O Globo
O general não comia mel, comia abelha
Com sua boina preta, o general francês
Jacques Massu (1908-2002) foi um modelo de oficial das tropas de elite do
Exército francês. Em 1940, era capitão quando a França rendeu-se
à Alemanha.
Estava na África e juntou-se a tropas que atenderam ao chamado do general
Charles de Gaulle. Quatro anos depois, desembarcou com as tropas aliadas na
Normandia. No fim da tarde do dia 25 de agosto de 1944, estava debaixo do Arco
do Triunfo, em Paris.
Passaram-se os anos e, em 1957, a Quarta República francesa enfrentava uma insurreição na Argélia. Um governador socialista entregou a repressão ao coronel paraquedista Jacques Massu. Foi a Batalha de Argel. Em oito meses, Massu neutralizou a insurreição na cidade, matando e torturando insurretos. (Ele aplicou-se choques elétricos para avaliar o efeito do suplício.)
Na outra ponta do problema, estava o general
De Gaulle, manipulando a crise. Em 1958, Massu e a guarnição francesa da
Argélia rebelaram-se, a República caiu, e De Gaulle voltou ao poder. Com sua
carranca, Massu tornou-se uma estrela.
De Gaulle avisou-o:
— Você é um soldado, e que soldado! É assim
que você deve continuar.
Massu não quis entender o recado. Quando De
Gaulle admitiu a independência da Argélia, ele disse a um jornalista que, ao
recolocar De Gaulle no poder, “talvez o Exército tenha cometido um erro”. Foi
demitido dias depois.
Os oficiais golpistas desencantados com De
Gaulle criaram uma organização terrorista, mataram centenas de pessoas e
planejaram uns 20 atentados contra ele. O general caçou-os. Duzentos e
cinquenta e dois foram presos e dois fuzilados. Nas suas memórias, tratou dos
militares que acabam formando uma elite policial com objetivos políticos:
— Trata-se de uma espécie de cruzada, em que,
num meio isolado, cultivam-se e afirmam-se valores próprios ao risco e à ação.
Por mais sensível e simpático que eu seja a essa concentração de qualidades
militares, devo perceber quão tentadora ela pode se tornar para a ambição
tortuosa de um chefe que a queira usar como instrumento de aventuras.
Massu, o arquétipo da espécie, ficou longe da
hélice e manteve-se disciplinado na caserna. Em maio de 1968, comandava as
tropas francesas em Baden-Baden, na Alemanha. Com Paris insurreta e greves
contra seu governo, De Gaulle sumiu. Apareceu em Baden-Baden.
Até hoje não se esclareceu o que foi fazer
lá. Sabe-se, contudo, o diálogo que teve com o general, ao chegar:
— Então, Massu, sempre idiota?
— Sempre gaullista, meu general.
Aos 92 anos, numa entrevista, Massu admitiu
que a tortura, mesmo num tempo de guerra como na Argélia, foi um erro:
— Poderíamos ter feito as coisas de maneira
diferente.
O general da reserva Mário Fernandes, preso
na semana passada pela trama do golpe de 2022, comandou os Kids Pretos (apelido
dado às Forças Especiais por causa da boina preta) e servia no Planalto. O
tenente-coronel Mauro Cid, outro kid, era ajudante de ordens de Bolsonaro.
Dos 37 indiciados pela Polícia
Federal, 12 passaram pelas Forças Especiais. Essa é uma maneira de
fazer a conta. De outra forma, vê-se também que 12 sentavam praça no primeiro
escalão do governo ou no Palácio do Planalto.
Massu combateu na Indochina, na África e na
Europa. Fez o diabo, mas nunca serviu num palácio. Aprendeu sua lição quando
deu uma entrevista metendo-se com um chefe militar.
5 comentários:
" Os oficiais golpistas desencantados com De Gaulle criaram uma organização terrorista, mataram centenas de pessoas e planejaram uns 20 atentados contra ele. O general caçou-os. Duzentos e cinquenta e dois foram presos e dois fuzilados. Nas suas memórias, tratou dos militares que acabam formando uma elite policial com objetivos políticos:
— Trata-se de uma espécie de cruzada, em que, num meio isolado, cultivam-se e afirmam-se valores próprios ao risco e à ação. Por mais sensível e simpático que eu seja a essa concentração de qualidades militares, devo perceber quão tentadora ela pode se tornar para a ambição tortuosa de um chefe que a queira usar como instrumento de aventuras. "
😏😏😏
Pois é...
Elio Gaspari, fantástico jornalista, biógrafo e historiador. Grato, Gilvan Melo.
Adequando o diálogo usado na coluna para o Brasil do final de 2022:
— Então, coronel Cid (e os outros 35 indiciados), sempre idiota?
— Sempre bolsonarista, meu capitão!
Excelente coluna! Parabéns ao colunista, e ao blog que divulga e reconhece o ótimo trabalho do jornalista!
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