terça-feira, 22 de outubro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Agenda da China não deve ditar o rumo do Brics

O Globo

Na presidência do bloco, Brasil precisa evitar que seja transformado numa coalizão antiocidental

A agenda oficial da reunião do Brics — bloco formado por dez países a partir da aliança original entre Brasil, Rússia, Índia e China — nesta semana em Kazan, na Rússia, envolve temas caros à diplomacia brasileira: reforma da governança global, multilateralismo, combate à fome e à desigualdade, desenvolvimento sustentável. Nos bastidores, porém, é nítida a tentativa de consolidar o Brics como veículo para aglutinar um polo antagônico ao Ocidente, sob liderança da China, com apoio da Rússia. O Brasil, que ocupará a presidência do bloco em 2025, faria bem em tentar bloquear o avanço dessa agenda extraoficial.

A guinada antiocidental começou com a adesão de novos integrantes no ano passado. Depois de aceitar a África do Sul em 2011, o Brics recebeu de uma vez Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Etiópia. Há ainda mais 30 países candidatos a parceiros, entre eles Cuba, Venezuela, Nicarágua, Argélia e Turquia. Nenhum deles é conhecido pelas credenciais democráticas e, mesmo na Índia, que participa desde o início, a democracia tem sofrido recuo. Por isso o Itamaraty fez bem em dar a entender que o Brasil não acatará a adesão da Venezuela, sufocada pela ditadura de Nicolás Maduro.

O descaso que China e Rússia manifestam pelos princípios da democracia liberal pode ser ilustrado pela foto protocolar do aperto de mãos entre o ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, e Amir Khan Muttaqi, chanceler do Talibã, grupo terrorista que governa Afeganistão. Muttaqi visitou Moscou com o objetivo declarado de se aproximar do Brics. A Rússia ainda mantém o Talibã em sua lista de organizações terroristas, mas já sinalizou que poderá rever a classificação. A China já até instalou embaixada em Cabul.

Interessa a Pequim liderar países periféricos e emergentes para ser mais influente no mundo. A diplomacia chinesa tenta aumentar a massa crítica de poder na disputa por hegemonia com os Estados Unidos sem considerar valores democráticos. Seria uma lástima se o Brasil, sociedade fincada nos princípios ocidentais da democracia liberal, endossasse essa agenda.

Há movimentação para que o Brasil aproveite a visita de Xi Jinping ao país no mês que vem para formalizar sua adesão à Nova Rota da Seda, programa ambicioso de investimentos chineses no mundo com evidentes objetivos geopolíticos. Quem mais insiste nisso é a ex-presidente Dilma Rousseff, que mora em Xangai, onde preside o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), do Brics. Felizmente, até o momento o Itamaraty tem sido contra a ideia.

É evidente que interessa ao Brasil financiamento para construir e modernizar portos, rodovias e ferrovias. Mas não para atender prioritariamente a China ou privilegiar qualquer outro mercado. Entrar na zona de influência da China significa correr o risco de retaliação imediata dos Estados Unidos, onde uma vitória de Donad Trump nas eleições de novembro teria certamente como consequência um enfrentamento mais explícito aos chineses.

O Brasil precisa zelar por seu histórico de diplomacia independente, sem abrir mão de valores ocidentais, como democracia ou direitos humanos. Não faz sentido o governo atual buscar um espaço próprio em sua política externa, muitas vezes enfrentando interesses de Washington, para na primeira oportunidade cair nos braços de Pequim. O objetivo deve ser manter o equilíbrio.

Ampliar vacinação é fundamental para manter a Covid sob controle

O Globo

Doença continua a matar, mas comparecimento aos postos está em queda — e faltam doses da vacina

Por mais que o Brasil tenha voltado a um cenário de normalidade depois da pandemia, não se pode descuidar da Covid-19. A doença ainda mata — e muito. Neste ano, já são 5.160 mortes, número pouco inferior às por dengue (5.644), doença que em 2024 bateu recordes históricos. Um dos principais desafios das autoridades tem sido convencer os brasileiros a comparecer aos postos para se vacinar. A estratégia é fundamental, uma vez que o coronavírus não deixou de circular. A tarefa se torna mais árdua se, mesmo com a demanda baixa, faltam vacinas nos postos. Lamentavelmente, é o que vem acontecendo.

