segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

O Globo

Queda de ponte revela urgência de privatizar estradas

Governo só leiloou nove das 35 rodovias que pretende licitar. Resultado: manutenção deficiente — e tragédias

A sexagenária ponte Juscelino Kubitschek, ligando os municípios de Estreito (MA) e Aguiarnópolis (TO), dava sinais de que poderia cair a qualquer momento, mas eles foram ignorados. No dia 22, enquanto um vereador filmava os indícios de degradação, parte da estrutura que integra a BR-226 veio abaixo, arrastando veículos que passavam. A queda causou a morte de pelo menos dez pessoas — outras sete permanecem desaparecidas — e gerou preocupação sobre a contaminação da água do Rio Tocantins pelas cargas tóxicas nas carretas que se acidentaram.

Ninguém pode se dizer surpreso. Um documento do próprio Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), responsável pela administração da rodovia, apontou em 2020 problemas como inclinações nos pilares, rachaduras e fissuras. Os últimos reparos de vulto ocorreram entre 1998 e 2000. Em maio deste ano, o Dnit abriu licitação para reformar a estrutura, lhe dar “melhores condições de segurança e trafegabilidade”, além de “reabilitar e aumentar a sobrevida”. As empresas que se apresentaram não preencheram os requisitos exigidos. A tragédia foi mais rápida.

Mais uma vez fica patente o descaso com a infraestrutura do Brasil. Deveria ter servido de alerta o acidente com uma ponte na BR-319, no Amazonas, em setembro de 2022. A estrutura sobre o Rio Curuçá desabou enquanto carros passavam. Cinco pessoas morreram e mais de dez ficaram feridas. Apenas dez dias depois, outra ponte caiu na mesma rodovia sem deixar vítimas. Nos dois casos, os riscos eram conhecidos.

O governo precisa cuidar melhor da infraestrutura sob sua administração, especialmente pontes e viadutos. Se a rodovia está aberta, os motoristas confiam que existem condições de segurança. Não deveriam. De modo geral, a conservação é insatisfatória. A última pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT) mostrou que 33,6% das rodovias mantidas pelo poder público no Brasil foram classificadas como ruins ou péssimas, quase seis vezes a parcela registrada nas estradas sob concessão (6,1%).

A conclusão é óbvia: a União deveria transferir à iniciativa privada as rodovias passíveis de concessão. Não só para dar-lhes melhores condições, como também para poder se dedicar às que dependem de recursos públicos para manutenção e obras. O programa de concessão de rodovias em andamento é ambicioso no papel, mas avança lentamente na prática. Como mostrou reportagem do GLOBO, em dois anos de mandato, o atual governo licitou apenas nove dos 35 trechos rodoviários previstos para leilão até 2026. É preciso acelerar.

Com o aquecimento da economia, tem aumentado o tráfego de veículos de carga e de passageiros nas estradas. Isso traz mais desgaste, mais acidentes e exige manutenção mais rigorosa e mais frequente da infraestrutura. Manter rodovias e pontes conservadas significa dar mais segurança aos usuários. É o que se espera de um governo que impõe aos contribuintes uma das mais altas cargas tributárias do mundo. Não cabe ao cidadão, e sim ao poder público, fiscalizar e conservar essas estruturas. O cidadão não pode pagar a conta da inépcia governamental ou da lentidão para conceder ao setor privado aquilo que o público não tem condição de manter. Tragédias não respeitam os prazos da burocracia.

Sem estancar fuga de cérebros, Brasil perderá avanços agrícolas

O Globo

Com maior dificuldade para manter cientistas no país, estudos ligados ao campo já caíram 6% em 2023

Nos últimos anos, o Brasil perdeu 6,7 mil cientistas, segundo o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Todas as áreas de pesquisas foram afetadas — entre elas algumas estratégicas para o agronegócio, como as relacionadas à agricultura tropical, ao manejo sustentável e aos bioinsumos.

