domingo, 17 de novembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

G20 é oportunidade para revisão na política externa

O Globo

Encontro não trará anúncios de vulto capazes de projetar Brasil — e, mesmo ausente, Trump fará sombra ao evento

O encontro dos líderes do G20 no Rio de Janeiro será uma espécie de teste para a política externa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É o primeiro dos dois eventos globais sediados pelo Brasil neste mandato — o outro será a 30ª Conferência do Clima da ONU (COP30), programada para 2025 em Belém. Com a cúpula das 20 maiores economias do mundo e convidados, Lula recepcionará representantes de 40 países. Entre eles, os líderes das duas maiores potências do planeta: o americano Joe Biden e o chinês Xi Jinping. O encontro traz um sinal positivo de retorno do Brasil à cena global e lançará os holofotes sobre o país. Ao mesmo tempo, também evidencia as limitações da diplomacia petista. Não há como evitar concluir que as pretensões brasileiras a exercer maior protagonismo se frustraram com a vitória de Donald Trump nas eleições americanas. Mesmo ausente, Trump certamente fará sombra sobre as discussões.

Na visão dos formuladores da política externa brasileira, o Brasil tem condição de liderar coalizões de países em desenvolvimento para obter concessões das nações mais ricas nos fóruns internacionais. Vem daí o investimento em grupos como o Brics e a insistência em falar num certo “Sul Global”, termo que ganhou vulto em salões diplomáticos de menor relevância.

A ideia motriz dessa diplomacia não é nova: num mundo visto como multipolar, argumentam seus defensores, é mais vantajoso para uma potência média como o Brasil não se alinhar automaticamente com quem quer que seja. Não é uma ideia absurda. Tudo depende de como é posta em prática num cenário que, na realidade, tem ganhado contornos do mundo bipolar dos tempos da Guerra Fria. Com isso, a estratégia de Lula tem resultado na oposição sistemática aos Estados Unidos e países ocidentais, em benefício do eixo China-Rússia.

O efeito dessa estratégia têm sido operações fracassadas, como a tentativa malograda de encontrar uma saída negociada para a fraude cometida pelo ditador venezuelano Nicolás Maduro. Ou a dificuldade de assinar com a União Europeia um acordo comercial com o Mercosul que, para todos os efeitos, já havia sido fechado no governo anterior.

As negociações dentro do G20 são outra evidência de que a estratégia não tem funcionado. Defendida pelo Brasil, a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza deverá ser uma das principais marcas do encontro. Com previsão de durar seis anos, terá como objetivo usar recursos de organismos internacionais. Cada país poderá entrar como doador ou beneficiário e contará com um leque de opções de programas de combate à fome. Mesmo que tenha continuidade, não há sinal algum de concessões ou de garantias de financiamento capazes de mudar o quadro global da fome. Até o momento, não passa de uma jogada de marketing de Lula.

Outras prioridades defendidas pelo Brasil no G20 continuam incertas. Em encontros preparatórios, faltou consenso sobre o tema mais espinhoso: a reforma da governança global, ainda hoje sujeita aos mecanismos criados depois da Segunda Guerra. Como esperado, as maiores potências não apoiam as propostas do Brasil, do contrário perderiam poder.

Embora seja esperada a assinatura de um acordo entre Lula e Biden sobre energia limpa, a iniciativa cairá no vazio assim que Trump estiver na Casa Branca. E, para entender as dificuldades nas negociações sobre transição energética, nem é preciso recorrer ao negacionismo climático de Trump. O próprio Lula nem sequer consegue decidir se quer explorar petróleo na Margem Equatorial do Amazonas.

Devido à resistência de vários países, também é pouco provável que a declaração final do evento contenha decisões significativas sobre temas ainda mais polêmicos, como a taxação dos super-ricos ou a igualdade de gênero. Na hipótese de entendimento, ainda que Biden esteja entre os signatários de um documento mais contundente, tudo também deixará de valer para os Estados Unidos a partir da posse de Trump em janeiro.

A guerra entre Rússia e Ucrânia é outra questão que emperra negociações. No encontro do G20 na Indonésia, há dois anos, houve acordo para condenar a invasão russa e pedir a retirada de tropas. Na Índia, no ano passado, o documento final omitiu qualquer crítica, lamentando apenas o sofrimento dos ucranianos.