A Sociedade Brasileira de Infectologia afirma que a quantidade de vacinas compradas pelo Ministério da Saúde neste ano não tem sido suficiente para abastecer os postos. O problema não parece afetar apenas as doses contra a Covid-19. No mês passado, a Confederação Nacional de Municípios informou que, em 65% das cidades, faltava vacina para pelo menos uma doença. Tal realidade reflete falhas na manutenção dos estoques e na logística.

O ministério alega ter liberado 3,17 milhões de doses contra a Covid-19 no mês passado. Mas, como mostrou reportagem do GLOBO, em outubro ainda não houve distribuição, segundo registros do Departamento de Logística em Saúde. A última compra foi feita em abril: 12,5 milhões de doses, atualizadas para as cepas mais recentes do novo coronavírus. O governo diz que já concluiu o pregão para comprar mais 60 milhões de doses. Só que elas precisam chegar ao cidadão.

A cobertura da vacinação ainda é insuficiente para manter proteção segura contra a Covid-19. Para o ciclo de quatro doses da vacina monovalente, o percentual está em 19,3%. Para a bivalente, que protege contra duas cepas do vírus, chega a apenas 21,6%. A imunidade coletiva só é garantida por percentuais na casa dos 95%.

A situação é mais preocupante diante das previsíveis mutações do vírus. Uma nova subvariante que circula pelo mundo já foi detectada em pelo menos três estados: Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina. Autoridades sanitárias têm recomendado que os cidadãos tomem a vacina, mesmo que não seja a específica para a nova linhagem.

Vários motivos emperram a vacinação: campanhas de desinformação, a ilusão de que não é necessário mais se vacinar porque a situação está sob controle, a dificuldade de acesso aos postos (que por vezes funcionam em horários restritos) e a frustração de chegar ao local e não encontrar a vacina.

Teremos de conviver com o coronavírus por muito tempo. E a melhor receita para uma boa convivência é a vacinação. O Programa Nacional de Imunizações brasileiro sempre foi referência mundial. Não se pode deixar que essa conquista se deteriore. O governo precisa fazer campanhas constantes para convencer os cidadãos a procurar os postos. Mas de nada adiantará se não houver doses disponíveis. É fundamental que o Ministério da Saúde regularize seus estoques e que os estados e municípios sejam ágeis para levá-los até a população.

Aliança contra a fome é teste para imagem do Brasil

Valor Econômico

O Mapa da Fome da ONU mostrou que a mazela atingia 733 milhões de milhões de pessoas no mundo em 2023, ou uma em cada 11 pessoas, um retrocesso aos níveis de desnutrição de 2015

Em menos de um mês, será lançada a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, em evento paralelo à reunião de chefes de Estado do G20, em 18 e 19 de novembro, no Rio, que marca o fim da presidência do Brasil no grupo. A Aliança deverá ser a principal proposta do Brasil à frente do G20 a ganhar forma e se tornar realidade. Temas complexos como o das soluções para conflitos internacionais e da taxação de grandes fortunas estão empacados.

Erradicar a forme é uma das metas que constam nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), sem avanço significativo até agora. Levantamento de cinco agências especializadas das Nações Unidas, o Mapa da Fome (julho) mostrou que a mazela atingia 733 milhões de milhões de pessoas no mundo em 2023, ou uma em cada 11 pessoas. Esses números significam um retrocesso aos níveis de desnutrição de 2015. O percentual de pessoas em crise alimentar saltou 20,4% na África, que concentra 20% do total global.

A inflação dos alimentos, os conflitos geopolíticos, as mudanças climáticas e as desacelerações econômicas são os principais fatores para o aumento da fome no mundo, segundo a ONU. Se as tendências atuais continuarem, cerca de 582 milhões de pessoas estarão cronicamente subnutridas em 2030, metade delas na África.