O Brasil colherá 322,5 milhões de toneladas de grãos na safra 2024/25, o quíntuplo do que colhia há 40 anos. A área cultivada não chegou a dobrar. As colheitas crescem mais que as áreas de plantio, como resultado dos aumentos de produtividade trazidos pelo trabalho de pesquisadores em laboratórios, em especial os da Embrapa. Manter no país pesquisadores e repatriar quem saiu para o exterior deveria ser política estratégica de Estado. Todos os setores devem ser objeto de medidas para repatriar o conhecimento, mas a agropecuária, há algum tempo setor mais dinâmico da economia brasileira, deve ser prioridade.

Em comparação com outros países, o Brasil tem sido “inconstante” em suas políticas para reter cientistas, nas palavras do ex-presidente da Embrapa Maurício Lopes. Entre 2019 e 2023, pesquisadores na área de ciências agrárias publicaram 65,9 mil artigos científicos. É possível que o número seja maior, porque foram editados, no mesmo período, 206,1 mil textos sobre ciências da natureza, área em alguma medida relacionada à de ciências agrárias. Em 2023, a publicação de pesquisas relacionadas ao campo caiu 6% em relação a 2022. No geral, incluindo todos os campos do conhecimento, houve retração de 7,2%. O Brasil se manteve como o 14º país com mais publicações de artigos científicos. Mas isso não significa muita coisa se a fuga de cérebros se mantiver.

O mais recente êxito da ciência e tecnologia no campo foi a safra de 2023/24 de algodão, que permitiu ao Brasil tornar-se o maior exportador global do produto, ultrapassando os Estados Unidos — 2,7 milhões de toneladas embarcadas ante 2,4 milhões de toneladas de algodão americano. A atividade foi reestruturada a partir de 1983, quando uma praga dizimou as plantações. Hoje, é possível rastrear a origem do algodão brasileiro e garantir que sua produção é sustentável. Sem pesquisa, isso seria impossível.

Comprimidas pelo crescimento de despesas obrigatórias do governo, as bolsas de estudos para pesquisadores continuam defasadas, apesar do aumento recente após dez anos de congelamento. Apenas no ano passado foi permitido a pesquisadores acumulá-las com outras atividades remuneradas. Ainda assim, a perspectiva para um pesquisador de ponta no Brasil é ridícula perto das propostas e dos caminhos disponíveis nas grandes instituições científicas do planeta. Se não estancar a fuga de cérebros, o país perderá não apenas a vantagem comparativa que lhe permite adaptar culturas a diferentes condições de solo e clima, mas a possibilidade de avançar em produtividade noutros setores da economia.

Embalada, economia deverá desacelerar aos poucos em 2025

Valor Econômico

O cenário visto de hoje é de um PIB ao redor de 2% nos próximos dois anos, se não houver turbulências nos mercados globais

Não é fácil desacelerar a economia brasileira, mas o Banco Central aumentará os juros igual ou acima do nível do governo de Dilma Rousseff, 14,25%, quando o IPCA era muito mais alto (acima de 10%), para tentar acalmar uma inflação que pode romper o teto da meta pelo segundo ano consecutivo. O vigor das atividades econômicas, que levaram o PIB para perto de 3,5% no ano, não deve sofrer um freio abrupto. A desaceleração dos salários, do mercado de trabalho e do consumo ocorrerá mais lentamente no primeiro semestre para se tornar mais efetiva no segundo. As projeções do governo e analistas privados convergem para algo entre 1,8% e 2,5%, estimativa que coincide praticamente com a da capacidade potencial de crescimento da economia.

A maxidesvalorização do real (27%) mudou para muito pior tanto as expectativas inflacionárias quanto o nível de aperto monetário que o BC terá de fazer para domar a inflação. Mesmo com a alta da taxa Selic a 12,25% e a promessa de chegar a 14,25% em março, apenas no terceiro trimestre do ano que vem o IPCA cairá abaixo do teto de 4,5%. O dólar mudou de patamar, como mostra o painel de estimativas publicado na sexta pelo Valor, e a maioria delas coloca R$ 6 por dólar como média. A depreciação do real acelerou muito a partir de novembro, o que indica que o repasse aos preços pode ter um longo caminho à frente, se a alta do dólar não for sancionada pela demanda.

