultar vozes incontornáveis em nosso debate público, a Revista VERSUS (N° 11, novembro de 2023 - https://versus.ccje.ufrj.br/versus-hoje/) ouviu estudiosos sistemáticos sobre o tema, desde sua eclosão até o seu primeiro decênio. Lá Julio Aurélio Vianna Lopes (Fundação Casa de Rui Barbosa) e Marco Aurélio Nogueira (professor titular da UNESP, e autor do incontornável A democracia desafiada: recompor a política para um futuro incerto, 2023), eles analisam a experiência dos governos e sua complexa relação com a sociedade, expressas nos diferentes teatros das ruas. Desde Junho de 2013 às ruas foram compostas por muitos movimentos, de orientações políticas distintas e com agendas próprias. Para Marco Aurélio Nogueira: “Por conta da efeméride, ou seja, dos dez anos de 2013, houve uma série de artigos e entrevistas que fazem uma conexão mecânica entre 2013 e a situação atual, passando particularmente pelo governo Bolsonaro. Como se 2013 tivesse botado um ovo de serpente. Penso que esta é uma visão equivocada, mecanicista, que despreza vários outros acontecimentos que tiveram alto poder de determinação na ascensão do bolsonarismo (a crise econômica, a perda de base parlamentar do governo Dilma, a falta de políticas claras).” Na revista, se discute os principais embates das gestões nesse decênio, construindo um panorama amplo e complexo de nossa experiência política recente.

Na revista se traz à baila Treze: A política de rua de Lula a Dilma (2023), de Angela Alonso. Este título apresenta sua pesquisa desse decênio que compara as avaliações dos eventos de Junho de 2013, da década e de hoje.

Para se ter a dimensão dos achados duas produções audiovisuais em 2022 foram lançadas: a série documental de seis episódios, Junho, o começo do avesso, com subsídio do Fundo Setorial Audiovisual, e o longa Ecos de junho, apoiado por Agência Nacional do Cinema (ANCINE) e Rede Globo.

Para quem viu os documentários e depois lê o livro percebe que a maioria dos inquiridos considera difícil avaliar as consequências, mas condenam a violência que os cercou. No entanto, julgam que as suas causas foram justas e que revelou o descontentamento generalizado.

Apesar do tempo que passou, ainda são lembradas as frases de autoridades referentes ao “gigante acordou”, “o despertar social”, entre outras imagens. Mas neles está encarnado o olhar crítico a uma tecnocracia impermeável aos graus de igualdade (se não material, pelo menos simbólica) alcançados pela sociedade brasileira na década de 1980 com a expansão da democracia, da educação e das redes sociais.

2013 e depois vimos a ação coletiva e anônima de indignação acumulada contra uma cultura elitista egocêntrica, indiferente à situação e angústia da população. Esta crise de representação não era nova: vinha fermentando desde Collor. Nas palavras de Angela Alonso: Tanto em São Paulo como no Rio, onde se julgava que as prefeituras eram o alvo, instalou-se o impasse. Noutras partes do país, onde nem havia aumento de tarifa, ficava claro que as demandas eram outras, com destaque para as disputas em torno de terra e moralidade. Indicação de que as razões não eram municipais. A presidente, contudo, permanecia impávida, como se nada tivesse com isso, embora a vaia do dia 15 já desse pista de seu ledo engano.

As ruas, então, serviram de megafone através do qual milhões de compatriotas saíram para expressar algo muito básico: “estamos aqui”. Não aceitamos viver marginalizados na periferia atravessada por uma modernização que não utilizamos. Se para ser ouvido era preciso sair às ruas e participar de marchas e manifestações, faremos como se fizera em 1984, ainda que essa história não nos tenha sido contada.

Os custos de 2013 e depois não foram iguais para todos. Nos bairros dos eventos era um espetáculo dantesco visto pela televisão, e não vivido diretamente. Os eventos visavam atingir e conscientizar aqueles que teriam o controle sobre uma ordem que girava sobre si mesma sem dar sentido à vida; um sentido como aquele que outrora surgiu da história da modernização (prosperidade e igualdade) e, ainda mais profundamente, da salvação que a fé promete.

Comovidas e assustadas, as elites políticas e econômicas abriram-se ao clamor, mas isto só durou até que as mobilizações cessassem. No final tudo parecia permanecer igual; ou pior, devido aos custos políticos. Aí veio o que o Marco Aurélio Nogueira mencionou na entrevista acima citada, onde a ela devemos adicionar 2014, 2016, 2018, a pandemia e, acima de tudo, um mundo com guerra.

Apesar de tudo 2013 e depois foram atos da sociedade e de esperança. Mas aparentemente em vão, pois a vida desde então ficou mais difícil, como indicam os resultados preliminares do Censo Demográfico 2022.

Daí que a explosão pública foi transformisticamente dando lugar então à implosão individual. A 2013 e depois foi privatizada, o que certamente contribui para as atuais pandemias de Influencers, Tiktokers, Youtubers, OnlyFans e afins e de saúde mental. Mas ontem e hoje a exigência da população é a mesma: seguridade; seguridade para a velhice, contra as doenças e pró saúde, o desemprego e, hoje, como prioridade, pró segurança pública. Se as instituições não agirem para responder a este apelo, que ninguém volte a dizer que não previu que isso aconteceria, pois isto não se entende com as lentes ditas sociológicas da demofobia.

*Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE, da Teia de Saberes e do Instituto Devecchi.


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