Relatório da ONG britânica Oxfam destaca o impacto dos conflitos na fome. A Oxfam estima que 54 países estavam envolvidos em algum tipo de conflito em 2023, que se prolongam até os dias de hoje, com prejuízo para a alimentação de quase 282 milhões de pessoas. Entre os casos citados estão as guerras de vários anos em países da África, como Etiópia, Nigéria e Somália, e do Oriente Médio, Síria e Iêmen, e os mais recentes, como o conflito entre o Hamas e Israel na Faixa de Gaza, e que agora se amplia ao Líbano, e entre Rússia e Ucrânia, que começou em 2022. Bloqueios de ajuda humanitária estão entre as armas usadas.

Há ainda o fator desperdício. Segundo a FAO, agência da ONU, 13% dos alimentos produzidos anualmente são perdidos na cadeia de suprimentos, totalizando 931 milhões de toneladas - ou 120 quilos por pessoa. Volume ainda maior, de mais de 1 bilhão de toneladas de alimentos, é desperdiçado em casas, restaurantes e varejo, acrescentando mais 132 quilos por pessoa (Valor, 9/10)

Desde julho o Brasil defende a proposta do Pacto Global contra a Fome nas reuniões do G20 e em encontros multilaterais. Antes mesmo de os detalhes do pacto serem divulgados já houve importantes apoios. A Alemanha foi o primeiro país a aderir, em anúncio feito neste mês, durante a Conferência de Sustentabilidade de Hamburgo. O país ofereceu ferramentas desenvolvidas em proposta semelhante da ministra Svenja Schulze, em 2022, que inclui planos nacionais de segurança alimentar e nutricional em 25 países e painel de informações em tempo real sobre a situação alimentar mundial.

Já no pré-lançamento, em julho, a Noruega se dispôs a contribuir com US$ 1 milhão para o secretariado da Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza. Cálculos do Brasil indicam que a estrutura burocrática do pacto custaria de US$ 2 milhões a US$ 3 milhões por ano, e Brasília promete arcar com metade, apesar das dificuldades fiscais. Uma alternativa é abrigar a estrutura da aliança dentro das Nações Unidas, independentemente do G20. O Banco Mundial se comprometeu a participar do financiamento de projetos e ajudar na elaboração de políticas e diagnósticos.

A Aliança vai funcionar como uma plataforma para aproximar países, instituições financeiras e organizações internacionais para a implantação de um “cardápio” de políticas públicas reconhecidas internacionalmente para o combate à fome e à pobreza. Não está claro o papel do Brasil na iniciativa. Mas o país pretende disseminar as medidas que lhe garantiram reconhecimento mundial.

Além do Bolsa Família, fazem parte do cardápio brasileiro o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que estabeleceu que 30% dos produtos adquiridos sejam de produtores locais e garante não só a alimentação dos estudantes, mas também estimula a agricultura familiar; o Cadastro Único; e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra alimentos da agricultura familiar para distribuição a pessoas em situação de insegurança alimentar.

Assim como em outras frentes, o telhado do Brasil é de vidro. O país voltou ao Mapa da Fome, depois de cinco anos fora, e nele permaneceu até o mais recente levantamento, que cobre o triênio de 2021 a 2023. São 8,4 milhões de brasileiros subnutridos, ou 3,9% da população. Para estar fora do Mapa da Fome, o percentual precisaria ser menor do que 2,5% da população. O relatório da ONU “Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo” também informa que 6,6% da população brasileira vivem em insegurança alimentar severa, o que significa que 14,3 milhões de brasileiros não sabem quando vão fazer a próxima refeição.

O presidente Lula prometeu tirar o Brasil do Mapa da Fome até fim do mandato. O prazo é apertado, mas possível. Será um grande teste para a liderança e a imagem do governo.

Nobel dá pistas sobre o atraso econômico do Brasil

Folha de S. Paulo

Prêmio reforça mérito de instituições que geram segurança para empreender, igualdade diante da lei e oxigenação política

A ideia de que os diversos modos de organização das comunidades políticas afetam seu nível de desenvolvimento econômico sempre foi difundida na academia e na opinião pública. Nas últimas décadas, o melhor instrumental analítico vem corroborando tal intuição e adensando seu entendimento.