A demanda, por seu lado, teve comportamento exuberante no ano, impulsionada pelo aumento da massa salarial, dos salários e da mão de obra empregada. A Pnad Contínua mostrou que a média do desemprego do trimestre encerrado em outubro é a menor da série histórica, iniciada há 13 anos: 6,1%. O salário médio habitual real no ano até novembro evoluiu 3,4%, e já está perdendo para a corrida dos preços - o IPCA acumulou 4,29% até o mês. Mas o avanço da massa de rendimento real habitual é bem maior, 7,2% no mesmo período, e o total de rendimentos é recorde (R$ 332,7 bilhões mensais), com acréscimo de R$ 22,5 bilhões.

Os indicadores iniciais do último trimestre do ano não apontaram até outubro perda de fôlego. A produção industrial caiu 0,2% no mês em relação ao anterior, mas exibe bom desempenho ante outubro de 2023 (5,8%) ou no ano, 3,4%.

Os serviços, no entanto, apresentam taxa de expansão quase “chinesa”, e a inflação do setor, segundo o Banco Central, que já era incompatível com a meta de inflação, voltou a subir. Nos doze meses até outubro, a taxa de expansão é de 7,4% e no ano, de 7,8%. Contra o mesmo mês do ano passado, atinge 9,6%. Pela Pnad Contínua, os serviços lideram as contratações, com transporte e armazenagem (5,8%), outros serviços (5%) e informação e comunicação (4,4%). O segmento de transportes, armazenagem e correio lidera em aumentos salariais, tanto na comparação com o trimestre de 2023 como com o anterior deste ano (4,7%). O comércio, um dos maiores segmentos de serviços, acumula alta de 8,8% no ano até outubro e o varejo ampliado, que inclui carros e construção, 7,9%.

Além dos salários, o aumento do crédito manteve-se na casa dos dois dígitos boa parte do ano. Até novembro, em 12 meses, o estoque subiu 10,7% e, para pessoas físicas, 11,8%. No entanto, as concessões apresentaram recuo no mês de 0,7%, e esse é o sinal de por onde a política monetária freará a oferta de dinheiro que está irrigando o consumo. Em 12 meses as concessões cresceram 14,5%. O BC, em seu relatório de inflação de dezembro, estimou um avanço de 9,6% no estoque em 2025, o que não parece uma desaceleração compatível com a perda de ritmo que se quer impor à economia.

Ao lado do aumento de uma dose já severa de juros, as condições financeiras pioraram significativamente. O câmbio se desvalorizou, a bolsa está em queda, o prêmio de risco medido pela chance de default também subiu e os juros americanos têm apontado comedidamente para cima. Diante disso, é provável que não só os bancos comecem a ser bem mais seletivos e reduzam a oferta de crédito, como a própria demanda se retraia, com aumento da inadimplência, que parara de crescer há um bom tempo.

O outro componente do forte crescimento da economia, o gasto público, deve ter expansão menor no ano. Embora mais comedido, haverá algum aumento de despesas. O Prisma Fiscal estima que em 2024 o governo terá um déficit primário de R$ 62 bilhões na média, que se elevará para R$ 92,2 bilhões em 2025. A decisão por um ajuste fiscal pífio em novembro, que provocou alvoroço nos mercados, indica que o presidente Lula não está convencido de que uma ação fiscal vigorosa poderia reduzir rapidamente a inflação (que para ele está contida) e manter uma expansão sustentável.

A deterioração das expectativas, em contraste com o vigor da economia, provavelmente conduzirá o aperto monetário até 2026, ano eleitoral. A expectativa de recessão, prevista várias vezes e não realizada, continua pouco provável. O cenário visto de hoje é de um PIB ao redor de 2% nos próximos dois anos, se não houver turbulências nos mercados globais. O ideal seria que a política fiscal ajudasse agora, em momento delicado, a política monetária.

Força bruta marca a política internacional em 2024

Folha de S. Paulo

Mortandade por conflitos saltou 37%, com espiral de violência na Ucrânia e no Oriente Médio; retorno de Trump preocupa

Em uma tendência visível desde o começo desta década, o ano que chega ao fim foi marcado por mais emprego da força bruta no mundo, tanto nas relações internacionais como em desdobramentos de crises políticas domésticas.