É natural que, por reunir democracias e ditaduras, líderes de direita e de esquerda, países com leis e costumes liberais e conservadores, economias ricas e em desenvolvimento, produtores e importadores de petróleo, nações com diferentes tamanhos de território e população, o G20 seja uma plataforma em que o consenso é sempre limitado. Avanços, quando acontecem, são incrementais.

Por isso, Lula não deveria sonhar com um sucesso estrondoso no Rio. Sua preocupação deveria ser evitar que a reunião seja marcada por declarações desastrosas. Ele também faria bem se aproveitasse a oportunidade para revisar as premissas da política externa que já fracassaram. Tentativas de montar coalizões falharam até na América Latina, e é falaciosa a ideia que os países ricos do Ocidente só prestam atenção ao Brasil quando seus interesses são contrariados. Olhando para frente, a dificuldade do Brasil na arena internacional tende a piorar. Trump é contrário a várias das bandeiras brasileiras — da defesa do meio ambiente ao multilateralismo, há pouca margem para entendimento. Uma vez que o encontro só trará as imagens de congraçamento de praxe, sem anúncios de vulto capazes de projetar o Brasil, pode ser uma hora propícia para encetar um freio de arrumação na política externa.

Estabilidade no Brasil é anomalia global

Folha de S. Paulo

Garantia, que trava a gestão, vale para 65% dos servidores e deveria ser limitada a pouco mais de 10% em funções de Estado

O Brasil é o país que mais concede estabilidade plena a seus servidores públicos, o que torna extremamente difícil gerir o quadro de pessoal —seja por mau desempenho, obsolescência da função ou até para simples ajuste da máquina estatal.

A estabilidade remonta a 1915, quando uma lei federal determinou que funcionários com mais de dez anos no cargo só seriam dispensados após processo administrativo. Ao longo do século 20, as regras foram sendo relaxadas, até que a amarra se consolidasse no Estatuto do Servidor Público Federal, de 1990.

O resultado é que atualmente 70% do funcionalismo na União tem estabilidade. Incluídos estados e municípios, exorbitantes 65% dos 12,1 milhões de empregados pelo Estado brasileiro gozam do privilégio.

Embora aqui não seja exagerado o número de servidores, não se encontra paralelo no mundo em abrangência e vantagens que a estabilidade proporciona.

Na pandemia, quando empresas privadas se viram obrigadas a demitir e cortar salários autorizadas por medida provisória, os funcionários estáveis seguiram incólumes e sem cortes nos vencimentos.

Países como Reino Unido, Espanha e Alemanha têm bem menos trabalhadores nessa condição. Na maioria dos casos, a prerrogativa, quando existe, é restrita às carreiras de Estado —sem equivalentes no setor privado, como policiais, juízes e auditores fiscais.

Nesses casos, a proteção do emprego se justifica por assegurar o cumprimento das tarefas com autonomia ante o poder político e econômico.

No Brasil, três quartos dos servidores atuam em funções amplamente encontradas no mercado, como pessoal administrativo, professores e médicos. Pouco mais de 10% estão em funções típicas do setor público.

As poucas tentativas de alterar essa situação desde os anos 1990 têm sido barradas pelo lobby corporativista, que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e boa parte do Congresso se recusam a enfrentar.

Em importante decisão recente, o Supremo Tribunal Federal abriu espaço para contratações pelas normas da CLT, o que, em ao menos em tese, concede mais flexibilidade à gestão. Ainda é preciso observar, no entanto, como tal abertura se dará na prática.

Segundo pesquisa Datafolha, 8 em cada 10 brasileiros defendem que funcionários públicos possam ser demitidos por má avaliação; 71% se posicionam a favor de uma reforma que mude a forma de escrutiná-los. Uma minoria (41%) aprova os serviços oferecidos.

A estabilidade precisa ser revista não para permitir demissões em massa, dado que não se verifica um excesso geral de quadros no país, mas para incentivar a produtividade de um Estado que consome cerca de um terço da renda nacional em impostos.

Vigor da atividade gera mais dúvida que otimismo

Folha de S. Paulo

Dado surpreendente tende a elevar projeções para o PIB do ano, mas impulso do gasto público reforça pressões sobre inflação e juros

Mesmo diante do crescente arrocho monetário e da piora geral das condições financeiras para famílias e empresas, por ora a economia continua dando sinais de vigor.