Essa evolução foi mais uma vez reconhecida pelo Prêmio Nobel de Economia. O trio de pesquisadores agraciados em 2024, Daron Acemoglu, Simon Johnson e James Robinson, todos radicados nos Estados Unidos, notabilizou-se por estudar o impacto das instituições na prosperidade das nações ao longo da história.

Em dois trabalhos publicados no início deste século, os três professores procuraram isolar o fator institucional —as regras explícitas e tácitas que regem o funcionamento de uma sociedade— de outros que poderiam explicar por que um conjunto de povos oriundos do ocidente europeu enriqueceu ao longo dos últimos séculos, enquanto outros, de saída mais ricos, regrediram.

Mais tarde Acemoglu e Robinson se tornaram conhecidos fora dos círculos universitários pelo best seller "Por que as Nações Fracassam" (2012), em que tentam generalizar achados investigativos seus e de outros pesquisadores do mesmo campo. O livro popularizou a dicotomia entre instituições inclusivas, de um lado, e extrativistas, de outro.

As primeiras, que favorecem o desenvolvimento, associam-se às garantias intertemporais de que os frutos do trabalho e do empreendedorismo não serão expropriados pelo Estado, de que todos terão tratamento igualitário perante a lei e de que perdedores da disputa eleitoral respeitarão os resultados das urnas.

As segundas se assentam com a finalidade de canalizar uma parcela volumosa da renda da sociedade para uma minoria encastelada em posições de poder ou influência. Enquanto alguns enriquecem à custa da maioria, a economia como um todo tende à estagnação secular ou ao declínio.

Ainda que a realidade se mostre por vezes mais complicada do que dão a entender as generalizações dos laureados em sua obra mais conhecida, o acúmulo de evidências mais reforça do que enfraquece a sua argumentação.

O Brasil, aliás, é caso clássico de sufocação por instituições extrativistas, associado a uma economia que há mais de 40 anos padece de baixo crescimento.

Para ficar em variações recentes de um tema ubíquo e recorrente, o Supremo Tribunal Federal cobrou multa de uma empresa de propriedade diversa da que desafiava a lei brasileira. A reforma tributária ensejou batalhas, muitas delas vitoriosas, de lobbies para proteger setores poderosos contra a taxação universal.

Legisladores federais, por meio de regimes de emendas e fundos partidários, erigiram com dinheiro do contribuinte oligarquias bilionárias que dificultam a alternância e a oxigenação na política.

É assim, segundo os Nobéis de 2024, que as nações fracassam.

Banir a revista íntima que viola direitos nas prisões

Folha de S. Paulo

Procedimento é humilhante e enviesado; STF deve agilizar medida para proibição e governos precisam investir em scanners

No último dia 8, o Supremo Tribunal Federal formou maioria para proibir a revista íntima de familiares de detentos nos presídios, considerando as provas obtidas por meio deste tipo de busca como ilícitas.

Corretamente, o tribunal determinou que a falta de scanners nas unidades prisionais não autoriza a prática. O Estado não pode impor esse tipo de revista aos familiares, em especial às mulheres, porque não é capaz de prover alternativas menos degradantes, como equipamentos eletrônicos.

O procedimento nem sequer é excepcional. Em 2021, cerca de 78% dos parentes de pessoas presas foram submetidos à revista em suas cavidades íntimas nas penitenciárias do país, segundo o relatório "Revista vexatória: uma prática constante", publicado por organizações da sociedade civil.

Além de invasivo, o procedimento é seletivo. De acordo com a mesma pesquisa, 97,7% das pessoas a ele submetido são mulheres; enquanto 70% dos familiares negros foram expostos à revista degradante, 72,1% dos familiares brancos não passaram por ela.

Banir tal prática já é realidade. Após Goiás ter proibido a revista íntima em 2012, outros estados seguiram a medida, por decisão judicial, portarias ou leis, entre eles Amazonas, Espírito Santo, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo, segundo levantamento do jornal O Globo.