Sem surpresa, como indicou o prestigioso Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londresa mortandade por conflitos teve um salto de 37%. O aumento foi impulsionado pelo massacre israelense na Faixa de Gaza, uma guerra iniciada pela covardia dos terroristas do Hamas em 7 de outubro de 2023.

Israel buscou não só a justa punição mas dar um basta à pressão exercida pelo Irã por meio de seus prepostos. O Hamas foi reduzido a uma força de guerrilha, e o Hezbollah, desmantelado.

Mesmo Teerã, a despeito de toda sua retórica belicista, recuou de uma guerra total, não menos porque Tel Aviv tem a iniciativa, mas suas armas são americanas.

O fim do ano ainda reservou uma notícia alvissareira no conteúdo, a derrubada do regime sanguinário de Bashar al-Assad na Síria, mas preocupante na forma: a força motriz do evento é um grupo radical que tenta fingir que não nasceu da Al Qaeda.

Caberá à Turquia, que entrou no jogo apoiando os rebeldes, fazer valer a moderação. O país, por sinal, segue em sua expansão por meio de força, como já havia feito em 2023 ao respaldar a guerra do Azerbaijão contra os armênios que se achavam protegidos pela Rússia —assim como Assad.

Potência nuclear, o país de Vladimir Putin segue no centro dos temores globais desde a invasão da Ucrânia, em 2022. O autocrata teve um ano de vitórias no campo de batalha, pressionando Kiev. Em casa, viu seu mais vocal adversário, Alexei Navalni, definhar e morrer na cadeia.

Já os ucranianos fizeram uma custosa e inútil invasão do sul russo. A autorização dada por EUA e aliados para que eles usem suas armas contra o território inimigo até aqui só fez piorar a violência da retaliação de Moscou.

O recurso à truculência grassou em locais menos visíveis na geopolítica global, do Sudão em conflitos internos à Venezuela de Nicolás Maduro —cuja fraude eleitoral conseguiu alienar até o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sempre disposto a adular ditadores amigos.

Até a Coreia do Sul viu seu presidente tentar um autogolpe. Hoje, porém, a próspera nação asiática é uma sólida democracia, cujos fundamentos impediram o candidato a tiranete.

Esse cenário conturbado aguarda 2025 e seu evento de abertura: a volta de Donald Trump à Casa Branca. A julgar pelo primeiro mandato, o Oriente Médio pode esperar mais turbulência.

Já a Ucrânia terá de negociar com Putin, uma vitória na prática da "manu militari". O embate político mais duro dos EUA com a China soa incontornável, e a guerra comercial prometida por Trump chegará a todo o mundo, inclusive suas franjas, onde está o Brasil. Dias difíceis estão à frente.

Banho de mar exige cuidado extra neste verão

Folha de S. Paulo

Qualidade das praias caiu ao pior nível desde 2016, é preciso expandir saneamento e conter ocupação urbana desenfreada

A chegada do verão, em 21 de dezembro, trouxe consigo uma má notícia para o litoral brasileiro: a qualidade de suas praias caiu ao pior nível já registrado desde 2016, quando esta Folha iniciou o levantamento.

O mapa catalogou a balneabilidade de 861 praias em 14 estados, e apenas 258 estiveram próprias durante todas as medições deste ano; ou seja, foram consideradas "boas". A série histórica contempla 8 dos últimos 9 anos —a exceção é 2020, cujas aferições foram prejudicadas em razão da pandemia de Covid-19.

Em um momento em que turistas começam a se espalhar pelos mais de 7.300 km da costa nacional, é preocupante observar que, em 2016, 384 dessas mesmas praias eram consideradas adequadas o ano todo para banho —ou 44% do total, ante 30% neste ano.

A pesquisa segue normas federais. Um trecho é considerado próprio se não tiver registrado mais de 1.000 coliformes fecais para cada 100 ml de água na semana de análise e nas quatro anteriores. Além das 258 consideradas "boas", há as "regulares" (311), "ruins" (146) e "péssimas" (146).