É o que revela o IBC-Br, índice calculado mensalmente pelo Banco Central que combina o desempenho de todos os setores do Produto Interno Bruto —indústria, serviços e agropecuária.

Em setembro, o indicador subiu 0,8% ante agosto, fechando o terceiro trimestre com alta de 1,1% em relação ao trimestre anterior e de 4,7% sobre o mesmo período de 2023. O dado se soma a uma sequência de resultados favoráveis em atividades diversas, apontando um quadro de solidez.

Com tais cifras, devem subir mais uma vez as projeções para o crescimento da economia neste ano, até então em torno de 3%. Não será surpresa se a expectativa mais consensual chegar a 3,5%, dando prosseguimento à sequência de revisões para cima que vem ocorrendo desde 2021.

O pano de fundo é o mercado de trabalho dinâmico, com desemprego em 6,4% no trimestre encerrado em setembro, o menor patamar da série histórica para o período. Mantém-se a criação de novos postos, formais e informais, de forma generalizada. A renda das famílias continua a avançar em bom ritmo —3,7% a mais que a medida no ano passado, já descontada a inflação.

Entretanto o bom momento da atividade, que deveria ser motivo de júbilo, é fonte de preocupações cada vez mais prementes a respeito de sua sustentabilidade.

Do ponto de vista mais otimista, o desempenho surpreendente pode em parte decorrer das reformas dos últimos anos nas áreas trabalhista e do ambiente de negócios. A agenda volumosa de concessões de serviços públicos na infraestrutura e o efeito multiplicador da pujança do agronegócio e do setor extrativo também são fatores relevantes.

É certo, porém, que boa parte do vigor do PIB nacional decorre do impulso de gastos públicos em trajetória inviável. Não por falta de alerta, houve grave erro de dosagem na PEC da Gastança aprovada na transição de governo, que ampliou despesas em cerca de R$ 150 bilhões anuais.

Se o país estivesse numa recessão ao final de 2022, seria justificada uma expansão orçamentária contracíclica. Mas a decisão perdulária se deu quando a economia já se aproximava da plena capacidade, com consumo —e preços— em ascensão.

A inconsistência se revelou plenamente neste ano. Com inflação se distanciando da meta e desconfiança cada vez maior a respeito da trajetória da dívida pública, o Banco Central iniciou um ciclo de elevação de juros que poderá levar a taxa Selic a 13% anuais nos próximos meses.

Não tardará para que o custo escorchante do dinheiro desacelere o crédito, como já antecipam os bancos, e comprometa o consumo e o investimento. Só um ajuste fiscal sério pode afastar o risco de instabilidade financeira e de uma recaída recessiva.

Trump rechaça moderação ao compor sua equipe

Folha de S. Paulo

Nomes anunciados até agora foram escolhidos não por qualificação técnica ou política, mas por lealdade a bandeiras radicais

O americano Donald Trump começou a cumprir promessas de campanha, como se nota pelas indicações para o primeiro escalão do governo da maior potência do planeta.

Os escolhidos até aqui demonstram lealdade ao presidente eleito, propensão a causar ruptura na administração e escassa associação com a comunidade de estudiosos dedicados a políticas públicas ou mesmo com o que resta do antigo Partido Republicano.

Alguns indicados espantaram até parlamentares governistas —o Senado precisa aprovar várias das nomeações.

Dos postos mais importantes, falta indicar o secretário do Tesouro. Para o Departamento de Estado vai o senador Marco Rubio, sinal de linha dura com governos de esquerda, na América Latina em especial. Para o Conselho Nacional de Segurança, o deputado Michael Waltz, coronel que já foi assessor na Casa Branca e no Pentágono.

Ambos querem confrontar a China e livrar os EUA de compromissos com a defesa da União Europeia e da Ucrânia, com a Otan ou com aliados asiáticos.

A escolha mais controversa é a do ex-deputado Matt Gaetz, cuja carreira é marcada por acusações de irregularidades, para o Departamento de Justiça. Autointitulado populista libertário e dado a confrontações escandalosas com a esquerda, pode até ser vetado por republicanos do Congresso.

