Muitos permanecem, mesmo passadas décadas,
como se fossem amigos queridos
Encontrei duas ou três vezes com Paul Auster,
sempre nas ruas arborizadas do Brooklyn nova-iorquino. Com Mario Vargas Llosa,
somente num regabofe paulistano — o conhecido pé de valsa peruano se aproximou
sorrateiro e simpático enquanto eu conversava com Bruna Lombardi. Infelizmente,
nunca esbarrei em Javier Marias ou Ismail Kadaré.
O que os une, além da indesejada das gentes
(exceto o peruano, que vive na Espanha), é termos nos acostumado às suas obras,
quase sempre seminais, levados num mergulho pelo afeto de suas criações;
enquanto muitos permanecem, mesmo passadas décadas, como se fossem amigos
queridos. De Vargas Llosa, difícil esquecer o enlouquecido novelista Pedro
Camacho, de “Tia Júlia e o escrevinhador”, ou do início de “Conversa na
Catedral” quando perguntam ao narrador, desolado com a história política do
Peru (substitua por Brasil):
— Onde nos fodemos?
Vale lembrar que a “Catedral” do título é um boteco.
Nas livrarias estão seus derradeiros livros.
Llosa anunciou que não mais escreverá romances. Sempre é um luto para os
leitores, certo tipo de orfandade. Porque soa como um abandono ou rompimento
brusco e inesperado, semelhante à triste notícia do AVC de Keith Jarrett, que o
afastará em definitivo da criação de novos álbuns. Desde a adolescência eles me
acompanham, estão próximos; como irmãos mais velhos e admirados de quem
esperamos companhia, suas histórias se misturam às minhas tardes preguiçosas ou
às longas noites em que o sono é derrotado pela urgência dos enredos.
Em comum, entre eles, a melodia cotidiana dos
episódios banais e o olhar sobre o poder, sobre como a política manipula nossas
vidas. O albanês Ismail Kadaré, morto em julho passado, no ótimo “Um ditador na
linha” especula sobre o telefonema de Josef Stálin a Boris Pasternak. São
várias as versões do diálogo, mas acredito na de Isaiah Berlin, segundo a qual
Pasternak não honrou seu tamanho moral. À época, era o grande escritor russo,
celebrado por seu “Doutor Jivago” (no cinema, com a linda Julie Christie e Omar
Sharif), e sua resposta deixaria Osip Mandelstam sem abrigo e ao relento
político. Stálin tinha em mente o assassinato do poeta. Pasternak, por essa
versão, disse ao tirano que tinha ideias diferentes de Mandelstam e sabia,
claro, que sua irrelevante sinceridade conduziria o outro ao degredo. Talvez
fosse medo de desagradar ao sanguinário ditador ou a conhecida inveja entre
escritores. Não deu outra. Mandelstam sucumbiria num campo de trabalho forçado,
próximo a Vladivostok.
Na simbologia política, o telefonema retrata
um dos momentos cruciais do domínio do terror stalinista sobre a sociedade
soviética. Talvez Kadaré tenha se inspirado no diálogo de três minutos por
lembrar de seu padecimento sob a ditadura de Enver Hoxha, outro meliante do
Leste Europeu comunista. A vigilância da polícia política o faz desenvolver uma
literatura muitas vezes simbólica em simbiose com a violência. “Abril
despedaçado”, belamente filmado por Walter Salles,
baseia-se em seu livro homônimo. Mas ali Kadaré consegue enfrentar o demônio e
o medo — e constrói uma poderosa alegoria.
Kadaré, Auster e Vargas Llosa, ou até mesmo o
poético Javier Marias, têm gradações distintas ao falar dos efeitos dos
diversos tipos de poder sobre a sociedade. Mesmo quando Marias ou Llosa navegam
por (digamos) enredos de amor, a atormentada realidade alcança as personagens,
trata de desatar as relações. É possível que muitos desses autores não sejam
lembrados dentro de 50 anos ou que deles sobrem apenas um ou outro título. Do
afamado Hemingway, ficaram somente “O Velho e o mar” e “Paris é uma festa”. Isso
não importa agora. Eles ajudaram a construir um período e a deixar grafada a
luta contra a tirania — no caso, a consolidação dos conceitos de democracia nas
sociedades ocidentais contemporâneas. Não é pouco.
O percurso de Llosa, entre eles, é bastante peculiar. A desilusão com Cuba o tornou um renitente intelectual de centro-direita. Mas “Peixe na água”, ao registrar sua derrotada campanha presidencial no Peru, antecipa as armas e o populismo da nova extrema direita. Isso conta. Sua posição política o tornou um incômodo entre os escritores, embora se reconheça sua potência criativa e de pensamento. As correntes formadoras de opinião desejam todos à esquerda —foi assim com Jorge Luis Borges, apoiador da ditadura argentina, hoje visto como um clássico mundial. Suas posições direitistas foram superadas por sua obra — morto, suas opiniões deixaram de ter valor.
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