Símbolo da orla carioca, o Leblon, em um dos seus trechos, recebeu a classificação "ruim", assim como em 2023. Já Morro de São Paulo, badalado balneário no sul da Bahia, registrou piora em duas praias: de "boas", passaram para "ruim" (imprópria para mais de 25% das medições) e "péssima" (imprópria em mais da metade dos testes) em 2024.

A ocupação desordenada de áreas litorâneas —seja de favelas em morros, encostas e manguezais, ou mesmo por resorts e condomínios de alto padrão à beira-mar— pode ser um dos motivos para a piora nesses dados.

O lançamento de esgoto sem tratamento em rios, canais e no próprio mar é a principal causa de contaminação. Esse cenário pode se agravar com o descarte irregular do lixo, o despejo inapropriado de águas pluviais e o uso intensivo das faixas de areia.

A má qualidade da água traz graves impactos ambientais, com prejuízos ao ecossistema, ao comprometer a cadeia alimentar; na saúde, ao ampliar o risco de infecções e doenças gastrointestinais ou de pele; e econômicos, por afastar visitantes em regiões dependentes do turismo.

O futuro sustentável de um dos litorais mais belos do planeta dependerá da extensão urgente da rede de saneamento básico, e as concessões ao setor privado podem ser um alento nesse sentido, mas também do combate às construções irregulares e à especulação imobiliária —e, por que não, da educação ambiental de turistas e moradores.

2024: teste de estresse das democracias

O Estado de S. Paulo

A ascensão dos populismos parece confirmar o mal-estar das democracias. Mas as taxas surpreendentes de alternância de poder sugerem que eleitores estão se mobilizando para saná-las

Em 2024, mais de 70 países que abrigam metade da população mundial promoveram eleições envolvendo cerca de 2 bilhões de eleitores. Esse superciclo foi descrito como o maior ano eleitoral da história e um grande teste de nervos para a democracia. Qual o resultado?

Abstraídos os regimes autocráticos como Rússia e Venezuela, a tendência mais generalizada que emergiu das urnas foi o repúdio aos incumbentes. Em geral, ou eles perderam o poder (como nos EUA, Reino Unido, Coreia do Sul, Portugal, Uruguai e Botswana) ou sofreram reveses significativos (França, Índia, Japão e África do Sul).

Uma possível razão é circunstancial. A pandemia passou, mas a ruptura nas cadeias de fornecimento e seu impacto inflacionário continuam a reverberar. Ao mesmo tempo, a turbulência econômica parece alimentar um mal-estar político crônico. Os eleitores estão frustrados com o funcionamento de suas democracias e impacientes com seus líderes e instituições.

Essa irritação parece estar relacionada a outra tendência, particularmente nas democracias ocidentais: a ascensão de partidos populistas de direita. Nos últimos anos, esses partidos ganharam posições em países como França, Alemanha, Itália, Áustria, Portugal e Holanda, além do Parlamento Europeu. Mesmo no Reino Unido, apesar da vitória dos trabalhistas, o partido nativista Reform UK teve ganhos substanciais. A direita populista é uma força consolidada na Europa. Se lá ela é abastecida por apreensões com a imigração, na América Latina é mais eclética. Mas há temas comuns a figuras como Javier Milei na Argentina ou Nayib Bukele em El Salvador, como a oposição ao aborto ou à ideologia de gênero e, sobretudo, a linha-dura contra o crime.

O México é a exceção que confirma a regra, ao menos parcialmente: o partido Morena é populista, mas de esquerda, e, dentre todas as grandes economias, foi a única em que os incumbentes ampliaram seu poder.

Já os EUA materializam a regra. O Partido Republicano, dominado pelo populismo conservador de Donald Trump, conquistou a presidência e as duas Casas legislativas. As eleições nos EUA ilustram outro traço peculiar do ciclo de 2024: uma maior relevância da geopolítica. Na Europa, o conflito na Ucrânia é prioritário nas escolhas eleitorais. Nos EUA, o apoio a Kiev causa divisões entre os republicanos, tal como o apoio a Israel causa divisões entre os democratas. Os EUA também exemplificam o aprofundamento de divergências políticas sobre cultura, ideologia e identidade.

