Correio Braziliense
Não havendo consenso, não haverá limites para
a destruição, e, portanto, no tempo futuro, lutaremos, entre nós, pela mera
necessidade de sobreviver
A percepção dos seres humanos sobre o tempo é variável. Para alguns, como escreveu o grande geógrafo e professor Milton Santos, há "tempos lentos e tempos longos". Com certeza, cada um de nós sabe avaliar o impacto do tempo e do que ele traz para nós mesmos e para aqueles que nos cercam. Além disso, fazemos avaliações diferentes sobre os desenvolvimentos da nossa espécie. Por exemplo, desde o início da guerra fria, vivemos em tempo de corrida armamentista, com a criação de armas cada vez mais potentes.
Para alguns, essa corrida é necessária para a
manutenção da paz e do respeito entre os povos. Muitos chegam a defender que o
armamento da população civil é uma maneira eficaz de combate à violência.
Todavia, em vez de armas, por que os recursos nelas aplicados não se destinam a
doenças graves e até aqui incuráveis, como Parkinson ou Alzheimer?
Para outros, é sinal da deterioração da
humanidade, entendendo que o investimento em armas é um indício da nossa
incapacidade de resolver de maneira pacífica e racional as nossas diferenças,
políticas, econômicas e ideológicas. Por isso, temos em algumas regiões
conflitos que duram mais de ano e sem solução a menos — talvez, algo
temporário, como o armistício.
Da mesma forma, frente às mudanças climáticas
acachapantes que vivemos, alguns defendem que a sobrevivência da espécie é mais
importante e que, para isso, temos de desmatar, poluir, matar e destruir.
É ir passando a boiada, cimentando, edificando, erradicando a natureza, pois
onde vivem árvores e bichos vive também o atraso. A riqueza de biodiversidade
tornou-se sinônimo de pobreza de progresso.
Enquanto isso, a ciência alerta para a
redução da Antártida e do Ártico, e algumas instituições, como Nasa, Unesco e
Organização Meteorológica Mundial (OMM), avaliam os impactos catastróficos da
perda do gelo polar, do aumento no nível dos oceanos em 60 ou 70 metros em
100 anos, ao longo do século 21. Argumentam também que o desmatamento
descontrolado, os incêndios florestais para, no lugar, plantar pastos para
criar gado, o excesso de poluição pelas indústrias e pela queima de
combustíveis fósseis, e o efeito estufa causado são os marcos de um tempo de
estagnação científica, de redução na qualidade de vida dos todos organismos.
São as trombetas que tocam antes do juízo
final. Mas os adeptos de passar a boiada nada escutam. Para eles, os seres
humanos são seres superiores, que sobreviverão fora da natureza, acoplados às
inteligências artificiais que manterão e proverão tudo de que precisamos para
continuar existindo. Consideramos que os homens e mulheres fazem parte da
natureza, como todos os primatas.
Para esses negacionistas, nosso tempo não é
de preocupação, mas de progresso, de abertura para o futuro. Não veem nos
tornados, nas enchentes e queimadas globais sinais do fim do mundo, mas de
mudança e, quiçá, entendem que essas disrupturas da natureza promovem a limpeza
da espécie, escolhendo manter apenas os que são fortes, que podem levar a cabo
a mudança necessária.
Portanto, é chegada a hora de nos
perguntarmos quão diferentes somos e quão preparados estamos para
continuarmos juntos neste planeta. É possível vivermos em comunhão uns com os
outros, frente a percepções tão diferentes sobre nossas ações, nossos avanços e
nosso destino?
Talvez, devêssemos fazer um evento global
sobre o desenvolvimento humano, com participação de todos, para avaliarmos as
perdas e os ganhos que tivemos até aqui, nesses milhares de anos de existência.
Que história evolutiva queremos viver daqui por diante? Queremos continuar como
seres orgânicos, integrados e fazendo parte da natureza ou escolhemos nos
transformar em robôs, androides ou ciborgues?
Desconfio, dadas as nossas diferenças
perceptivas, que não chegaremos a um acordo ou posição única, e, então, ficamos
com a pergunta: haverá dois mundos para nós? Será possível essa mesma espécie,
dividida em grupos, ocupar o mesmo planeta de maneira mais ou menos harmoniosa
ou estamos fadados a viver para sempre em tempos de guerra?
É sombrio o que nos espera, pois, não havendo
consenso, não haverá limites para a destruição, e, portanto, no tempo futuro,
lutaremos, entre nós, não pelos caminhos e descaminhos dos nossos avanços e
desenvolvimento, mas pela mera necessidade de sobreviver. Se assim for,
voltaremos para o início da nossa estória e, assim seguimos, não em linha reta,
mas em círculos.
*Geógrafo e professor emérito da Universidade
de Brasília (UnB)
Um comentário:
O "aumento no nível dos oceanos em 60 ou 70 metros em 100 anos" não é em METROS, é em CENTÍMETROS, e 60-70 cm já serão catastróficos! O autor fala no final sobre voltarmos "para o início da nossa estória"... Achei que ele estivesse fazendo reflexões sobre nossa HISTÓRIA, a história humana!
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