Diante deste cenário, não se justifica a lentidão do STF em decidir o caso, pendente desde 2020. Cabe à Corte reconhecer que a prática viola direitos. Aos estados, recai o dever de investir em tecnologia que permita a revista sem constrangimento.

A aquisição de scanners, entretanto, não é panaceia. Agentes precisam ser treinados para que, mesmo com o dispositivo, a revista invasiva não continue a ser recorrente por dificuldade de leitura das imagens ou outros motivos, técnicos ou não.

Sistemática, a prática pode configurar forma de tortura, abuso ou importunação sexual, crimes reconhecidos por lei. Em especial, devem-se repudiar atos ainda mais repugnantes como revistar crianças, bebês e mulheres que estão no período menstrual ou forçar o agachamento sobre um espelho, abusos comuns.

Constituição não permite que a punição se estenda além da pessoa do condenado. É inaceitável que seus familiares sejam humilhados pelo Estado, que deveria zelar pela custódia de seus parentes. A condição de encarceramento tampouco justificaria a violação da revista íntima contra os próprios detentos. Não há lugar para humilhação legalizada no Estado democrático de Direito.

‘Polícia’ municipal ao arrepio da Constituição

O Estado de S. Paulo

A partir de erro do STF, Judiciário começa a tomar decisões que, na prática, dão poder de polícia à guarda municipal, uma temeridade para a própria segurança que se pretende incrementar

O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu há pouco mais de um ano que as guardas municipais integram o Sistema de Segurança Pública (Susp). Na prática, isso as revestiu de um poder que, à luz da Constituição, é próprio das polícias. À época, sublinhamos neste espaço que essa decisão, proferida nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 995, foi um grave erro do STF, cujos impactos negativos para o arranjo federativo e para a própria segurança pública não são triviais.

Como não poderia deixar de ser, aquele erro fundamental do STF começa a se refletir em decisões de outras instâncias judiciais. Tudo indica que, antes do Legislativo, o Judiciário reconhecerá com frequência cada vez maior um “poder de polícia” que as guardas municipais, definitivamente, não têm. E isso não apenas não diminuirá a sensação de insegurança que hoje já atormenta a maioria dos brasileiros que vivem nas grandes cidades, como ainda poderá criar novos problemas. É fácil vislumbrar, por exemplo, conflitos de competência ou casos de abuso de poder por guardas municipais que se veem como “policiais” e se sentem respaldados tanto pelo STF como por prefeitos para agir como tais, não raro armados.

No dia 15 de outubro, a 6.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou dois habeas corpus (HCs) a réus condenados por tráfico de drogas em ações penais que tiveram como fundamento probatório flagrantes decorrentes de patrulhamento realizado por guardas municipais, que apreenderam os entorpecentes. A jurisprudência do STJ era sólida no sentido diametralmente oposto, ou seja, de invalidar esse tipo de ação. Até o julgamento da ADPF 995 pelo STF, era pacífico no STJ o entendimento de que guardas municipais não têm poder para realizar atividades de patrulhamento ostensivo, como abordagens indistintas, revistas pessoais e apreensões, pois não é essa, afinal, a sua vocação, mas sim a manutenção da ordem pública e a proteção do patrimônio público. Como é sabido, o patrulhamento ostensivo cabe às Polícias Militares.

Tão controvertida foi essa guinada da jurisprudência do STJ que o placar de julgamento dos dois HCs foi o mesmo: 3 a 2. E aqui vale destacar a manifestação do ministro Rogerio Schietti, voto vencido. Classificando a limitação das guardas municipais às suas atribuições originárias como uma “batalha praticamente perdida”, Schietti alertou que, “pelo visto, iremos, com o tempo, transformar guardas municipais em policiais. E, com isso, iremos criar mais dificuldades do que temos”. É prudente levar o alerta a sério.