Quanto ao Brasil, as duas tendências dominantes – a impaciência com os incumbentes e o robustecimento da direita populista – sugerem adversidades para o presidente Lula em 2026. Mas o que elas revelam sobre o “teste de estresse” da democracia global?

A difusão populista parece confirmar a “recessão da democracia” para a qual alertam organizações dedicadas a mensurar instituições democráticas e liberdades civis. Por outro lado, o traço mais universal e objetivo do ciclo de 2024, o repúdio aos incumbentes, permite relativizar essa percepção. Afinal, se o mundo experimenta uma onda de populismo de tendência autocrática, a consequência seria uma taxa crescente de vitórias dos incumbentes, que teoricamente dominam a máquina estatal e o discurso político. Mas o que se viu foi o oposto: alternância de poder generalizada.

Somem-se a isso outros indicadores de vigor democrático: as taxas de comparecimento às urnas aumentaram, protestos violentos diminuíram e campanhas de desinformação tiveram, tudo indica, efeitos marginais. Em Taiwan e na Moldávia, por exemplo, candidatos que enfrentaram as duas máquinas de desinformação mais formidáveis do planeta, as autocracias chinesa e russa, venceram.

Seria irresponsável negligenciar sintomas de erosão democrática. Episódios como a ascensão da extrema direita filonazista na Alemanha ou o assalto ao Capitólio nos EUA seriam impensáveis há 15 anos. Mas as taxas de alternância de poder revelam um grau substantivo de competitividade nas eleições. As democracias podem viver um momento de mal-estar, mas enquanto se mantiverem abertas à competição os cidadãos terão nas mãos o remédio para saná-las.

A oposição petista ao governo

O Estado de S. Paulo

No Brasil do petismo é assim: o partido do presidente e líder da coalizão é o primeiro a tentar barrar um pacote de medidas que, em tese, integra uma agenda prioritária do governo

“PT quer mudanças na proposta do BPC para apoiar o pacote do governo”, informou manchete recente do Estadão, acerca das ações promovidas pela tropa de choque petista contrária ao pacote fiscal anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O partido mirou, em especial, nas alterações propostas pela equipe econômica para o Benefício de Prestação Continuada (BPC) – pago a idosos com mais de 65 anos em condições de vulnerabilidade e a pessoas com deficiência.

Foi o prenúncio do que, dias depois, se confirmaria na votação na Câmara dos Deputados, quando seis parlamentares do partido do presidente Lula da Silva – incluindo o ex-dirigente da sigla Rui Falcão (PT-SP) – votaram contra os projetos enviados pelo governo. “Minha relação não é de vassalagem”, avisou o agora declaradamente antigovernista Falcão, tido como homem próximo a Lula. Como os dissidentes petistas, outros partidos da base de apoio ao governo, como o PSOL e a Rede, também rejeitaram o pacote e foram de pouca serventia ao Palácio do Planalto para aprovar o ajuste fiscal e evitar uma desmoralização maior de Haddad.

Nada a estranhar na resistência do partido diante do pacote, exceto por um detalhe que faz do PT uma agremiação quase única no mundo, e o ambiente de votação dos projetos, um caso exemplar desses paradoxos que a política brasileira é capaz de produzir: o partido do presidente e líder da coalizão governista foi aquele que primeiro e mais enfaticamente tentou barrar um pacote que, em tese, é uma agenda prioritária do governo. Trata-se de uma oposição ao governo dentro do próprio governo. Eis o Brasil do petismo.

Conforme antecipado pelo próprio líder do governo na Câmara dos Deputados, José Guimarães (PT-CE), o partido trabalhou até o último instante para desidratar o pacote e, no caso do BPC, os parlamentares aprovaram regras menos rígidas para o recebimento do programa em relação ao que foi proposto originalmente. Com a mudança do texto, o alívio nas contas será menor do que o previsto.

A artilharia petista no plano fiscal é conhecida e foi realimentada com a recente resolução aprovada pelo Diretório Nacional do PT – o texto, de 10 páginas, elogia Haddad por propor a taxação dos super-ricos e diz que a sociedade precisa se manter atenta “às artimanhas da Faria Lima”. Na síndrome persecutória petista, austeridade é palavrão e equilíbrio de contas públicas é conspiração do “mercado” para desviar o País do caminho virtuoso traçado pelo projeto do partido.