Para a Defesa foi indicado Pete Hegseth. Apresentador da Fox News, sem experiência em governo, ex-militar de média patente, é propagandista de causas trumpistas mais radicais.

Tulsi Gabbard, de trajetória errática, foi nomeada diretora da Inteligência Nacional, a supervisão das agências de espionagem. Em 2016, ela apoiou a candidatura presidencial do esquerdista Bernie Sanders. Foi deputada e pré-candidata democrata a presidente. Aderiu oficialmente aos republicanos em 2024.

Um dos nomes mais alarmantes na equipe de Trump é Robert F. Kennedy Jr., ex-democrata, advogado, ambientalista, candidato independente a presidente neste ano. Futuro titular da Saúde, é antivacina, contra o flúor na água, propaga mitos científicos e critica o lobby de empresas.

O multibilionário Elon Musk vai se dedicar à eficiência do governo, mas se desconhece em que cargo ou com qual autoridade. Promete desregulamentação e o corte de nada menos que um terço do gasto federal americano.

O número estapafúrdio dá sinal das ambições desorientadas de Trump. Os auxiliares escolhidos por lealdade à causa derrubam esperanças de moderação.

A alquimia de Lula

O Estado de S. Paulo

Presidente diz estar pronto para tentar a reeleição caso não haja outro nome para ‘enfrentar a extrema direita’ – mas, claro, não se esforça para promover a prometida renovação no PT

Em recente entrevista à CNN internacional, na qual foi convidado a falar sobre 2026, o presidente Lula da Silva se disse pronto para tentar a reeleição e “enfrentar uma pessoa de extrema direita negacionista”, caso não haja outro nome da esquerda apto à tarefa.

Com a habitual característica de reunir, numa mesma declaração, disparates aparentemente contraditórios, o demiurgo afirmou que espera não ser necessário levar adiante sua candidatura e pregou a possibilidade de promover uma “grande renovação política no País e no mundo”, malgrado não ter hesitado em deixar evidente que só ele, hoje, é capaz de evitar o que considera o mal inconcebível – o triunfo da extrema direita.

O petista ainda incorporou um novo ingrediente à sua fala pendular entre a falsa modéstia e a real imodéstia: um candidato mais jovem não vai “resolver os problemas”, disse ele, que terá 81 anos em 2026 e encerrará um eventual quarto mandato com nada modestos 85 anos. Se problemas existem, eles estão escancarados na entrevista de Lula. Não se lhe questiona a liberdade de decidir o que deseja fazer daqui a dois anos para enfrentar o que quer que seja. Mas, com sua declaração, ele afronta a inteligência alheia.

Em primeiro lugar, na cosmologia da política, afirmar que não pensa em se reeleger é o maior sinal de que já opera em modo reeleição. Segundo, até os mais inexperientes auxiliares que dão expediente no Palácio do Planalto sabem que Lula não pensa em outra coisa senão no próprio poder – dele e do PT, necessariamente nesta ordem – e que nunca fez um real esforço para promover a “grande renovação política” que anuncia.

Sem vida partidária pregressa, Dilma Rousseff nunca passou de uma criação sua, sacada em 2010 sob conveniência para que Lula retornasse ao Palácio do Planalto quatro anos depois. Não conseguiu, porque Dilma não quis deixar a cadeira ao fim do primeiro mandato. Em 2018, preso pela Lava Jato, Lula recorreu a outro herdeiro, o hoje ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Atualmente, ninguém no PT é capaz de apostar uma viagem a Cuba para cravar um sucessor natural do presidente. Para Lula, renovação só é digna do nome quando surge umbilicalmente ligada ao líder supremo.

Fato é que Lula não somente já pensa na reeleição, como trabalha diariamente mirando a próxima disputa presidencial. Não são poucos os analistas que avaliam que ele só sairá do páreo se seu governo estiver nas cordas. Como escreveu a repórter Vera Rosa, neste jornal, o “modo disputa 2026″ incluirá campanha publicitária, viagens de ministros para entregar obras e ações de enfrentamento à oposição nas redes sociais.