Recorde-se que o presidente Lula da Silva, por sua vez, também contribuiu para que essa confusão de papéis e responsabilidades fosse instalada no País ao assinar um decreto, no fim de 2023, que regulamentou trechos do Estatuto Geral das Guardas Municipais. Entre outras medidas, ficou estabelecido que guardas municipais podem efetuar prisões em flagrante, o que de resto é uma obviedade que autoriza a inferência de que o petista pretendeu apenas acenar para um segmento do serviço público notoriamente alinhado a seu antecessor.

Eis uma sutileza que deve ser observada sob pena de, daqui a pouco, haver mais de 5,5 mil “forças policiais municipais” no País. O art. 301 do Código de Processo Penal diz que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. Guardas municipais, portanto, já estão autorizados por lei a prender indivíduos em flagrante delito. No entanto, o erro do STF ao incluir as corporações municipais no Susp foi equiparar o status jurídico de todos os integrantes do sistema, o que não tem cabimento.

Guarda municipal, como dissemos, não é polícia. Ao contrário desta, a guarda municipal, em geral, responde apenas ao prefeito e à sua corregedoria. A punição de eventuais abusos de seus agentes durante ações de competência primordial das polícias pode ser sacrificada no altar do corporativismo, o que é inaceitável num Estado de Direito que se preze.

Gasto com publicidade é caixa-preta no Planalto

O Estado de S. Paulo

TCU manda governo Lula corrigir gastos sem critérios em campanhas publicitárias e reforça suspeitas sobre uma comunicação que deveria ser pública e transparente

O Tribunal de Contas da União (TCU) acaba de dar um passo relevante para encontrar – e abrir – a caixa-preta da publicidade do governo federal. As vistosas somas gastas com campanhas publicitárias e os critérios para defini-las costumam ser um terreno fértil em verbas e contratos mal explicados, uma zona de sombra mantida entre a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), as agências de publicidade contratadas e os cidadãos que precisam saber as diretrizes para o uso do dinheiro público.

Conforme noticiou o Estadão, o TCU deu 180 dias para que a Secom passe a estabelecer critérios de controle de gastos e definição de metas em contratos de propaganda do governo. Uma auditoria constatou a ausência do óbvio: parâmetros objetivos para orçar peças publicitárias e medir sua eficiência. E pediu a inclusão de informações imprescindíveis, entre elas a definição de como se chegou ao valor estimado para o custo inicial da campanha e a incorporação de métricas para mensuração de resultados. O Tribunal solicitou ainda a publicação de documentos com dados detalhados sobre os acordos selados entre o governo e as agências de publicidade.

Ressalve-se que as campanhas radiografadas pelo Tribunal não estão circunscritas ao governo do presidente Lula da Silva – foram analisadas 15 campanhas realizadas entre 2018 e 2023, e mapeadas ações da Secom desde as gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro, e em todas elas os auditores encontraram inconsistências. Saltou aos olhos dos auditores, no entanto, a elevação dos gastos com publicidade nos últimos anos. As despesas cresceram de maneira significativa a partir de 2021, mas atingiram o pico em 2023, primeiro ano do atual mandato de Lula, quando foram destinados quase R$ 380 milhões às ações de marketing do governo.

De um lado, há o reconhecido e providencial apetite lulopetista para suprir as deficiências do governo com peças de marketing. Afinal, para Lula e seus exegetas instalados no Palácio, governar é travar o “combate de narrativas”. De outro lado, há a ausência da necessária transparência dos gastos com publicidade, como importantes campanhas de utilidade pública. Mesmo aí, contudo, a falta de controle e de parâmetros claros cria incentivos para gastos desenfreados, com a possibilidade de agências de publicidade aumentarem o preço do serviço para maximizar seus lucros à custa dos cofres da União – como, aliás, bem definiu em seu voto o relator do processo no TCU, ministro Benjamin Zymler: “Não há como saber se o orçamento destinado a uma ação publicitária foi insuficiente, ideal ou excessivo”. Não mesmo.