É um enredo antigo. No início do segundo mandato de Dilma Rousseff, o então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, tentou emplacar um ajuste fiscal e passou a ter como principal inimigo no Congresso não o presidente da Câmara e futuro algoz de Dilma, Eduardo Cunha, mas o próprio PT. A tal ponto que outros partidos da coalizão e mesmo legendas oposicionistas, dispostos a apoiar o ajuste, recuaram sob um argumento lógico: se nem o partido da presidente apoiará medidas necessárias, porém impopulares, por que haveriam de fazê-lo?

Hoje ocorre algo similar. De aliados como o PSOL não se esperaria muito – espécie de PT do B, a legenda tão somente confirmou a suspeita de que a moderação exibida durante a eleição municipal pelo seu principal líder, Guilherme Boulos, não passava de artifício eleitoreiro. Mas o PT, goste-se ou não, é a principal força da esquerda e âncora maior de sustentação do governo. Sob a liderança de Gleisi Hoffmann, no entanto, prefere atuar como se liderasse a oposição. A má vontade do partido acabou oferecendo à Câmara uma boa justificativa para emparedar o governo enquanto votava o pacote.

A boa política exige separar republicanamente o que é governo e o que é partido. Também não se espera de lideranças partidárias o acolhimento acrítico de todas as iniciativas do governo, muito menos que sejam vassalos do presidente. O problema é que, no universo lulopetista, tal separação só existe mesmo quando se trata de responsabilidade fiscal. Fora esse tema, contudo, não é de hoje que Lula e seus sabujos veem o governo como mera extensão dos interesses partidários.

Anatomia da inflação

O Estado de S. Paulo

Choques climáticos e recorde do dólar fizeram da alimentação o vilão da inflação em 2024

Quando 2024 começou, não havia indicação da intensa pressão que os alimentos teriam sobre a inflação, apesar de o País já estar convivendo com o fenômeno El Niño – que se estendeu até meados do ano, trazendo chuvas no Sul e seca no Norte e Nordeste. Em janeiro, o País ainda estava sob a euforia do excelente desempenho do agronegócio brasileiro em 2023 que, acumulando recordes na safra de grãos e nas exportações, impulsionou o crescimento de 3,2% do Produto Interno Bruto (PIB).

Os choques climáticos vieram mais fortes do que o esperado, com ondas de calor sem precedentes, a pior estiagem da história e enchentes devastadoras, como a que atingiu o Rio Grande do Sul. A seca extrema contribuiu para elevar os efeitos dos incêndios florestais que reduziram pastagens. Junto com os reveses do clima, a desvalorização contínua do real ante o dólar (apenas dois meses do ano, agosto e setembro, tiveram saldo a favor do real) completou o cenário desfavorável, encarecendo insumos.

O grupo “Alimentação e Bebidas” chegou ao fim de 2024 contribuindo com mais de um quarto (26%) do IPCA, o índice oficial de inflação, no acumulado em 12 meses, de dezembro de 2023 a novembro de 2024, de acordo com cálculos do Ibre, da Fundação Getulio Vargas. O IPCA no período extrapolou a meta do governo, de 3% ao ano, e bateu 4,87%, mostrou o IBGE. O resultado fechado do ano será conhecido em 10 de janeiro, mas as estimativas do mercado beiram os 5%.

O levantamento do Ibre/FGV confirma o que o monitoramento do IBGE já vinha indicando: o aumento do índice de difusão das pressões inflacionárias. Traduzindo, ao longo dos meses os aumentos de preços se espalharam por todos os setores. Mas é nas gôndolas dos supermercados que a inflação fica mais explícita, com disparada de preços como a do café (32%) e leite longa vida (20,4%). O forte aumento das carnes (15,4%) fez picadinho da promessa de campanha de Lula da Silva de fazer o brasileiro voltar a consumir “picanha com cervejinha”.