E é na oposição que está o terceiro problema exposto na entrevista. Lula “admite” o esforço de reeleger-se, ora vejam, para salvar o Brasil e os brasileiros da “extrema direita negacionista”. É como se o extremismo, que no Brasil atende pelo reacionarismo do bolsonarismo dito “raiz”, representasse a única força eleitoralmente viável da oposição.

Não mais representa, como se viu no equilíbrio político e partidário deixado pelas últimas eleições municipais. Embora sejam disputas de natureza distinta, ficou evidente uma inclinação do eleitorado por partidos e lideranças de centro-direita em detrimento de radicais, que correm o risco de ser substituídos ou ver reduzida sua musculatura eleitoral.

O espólio de Jair Bolsonaro, sublinhe-se, já é disputado a tapa, e é por isso que o ex-presidente tem tentado dar prova de vida quase diariamente. Mas Lula deixa evidente que é o bolsonarismo o alimento que lhe garantirá sobrevida eleitoral em 2026, razão pela qual recorre ao suposto mal eterno, representado pelo extremismo de direita, para justificar sua reeleição.

Eis a contradição explícita: Lula diz que não pensa em se reeleger e que só o fará se não houver outro nome capaz de enfrentar a extrema direita e, como pouco se move para encontrar tal nome, fica definido desde já que será ele o provável candidato de si mesmo. Uma alquimia retórica que revela Lula em estado bruto.

O enorme desafio da educação básica

O Estado de S. Paulo

Anuário Brasileiro da Educação Básica até traz alguns avanços na disseminação do ensino no País, mas deficiências e limitações ainda são infinitamente maiores que as poucas conquistas

O porcentual de crianças brasileiras de 0 a 3 anos com acesso à creche subiu de 28% em 2013 para 40% em 2023, de acordo com o recém-divulgado Anuário Brasileiro da Educação Básica, um levantamento da ONG Todos pela Educação realizado em parceria com a Fundação Santillana e a Editora Moderna. Trata-se certamente de um avanço, mas, como bem pontua o estudo, marcado por desigualdades. Esta é, por sinal, uma tônica do levantamento como um todo; apesar de algumas conquistas, a educação básica brasileira segue marcada por deficiências, limitações e desafios.

Além de a maioria das crianças menores ainda não ter acesso a creches, o País tampouco alcançou a universalização da pré-escola para crianças de 4 e 5 anos. Ainda que este indicador tenha melhorado, passando de 89% em 2013 para 94% em 2023, quando avaliado em conjunto com o de acesso a creches, o quadro geral é de um país que continua a negligenciar a primeira infância, período inicial da vida determinante para o desenvolvimento de habilidades cognitivas.

Fundamental para o pleno desenvolvimento do indivíduo e para a promoção do crescimento econômico, o investimento em educação nos primeiros anos de vida também é bem mais barato do que a assistência social oferecida a adultos que cresceram sem desenvolver habilidades básicas.

No Brasil, historicamente, gasta-se mais com o ensino superior do que com a educação básica, síntese de como o País trata seus cidadãos, geralmente beneficiando quem já está em situação privilegiada. É verdade que nem todos os alunos tiveram facilidade para chegar à universidade, mas, enquanto o País não privilegiar o ensino básico, o que não é desculpa para descuidar do superior, seguirá roubando de suas crianças uma possibilidade de futuro.

Nesse sentido, é positivo que, de acordo com o levantamento, o gasto médio com alunos da educação básica tenha crescido 50% nos últimos dez anos. Ainda assim, este investimento segue sendo inferior a um terço da média investida por países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

De acordo com o Anuário, o crescimento no investimento em educação, ainda inferior ao de muitos países, está diretamente relacionado ao novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), aprovado pelo Congresso em 2020.

Para além de ampliar o investimento de modo a garantir que os mais pobres, em especial, tenham pleno acesso à educação, uma das poucas ferramentas que podem fazer com que tenham progresso efetivo na vida, é preciso atenção especial ao professor, o principal ator da área educacional.

Infelizmente, no que diz respeito ao corpo docente, o quadro é desolador. Quase 13% dos professores da educação básica não possuíam graduação em 2023. Na educação infantil, a questão da má formação profissional é ainda pior: um em cada cinco não tinha curso superior. Ocioso dizer que a combinação entre aluno carente e professor mal preparado não leva a lugar algum.