O TCU constatou uma espantosa ausência: rigorosamente nenhuma das campanhas analisadas continha documentos com indicadores para mensurar os resultados em todos os canais de veiculação. Quando havia alguma menção a metas, expunham-se não mais do que termos genéricos, como “afirmar o compromisso de unir e reconstruir o país na defesa da democracia e em favor do crescimento, inclusão e justiça social” ou “evidenciar os primeiros resultados concretos decorrentes das decisões do governo e seu impacto na vida do cidadão”, utilizados na campanha “Posicionamento de Governo 100 dias”, de 2023. Justificativas genéricas, excesso de discricionariedade dos gestores e objetivos mal expostos foram algumas das flagrantes inconsistências constatadas pelos auditores.

Este é mais um capítulo do enredo questionável protagonizado pela Secom presidencial. Há menos de dois meses, a Secretaria precisou revogar uma licitação de quase R$ 200 milhões para a comunicação digital do governo Lula, após o TCU apontar indícios de irregularidades e suspeitas de fraude na concorrência. Desde que Lula voltou ao Palácio do Planalto, a nomenklatura petista envolveu-se em polêmicas diversas, entre as quais publicações políticas disfarçadas de campanha de utilidade pública, episódios de deboche com adversários nas peças e um histórico de comunicação pública, que deveria ser impessoal e republicana, convertida em palanque digital. Problemas constatados apenas pelo que se sabe e se vê na superfície, sem que a caixa-preta ainda esteja aberta e decifrada. Maus presságios.

Blindagem para previdência privada

O Estado de S. Paulo

Interesse do governo Lula da Silva em cooptar fundos de pensão assusta servidores federais

Participantes do fundo de pensão dos servidores federais do Executivo e do Legislativo, a Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público da União (Funpresp-Exe), lançaram abaixo-assinado pedindo a criação de um perfil conservador de investimentos para assegurar a aposentadoria e proteger o patrimônio dos contribuintes do fundo. A iniciativa diz muito sobre a desconfiança que se espalha entre servidores públicos sobre o modo como o governo Lula da Silva tenta fazer dos fundos de pensão financiadores de políticas públicas lulopetistas.

As 233 entidades fechadas de previdência complementar, mais conhecidas como fundos de pensão, administram recursos que, no primeiro semestre deste ano, atingiram R$ 1,3 trilhão, ou 11,4% do PIB brasileiro, de acordo com estatísticas da associação que as representa, a Abrapp. A Funpresp-Exe não é a mais representativa nem a mais influente delas, mas, com patrimônio de mais de R$ 10 bilhões, ocupa um importante 18.º lugar no ranking.

É certo que, como destacou reportagem do Estadão, as 1,7 mil assinaturas reunidas até agora representam apenas uma fração dos 113,9 mil participantes ativos do fundo. Mas o temor de interferência política da gestão lulopetista sobre os fundos não é exclusivo dos participantes da Funpresp-Exe. É um temor justificado, diante do interesse recorrente do governo de usar recursos dos fundos – especialmente os ligados direta ou indiretamente à União, como os fundos patrocinados por estatais – para financiar políticas públicas.

O governo precisa de recursos não só para obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), mas também para o financiamento imobiliário, por causa da perda crescente de dinheiro da poupança, fonte tradicional para o setor. Assim, os fundos de pensão seriam uma saída para bancar essas despesas em um Orçamento estrangulado.

Em agosto, quando foi lançado o abaixo-assinado, Lula da Silva reuniu-se em Brasília com os presidentes da Previ (Banco do Brasil), da Petros (Petrobras), da Funcef (Caixa) e do Postalis (Correios), e um dos temas da conversa foi a proposta de resolução da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) para a inclusão de debêntures de infraestrutura entre os tipos de aplicação que podem ser feitos pelos fundos.

Previ, Petros e Funcef administram ativos de mais de meio trilhão de reais e seguem regras que restringem aplicações em investimentos de maior risco para garantir o pagamento futuro de aposentados, pensionistas e dependentes, que é, afinal, o objetivo primeiro dos fundos de pensão. Aposentados e contribuintes de Petros e Funcef sentem no bolso, ainda hoje, prejuízos de investimentos malfeitos em gestões petistas passadas, especialmente no governo de Dilma Rousseff. Somente a Previ não precisou cobrar contribuições extras ou reduzir o valor de benefícios.