Lula não se deu por vencido e, em agosto, nas várias entrevistas a programas de rádio, fiel ao hábito de enxergar apenas o que quer ver, insistia em dizer que estava cumprindo o que prometera. Mas os dados mostram que a inflação da alimentação no domicílio, ou seja, as compras que as famílias fazem rotineiramente nos mercados, tem respondido por mais da metade da alta verificada em alimentos. E pesa mais sobre os mais pobres, que comprometem parcela maior de sua renda com alimentação.

A inflação, como já ficou comprovado, não pode ser contida na marra. Na última vez que esse artificialismo foi tentado, durante a gestão de Dilma Rousseff, o País enfrentou uma grave recessão. A política monetária contracionista do Banco Central, com a elevação dos juros, tenta apenas frear a disparada até que os fundamentos econômicos construam a estabilidade, o que significa, agora, que o governo deve gastar menos para equilibrar suas contas. Se Lula da Silva se convencer desse princípio básico, o caminho para a queda da inflação estará aberto. Mas tudo indica que o País ingressará em 2025 sob pressão, pois Lula está mais Lula do que nunca.

O risco das estradas no meio do caminho

Correio Braziliense

A mobilidade eficiente exige ações do poder público e do cidadão pela garantia do respeito à vida e pelo crescimento do Brasil

No Brasil, as estradas são a principal alternativa de deslocamento por demandas de trabalho e de lazer. Nesta época, com as festas de fim de ano e as férias, o movimento é intensificado devido ao aquecimento da economia — que exige o transporte de um volume maior de mercadorias — e, principalmente, em decorrência das viagens de descanso. Esse aumento de circulação no asfalto escancara a falta de segurança e manutenção nas pistas, além de comprovar que a imprudência segue ao lado de muitos motoristas. Questões que o país, com sua extensa malha rodoviária, ainda não conseguiu deixar para trás. 

No último dia 21, perto do Natal, um acidente na BR-116, altura de Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri, em Minas Gerais, provocou 41 mortes. Uma carreta que transportava granito, um ônibus e um carro de passeio  envolveram-se na trágica ocorrência, a pior da série histórica nas estradas federais desde 2007. As causas da colisão são investigadas, mas é possível que problemas crônicos tenham contribuído. Perto do local, um radar de controle de velocidade foi retirado, a Polícia Civil apontou que o condutor do caminhão estava com a CNH suspensa e testemunhas disseram que um pneu do coletivo estourou. Tudo será devidamente esclarecido pelas autoridades competentes, porém as hipóteses nos fazem pensar que a fiscalização efetiva e o cumprimento das leis de trânsito poderiam ter evitado tanta dor.

Agora, na contagem regressiva para o réveillon, o alerta de perigo nas rodovias continua em nível máximo, com os brasileiros se deslocando para a virada do ano e também as férias. A parte que compete aos motoristas precisa ser considerada. Se na rota há diversas armadilhas, quem está ao volante deve adotar medidas para minimizar os riscos. Fazer a revisão do veículo, dirigir com cautela, respeitar as regras e as sinalizações — como limite de velocidade — e planejar bem o trajeto são responsabilidades que não podem ser negligenciadas.

Aos governos que têm a incumbência de cuidar das estradas brasileiras, a tarefa é grande e não está em dia. As perdas humanas, incomensuráveis, se acumulam há décadas e transformam as estatísticas de sangue que marcam o território nacional em sofrimento sem fim para as famílias. Os desastres e a ausência de condições ideais exercem ainda impacto direto na economia e no desenvolvimento. Sem fluidez segura nas pistas, o crescimento do país, que decidiu apostar no transporte rodoviário, não dá sinais de mudança significativa de rumo para outras alternativas, fica travado.   

É necessário ampliar os recursos destinados às estradas. A melhoria da infraestrutura é um processo que requer constância e investimento. A mobilidade eficiente exige ações do poder público e do cidadão pela garantia do respeito à vida e pelo desenvolvimento socioeconômico do Brasil. As concessões à iniciativa privada precisam ser conduzidas e monitoradas por autoridades com todo o rigor possível. Esforços nunca são demais para que o país cumpra o caminho correto e conquiste uma rede rodoviária que deixe de ser sinônimo de perigo para a população e atinja o potencial que o mercado necessita. 

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