terça-feira, 22 de outubro de 2024

Pedro Cafardo - O grande salto e as sequelas da inclusão financeira da baixa renda

Valor Econômico

Inclusão financeira abriu o mercado de crédito para largas parcelas da sociedade, mas tem como principal efeito colateral o endividamento

Há duas semanas, Carlos B, um publicitário de São Paulo, foi almoçar em Pinheiros, deixou o carro em um estacionamento ao lado do restaurante e, ao sair, tentou pagar a conta ao manobrista com uma nota de R$ 20. “Desculpe, senhor, mas não aceitamos dinheiro; o senhor poderia pagar com pix ou cartão?” Carlos fez um pix, mas ficou se perguntando: “Estão extinguindo o dinheiro?”.

Esse caso é um simples sinal do avanço da inclusão financeira da sociedade brasileira, mas não apenas nas classes mais abastadas. O processo de inclusão avançou de forma extraordinária para as pessoas de baixa renda nas últimas duas décadas. Uma pesquisa feita por quatro economistas da FGV*, com apoio e dados do Banco Central, mostra que 92% dos adultos brasileiros de baixa renda têm acesso a contas correntes e a sistemas de pagamento.

Lauro Gonzales, um dos autores do estudo, observa que três fatores foram importantes para esse avanço da inclusão.

O primeiro foi a evolução da regulação, sob a liderança do Banco Central, com um conjunto de medidas que aprimoraram o funcionamento do mercado de serviços financeiros. A criação de instituições de pagamento, por exemplo, ampliou a concorrência no setor. Mais recentemente, o lançamento do Pix reduziu os custos de transações para pagamentos, fato extremamente positivo para a população de baixa renda. Entre os beneficiários do Bolsa Família, 90% têm pelo menos uma chave Pix.

O segundo fator foram os avanços tecnológicos que ampliaram a capacidade de atuação das instituições que oferecem serviços financeiros, com efeito positivo para a concorrência. Instituiu-se, por exemplo, o compartilhamento de informações, o relatório de crédito positivo e a portabilidade de crédito.

Avanço importante foi a adoção do Cadastro Único (CadÚnico), registro de todas as famílias vulneráveis/pobres que recebem qualquer tipo de benefício do governo - o critério básico para a inscrição é ter renda familiar abaixo de meio salário mínimo por pessoa por mês. O cadastramento é obrigatório para Bolsa Família, pensão não contributiva para maiores de 65 anos (BPC), desconto na conta de luz, isenção de taxas de serviços públicos etc. O CadÚnico passou a ser usado como uma espécie de espelho da baixa renda no país, registro que, obviamente, exige atualização e fiscalização permanentes para combater fraudes.

O terceiro fator, também muito importante, foi o aumento dos recursos destinados a transferências de renda. O destaque pertence ao Bolsa Família, que teve valores triplicados de 2019 a 2023. Essas transferências, para cerca de 61 milhões de adultos, de 21,3 milhões de famílias, representaram 1,5% do PIB no ano passado. Com isso, segundo Gonzales, a população de baixa renda passou a ter um fluxo de renda mensal muito mais robusto, o que aumentou o interesse das instituições financeiras em servir a esse público.

Esse processo foi positivo para economia em geral e incluiu no mercado de crédito largas parcelas da sociedade brasileira. Mas a principal ameaça potencial desse avanço, sequela da inclusão financeira, é o endividamento.

Lauro Gonzales observa que vários dos serviços oferecidos, principalmente de crédito, têm colaborado para aumento do comprometimento de renda e do superendividamento entre os beneficiários de programas sociais, caso do Bolsa Família. Ou seja, a dimensão qualidade tem ficado para trás.

O economista sugere que é preciso continuar aprimorando a regulação e cita como exemplos negativos os casos das ofertas indiscriminadas de cartões de crédito ou de crédito consignado. Hoje, o comprometimento de renda dos beneficiários do Bolsa Família é de 37%, ou seja, para cada R$ 100 de renda, R$ 37 são direcionados ao pagamento de amortização e juros de dívidas.

“Os efeitos do crédito podem acabar sendo negativos para o bem-estar se jogarem os beneficiários do BF para uma espiral de superendividamento”, alerta o economista. O alerta se tornou mais importante depois que o Banco Central revelou que bolsistas gastaram R$ 3 bilhões em apostas nas bets em um único mês, agosto.

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