O idealizador do abaixo-assinado, Jorge Moisés, servidor do Ministério do Planejamento, alega que a tentativa de reforçar a prudência nos investimentos não tem viés político ou ideológico. É tão somente uma blindagem de segurança.

Mudança climática não tem ideologia

Correio Braziliense

Tanto na Amazônia Legal quanto no Cerrado, a crise climática tem prejudicado seriamente a vida dos brasileiros, sejam, ou não, povos originários ou tradicionais

Como quaisquer outras comunidades, os povos indígenas são vítimas dos efeitos das mudanças climáticas. As chuvas torrenciais ou as longas estiagens impactam a rotina das aldeias, prejudicando a  produção de alimentos e a redução da oferta de pescados nos rios, entre outros prejuízos. Neste ano, as queimadas — a maioria delas criminosa — chegaram de forma avassaladora aos territórios indígenas. Entre eles, a Terra Indígena (TI) do Xingu, que abriga mais de 5,5 mil pessoas de 16 etnias. 

O recorde de queimadas na Amazônia Legal — 163 mil focos, dos quais 49 mil no Mato Grosso — comprometeu o dia a dia dos que vivem na TI do Xingu. Segundo a série de reportagens Identidade Wauja, publicada nesta semana no Correio Braziliense, com temporais e raios, o fenômeno El Niño deixou, no bioma amazônico, um rastro de danos em algumas comunidades, destruindo moradias cujas paredes são de barro e telhados de palhas. 

Os líderes indígenas denunciam que o desmatamento na região não cessa. As atividades predatórias são evidentes, com implicações no regime de chuva e estiagem. Segundo o cacique Akari Waurá, da aldeia Topepeweke, no passado, o período chuvoso começava em setembro. Agora, demora um mês ou mais para o início, e a duração não ultrapassa 90 dias, o que prolonga o tempo de estiagem. 

Tanto na Amazônia Legal quanto no Cerrado, a crise climática tem prejudicado seriamente a vida dos brasileiros, sejam, ou não, povos originários ou tradicionais (quilombolas). Na Amazônia, a seca de rios antes caudalosos atingiu níveis, até então, inimagináveis. Entre eles, o Rio Negro, cujo nível de água baixou para 13,59m — quando o normal é de 90m — e o percurso passa por Manaus, capital do Amazonas. 

Ao longo dos 1.700km de cumprimento do Rio Negro, cuja nascente é na Colômbia, há 27 etnias de povos originários, sendo 22 em solo brasileiro. Tanto eles quanto as populações ribeirinhas são severamente afetados com a redução no nível d'água. Além da alimentação, a mobilidade fica dificultada. A situação se repete às margens dos rios Javari, Solimões, Branco, Madeira, Purus e outros cursos d'água.

Na região do Cerrado, a crise climática e os incêndios provocados também causam graves transtornos às populações indígena que ali vivem — entre elas, os Xavante, Krahô-Kanela, Tapuia, Guarani-Kaiowá, Terena, Xacriabá e Apinajé. Além das transformações ambientais, a maioria dessas comunidades originárias enfrenta a hostilidade dos invasores dos seus territórios.

Indígenas têm usado as redes sociais para tentar mobilizar a sociedade sobre a situação crítica que enfrentam, mostra a série do Correio. Porém, boa parte da sociedade brasileira ainda coloca em dúvida as alterações evidentes do clima. Essa parcela vira as costas aos alertas dos cientistas, dos povos originários e tradicionais e segue a rota dos negacionistas. Talvez, essa camada da sociedade ainda não tenha percebido que os fenômenos não têm ideologia, opção por regime político e são desprovidos de preconceitos. 

Quando os extremos climáticos se manifestam, ferem todos igualmente. Preservar o patrimônio natural do país, reconhecer a lógica da orientação dos especialistas, os da academia e os da tradição, seria uma contribuição mínima  para conter o aquecimento global e exemplo à preservação da vida no planeta.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

A grande mídia brasileira sempre foi contra a criação do Brics e a participação do Brasil. Agora, querem dizer o que nosso governo deveria fazer...