Sem qualificação adequada, não é de estranhar que a maioria dos professores (51,6%) em atividade nas redes estaduais do Brasil não tenha vínculo com as escolas e trabalhe por meio de contratos temporários. Temos aqui a tempestade perfeita: professores com formação deficiente são aprovados em processos seletivos menos rigorosos e, muitas vezes, demitidos após um curto período, o que se traduz em alta rotatividade profissional, um verdadeiro veneno em uma área na qual a continuidade é essencial.

A continuidade profissional está atrelada à formação sólida, que, por sua vez, demanda valorização dos maestros. No entanto, professores de escolas públicas ganham menos do que a média de todas as outras profissões com ensino superior no País. Em 2023, o rendimento médio mensal dos professores das redes públicas com ensino superior foi de R$ 4.942, enquanto o dos demais profissionais assalariados com o mesmo nível de escolaridade foi de R$ 5.747.

Tudo somado, os avanços ainda são muito limitados, enquanto os desafios seguem gigantescos. E quanto mais tempo se perde, maiores eles se tornam.

Expectativa versus realidade

O Estado de S. Paulo

Ambições do Brasil na presidência do G-20 contrastam com plataforma que reconduziu Trump à Casa Branca

Pela primeira vez na presidência do G-20, fórum de cooperação internacional que engloba as 19 principais economias do mundo e dois blocos regionais (União Europeia e União Africana), o Brasil defende uma agenda da qual, pelo menos no papel, é difícil discordar: reforma da governança global, combate à fome e à pobreza e a promoção do desenvolvimento sustentável.

Embora a realidade de cada um dos membros do G-20 seja bastante díspar, os objetivos traçados pelo Brasil são relevantes para todos eles, tanto os de renda média, como é o caso do Brasil, quanto os mais ricos e também os mais pobres. Ainda assim, mesmo antes da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, a agenda brasileira enfrentava desafios, mais notadamente os representados pelas duas grandes guerras em andamento (Rússia x Ucrânia e Israel x Hamas) e por certa descrença no multilateralismo.

O retorno à Casa Branca de um fortalecido Trump, agora com maioria no Senado, maioria na Câmara e uma Suprema Corte francamente conservadora, faz com que a descrença no multilateralismo se torne desprezo. A vitoriosa plataforma eleitoral de Trump é o exato oposto da agenda brasileira à frente do fórum: isolacionismo, relaxamento das regras ambientais e foco no indivíduo, não no coletivo. A vitória do republicano poucos dias antes da Cúpula de Líderes do G-20, nos dias 18 e 19 de novembro, provocou um desalinhamento de expectativas para o encontro de alguns dos principais chefes de Estado do mundo.

A segunda eleição de Trump, inegavelmente, estará no centro das atenções das autoridades internacionais reunidas no Brasil, ainda que oficialmente a cúpula siga os ritos preestabelecidos que esses eventos costumam ter. Neste contexto, é simbólico que Joe Biden, com quem o Brasil perdeu a oportunidade de forjar uma relação mais próxima nos dois anos em que o mandato do democrata coincidiu com o de Lula da Silva, tenha confirmado presença no G-20 apenas depois da derrota de Kamala Harris nas urnas.

A presença dele, agora, é muito mais indicativa de que há no mundo líderes de trajetória democrática alinhados às propostas de defesa do meio ambiente e combate à pobreza do Brasil do que endosso americano às proposições brasileiras. Este, se existe, está com os dias contados. A vinda tardia de Biden ao Brasil serve mais como recado de que, apesar das promessas de Trump e do que prometem ser quatro anos difíceis para o multilateralismo, o comércio global e o meio ambiente, haverá resistência.

Curiosamente, quem mais pode fortalecer o que o Brasil almeja nesta presidência do G-20, mas talvez não consiga ver consagrado durante o seu período de liderança, é o próprio Trump. Se realmente isolar os Estados Unidos do mundo, o republicano obrigará outras nações, especialmente aquelas com as quais ele forçar atritos, a buscarem cooperação.

Se realmente embarcar em uma guerra comercial contra a China, abalando a economia e as finanças globais, Trump estará, involuntariamente, oferecendo um motivo para que os países fortaleçam a governança global e fóruns como o G-20, que surgiu exatamente como resposta à crise financeira de 2008.

 

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